terça-feira, 25 de novembro de 2008

A Revolta de 1931

S. Braz, esplêndida e formidável fortaleza dos tempos de Manuel da Câmara, seu Alcaide-Mor e seu construtor, era hoje, 9 de Abril de 1931 um mau quartel de artilharia, sem fosso nem esplanada, com construções acima das ameias onde soldados e oficiais não gostavam de estar. Certo que ficava no centro de Ponta Delgada e vizinho das Festas do Senhor Santo Cristo mas isso era pouco consolo para aquelas dezenas de militares que eram obrigados, por dever de ofício, a trabalhar e a dormir ali.

Na cidade, José Bruno Tavares Carreiro era o todo poderoso político de influências inegáveis que, com fumos de autonomista, servia a Ditadura porque os amigos de Aristides Moreira da Mota consideravam que os militares do 28 de Maio tinham acabado com a barafunda da primeira República e posto ordem nas finanças e no Estado, embora o centralismo desenfreado da Revolução Nacional não fosse propriamente o ideal para quem defendia a “livre administração dos Açores pelos açorianos”. Enfim, a alta política tem destas coisas…

A tarde era calma e, embora o ditado reze que “em Abril águas mil” o sol brilhava em céu sem nuvens e sem vento que nestas coisas de meteorologia o povo também se engana que não só os cientistas. Parecia um dia quente de verão. Quente, abafado e húmido, ainda mais estava no gabinete do oficial do dia onde o clima era de nervos tensos, muito fumo e vozes baixas. Conspirava-se contra a Ditadura Nacional! Sabia-se que os militares no poder não eram nada brandos com os revolucionários ou golpistas, haja em conta o milhar de mortos que em 1927 sofreram os contra revolucionários.

- Vocês fiquem sabendo que se não pararmos o Salazar, vamos ter um segundo Mussolini, dizia o tenente José Esteves, magro, de olhar fixo e sorriso nervoso. A coisa está assente, Lisboa, Porto, Funchal e nós, o resto do País vem atrás como cão de caça em busca de perdiz abatida. E acendia cigarro atrás de cigarro, um no outro, lançando no ar lufadas de fumo que enchiam a sala e faziam arder os olhos. - Não sei, dizia o tenente Manuel de Melo, bonacheirão e bem disposto, democrata até à medula e com uma alergia a ditadores que só visto. Esta coisa das revoluções já deu o que tinha que dar. Vamos é lixar-nos todos se a coisa corre para o torto. Mas não há outro remédio. P´rá frente é que é caminho!

- O Cunha Leal, garantiu-me que todos os deportados alinham; tomar Ponta Delgada é canja e vocês vão ver que nem vai ser preciso disparar um tiro. A população local não se mete que isto são coisas da tropa. O único que pode criar problemas é o Zé Bruno, por isso, tomado o Castelo, vai logo um carro às Furnas buscá-lo que, segundo sei, ele está lá a banhos. Miguel de Almeida, era um oficial brioso, de esplêndida figura, alto, aprumado, era o terror dos pais de meninas casadoiras e pertencia a uma velha família de democratas e militares. Falava em tom pausado, como se ditasse uma escritura pública perante uma assembleia constituinte.

Parecia que todos temiam que a coisa desse para o torto mas, por outro lado, se nada fosse feito, continuariam a vir para o Arquipélago civis e militares castigados, enchendo as pensões e os hotéis (que não eram paraísos nem de comodidade nem de preços). Famílias divididas e destruídas, pouco faltava para os fuzilamentos fascistas da Itália. E se eles não sentirem oposição forte, “é isso que vai acontecer, fiquem sabendo”, sussurrou o Tenente Melo já fora de si.

- E o Caldas de Barros? Não se esqueçam que é militar do quadro e Governador do Distrito. - Ora bem bom, resmungou o Miguel de Almeida, ele não vai querer sarilhos por cá visto que namora com rica moça da ilha. Dele me encarrego eu. – Então, tudo a postos, rematou o oficial micaelense, o único da ilha que ali fazia parte dos conspiradores. E é para já. A coisa então precipitou-se, Almeida sacou da pistola e os restantes, sem discussão puxaram das suas e saíram em corrida.

O Comandante da unidade despachava na sua secretária a reclamação dum recruta que queria emigrar para a América pois tinha casado com uma rapariga de Fall River e precisava duma licença provisória para ir à Lagoa dar o sim na Conservatória, visto que o casamento religioso iria ser mais tarde, na Igreja do Santo Cristo, daquela cidade da Nova Inglaterra.

Foi nesse momento que ouviu uma gritaria na parada e, olhando pela janela, viu uma série de oficiais que corriam de arma em punho em diversas direcções. Poucos segundos depois, batiam com força à porta do seu gabinete. - Entre, disse o comandante um tanto curioso. - O meu Comandante, desculpará mas isto é uma Revolução e tenho de lhe dar voz de prisão em nome do Presidente da República. – Mas o Presidente Carmona é que me nomeou para este cargo, a que propósito iria ele mandar prender-me.

- O meu Comandante não está a perceber, o Presidente da República a que nos referimos é o presidente Teixeira Gomes. Oh Almeida, você está doido? Não percebe que isto vai ser a sua desgraça? E a do seu velho Pai que, como militar pode vir a ser prejudicado por esta sua atitude irreflectida? - Meu Pai não sabe de nada e, se soubesse, não perderia um segundo a apoiar-me. O meu Comandante considera-se preso e serão respeitadas todas as suas honras e patentes? Ou…

Nesse momento entram de rompante no gabinete do Comando todos os outros conspiradores: - O Castelo está nas nossas mãos, o nosso Comandante fará o favor de dizer se está por nós ou contra nós? Na parada ouviam-se gritos de alegria e abriam-se as portas do Castelo por onde entraram diversos civis que abraçavam eufóricos os militares que os acolhiam simpaticamente.

O governador civil já se rendeu. As outras unidades militares já aderiram; foi um fogo que lhes pegou pelas tripas. A Junta Revolucionária da Madeira já dominou a ilha, falta apenas saber o que se passou em Lisboa e Porto. A coisa vai!

Enquanto isso, vários oficiais revolucionários aproximaram-se das ameias norte da velha fortaleza e observavam as correrias do rapazio que nervosamente se aproximava das muralhas seguidos pelos adultos em passo mais ou menos vagaroso, empurrados pela curiosidade duma revolta que era coisa nunca vista por estas bandas. O Alferes Martiniano, de luto recente por familiar querido, olhava com semblante carregado mas indiferente para a pequena multidão que se juntava aos poucos junto da porta de armas do Castelo. - Oxalá que esta revolução saia vitoriosa que, ao menos assim, regresso a Lisboa. Estou farto desta solidão atlântica.

O tempo continuava bom com o céu de azul anil sem nuvens, o mar parecia um lago e a baía da doca espelhava os barcos ancorados sem suspeitar que o país tremia de nervos por uma tentativa de repor a legalidade democrática em que só os mais cultos e envolvidos acreditavam. O navio Pêro de Alenquer dos Carregadores Açorianos era o maior dos barcos na doca. Da Itália e da Alemanha sopravam ventos de autoridade e, em Lisboa, o Ministro da Finanças esgueirava-se para dirigir o governo, esmagar a revolta e mandar sozinho em Portugal inteiro de Minho a Timor, durante 37 anos.

Só que, entretanto, tinha que vencer, pelo menos esta revolta, senão o destino da Península Ibérica iria ser outro nas próximas décadas. A sentinela bradou na sua pronúncia micaelense cerrada: - Meu Alferes, está aqui um civil chamado José Ramos, diz que quer falar com o comandante do Castelo, deixo-o entrar?

Boa pergunta, pensou para consigo o alferes, tentando ver pelas ameias do Castelo qual era a pinta do paisano. – Sei lá, pergunta aí ao tenente Frazão, que ele há-de conhecer melhor o bicho. Ramos, pequeno, nervoso e excitado, vinha trazer um recado de Cunha Leal. Entrou. Foi revistado dos pés à cabeça que esta coisa de revoluções tem as suas regras. – Limpo, disse o cabo Júlio encarregado da segurança. Entrou o Ramos e foi levado à presença de Miguel de Almeida: - Meu tenente, Cunha Leal requisitou o Correio dos Açores, por ser o do José Bruno e o mais lido. É preciso um manifesto à população que ele já escreveu. Precisa o engenheiro de saber quais são os oficiais que o querem subscrever. Fez-se um silêncio pesado na Sala dos Retratos para onde o rapaz tinha sido levado. Todos os presentes concordaram em assinar o documento. Mas Ramos trazia instruções: - O director do jornal vai ser o Ferro Alves, e é importante que assinem o Coronel Álvaro Ataíde e o Tenente Miguel de Almeida. Olharam todos para os visados que sentados em dois cadeirões de madeira de acácia, sentiram a impressão de que a coisa não devia ser bem assim mas, já que era para rebentar que rebentasse, depois se veria. O velho coronel não parecia muito convencido do seu papel de herói que isto da tropa quanto mais alto se está, mais pancada se apanha quando a coisa corre para o torto. Calou-se que às vezes o silêncio é de ouro. Ramos porém, compreendeu isso como consentimento e saiu pela porta fora convencido que levava a chave do tesouro.

Miguel de Almeida, entre apreensivo e divertido, encheu um pequeno copo de aguardente da terra que retirou duma garrafa escondida por detrás duma espécie de balcão e emborcou-o engolindo o líquido com um esgar de quem sentia o álcool escaldar-lhe as goelas e passou os dedos por debaixo do bigode farto. – Ora vamos a ver onde isto vai parar. O coronel levantou-se de vagar e todos se puseram em sentido. Por alguns dias, ele seria a mais alta autoridade dentro do Castelo e os regulamentos, com revolução ou sem revolução, fizeram-se para ser cumpridos.

- Preparem-me a viatura que vou até ao palácio da Conceição ver como andam as modas. O impedido do Coronel estendeu-lhe o quépi, as luvas e o pingalim. O oficial cobriu-se, calçou a luva esquerda, colocando o pingalim debaixo do braço, fez a continência e saiu com passo seguro mas lento. A viatura esperava-o no pequeno pátio nascente do Castelo. Entrou, sentou-se no banco detrás e ordenou: - Para o Palácio. As portas do Castelo abriram-se, o povo começou aos vivas e às palmas, enquanto o carro lentamente, dobrava para o campo de S. Francisco. Ataíde correspondia com continências lentas e firmes.

Carlos Melo Bento
2008-11-11



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