sábado, 29 de agosto de 2009

Revoltados

minha terra vulcânica e verde
De criptomérias altas, lendas encantadas
- meu chão de Açores meu leito de azáleas
Victor Meireles, 1976

Neste Verão esquisito não é fácil dizer alguma coisa que não seja este grito de alma do maior poeta açoriano vivo. Ouvi, sem acreditar, as palavras sentidas do presidente do Capelense, magoado com uma qualquer Federação não sei bem de quê que, perante uma atitude de facciosa sentença, sistematicamente a favor dos de lá contra os de cá, teve uma reacção que me deixou atónito: - “Já estamos habituados”. Habituados, presidente? Habituados a quê, a ser desprezados por quem não tem categoria nenhuma? É no desporto e é em qualquer outra coisa. Habituados? Mas desde quando é que pessoas de carácter se habituam a injustiças? Saia dessa Federação e bata-lhes com a porta nas ventas, Presidente e não nos envergonhe com atitudes de subserviência que não só dão um exemplo a não imitar como são a demonstração do que há de mais reprovável na nossa maneira de ser. Respeitamos toda a gente, menos aqueles que não nos respeitam. Sejam eles quem forem. Senão não vale a pena viver. Pelo menos assim! Para eles tudo para nós nada? Pois então que vão à vida deles que nós vamos à nossa. Que herança queremos nós deixar aos nossos filhos? Acomodados escravos? Ou revoltados homens livres?
Carlos Melo Bento
2009-08-25

sábado, 22 de agosto de 2009

Victor Meireles

Biografia
Discurso proferido em Água Retorta, a 20 de Agosto de 2009, na apresentação do seu livro:
Extractos Paroquiais, baptismos, da Paróquia de
Nossa senhora da Penha de França de Água Retorta [1768-1905], I, II.


Senhora Vereadora da Cultura da Câmara Municipal da Povoação
Senhor Vigário Episcopal, Professor Doutor Octávio Medeiros,
Digno Presidente da Junta de Freguesia de Água Retorta, Senhor Baltazar Franco
Senhoras e Senhores
A tarefa de que me incumbiram hoje é das mais fáceis e agradáveis que, como orador convidado, me foi dado desempenhar. Apresentar o livro dum amigo de longa data, não deve ter dificuldade como de facto não tem. Já vos falarei do livro mas permitam-me dizer-vos alguma coisa do seu autor.

Victor Manuel de Lima Meireles Pacheco, que usa o nome artístico de Victor Meireles, quando começou a escrever contos e poemas nos nossos jornais, não tinha mais de 17 anos. O Açoriano Oriental, o Correio e o Diário dos Açores desde sempre acolheram com simpatia a colaboração de jovens escritores. Foi no mais antigo jornal português que Antero de Quental publicou as suas primeiras poesias e certamente todos sentiram o mesmo regozijo ao verem as suas incipientes produções estampadas em letra de forma, estimulando-os a publicar ainda mais e a prosseguir vida fora nesse árduo trabalho de contar sentimentos e narrar coisas imaginadas que tanto encantam as nossas almas nas mais diversas ocasiões das nossas vidas, sejam elas de tristeza profunda ou de alegria exaltante. Aí começou e aí continua Meireles a escrever contos, opinião, poesias. Até hoje e oxalá continuem as musas a inspirá-lo durante muitos e bons anos.

Mas, comecemos do princípio. Victor Meireles nasceu em Ponta Delgada na segunda metade do século XX em família numerosa, como todas as de então.

Frequenta a escola do Campo de S. Francisco até que sua família se muda para a Alameda de Belém, nos então subúrbios da cidade e continua os estudos no Externato Colégio do Infante, onde a Oposição à Ditadura de Salazar reunia os seus expoentes ligados ao ensino e onde certamente lhe despontou o espírito liberal e o gosto pela literatura e pela poesia.

Foi funcionário público na sua adolescência mas é compelido ao serviço militar onde permaneceu mais de dois anos, findos os quais se estabelece em Lisboa, onde o convívio com José Pracana, fadista e homem de cultura lhe abre as portas para o mundo intelectual da então capital do Império e onde a sua curiosidade o levaria a museus e a teatros, a bibliotecas e tertúlias que muito contribuíram para formar o seu espírito inquieto e talentoso a ponto de, muito novo ainda, ter ganho um prémio literário que em jogos florais lhe concedeu a Câmara da Ribeira Grande pelo seu conto Rosa Alberto e que a sua timidez impediu de ir receber pessoalmente.

Convive ainda em S. Miguel e enriquece o seu espírito insaciável com poetas e escritores de vulto como Oliveira S. Bento, Ruy Galvão de Carvalho e Armando Cortes Rodrigues. Priva com o poeta do Cântico das Fontes que por ele tem a ternura que suscitam os iniciados, a ponto deste lhe abrir as portas em Lisboa para o contacto com o grande Almada Negreiros. Naquela cidade, começou também o seu convívio íntimo e prolongado com Natália Correia, essa micaelense de génio, vulcão incontrolável de produção literária única reconhecida internacionalmente como poetisa e escritora de altíssima estatura cultural. A maior da poetisa portuguesa do século XX, no dizer insuspeito de Sousa de Oliveira esse outro gigante da nossa cultura que introduziu a arqueologia entre nós.

Natália nutria por Meireles uma amizade profunda, duas almas que se encontravam no mundo da poesia em que ambos reinavam como grandes senhores, ela incontestada, Victor amarrado na sua ilha, iria sofrer aliás como Cortes – Rodrigues, da timidez açoriana para com os seus mais altos valores que se recusam a abandonar definitivamente a terra natal.

Paremos um pouco nesta amizade entre os dois vates. No Botequim em Lisboa onde Natália mantinha um círculo de amigos íntimos ligados à cultura e à política ou em New Bedford, em casa de Victor Meirelles onde viveu enquanto lá esteve, e que o levou a publicar, New York - New York com Natália Correia, ou na sua Casa do Colégio em Ponta Delgada onde o visitou e participou num dos serões literários mais longos e interessantes a que me foi dado assistir em que participaram José de Almeida, António Pracana esse jurista de prestígio, a cujo convívio e vasta cultura ficou a dever grande parte da sua formação intelectual, Maria Luísa Ataíde, Dórdio de Guimarães, Sousa de Oliveira, reunidos à volta dum excelente bacalhau de natas que o nosso poeta confeccionou, outro dos seus talentos ocultos… Natália quis dar o sinal da admiração pois não me consta que ela se dignasse fazê-lo perante outra pessoa com menos capacidade poética e intelectual.

A admiração é mútua, pois Victor Meireles irá fazer-lhe a genealogia mas que a grande poetisa não chegou a ver porque entretanto morreu subitamente em casa, sozinha, apesar do medo que sempre teve em estar só. Ela tinha-lhe dado a rara honra de prefaciar uma das suas obras. E eu não resisto a ler-vos essa pequena jóia da nossa literatura

Lisboa, 23 de Dezembro de 1987

Querido amigo

Recebo finalmente os seus poemas há muito prometidos. Em boa hora de reforçar a identidade de uma poesia de insularidade chegam-me eles invadidos por esse mar que lhe bate nos pulsos e lhe desliza pelos dedos “com o peixes azuis afogados em guelras de soluços”.

Poesia de um ser naufragado no barco imóvel que é a ilha, a comer as trevas da sua solidão, eis a sensação que me transmitem os seus versos. Um registo de coisas açorianíssimas: o avô pescador, quase feito de sal a falar-lhe de sereias e areais, ascendência que o predestina a ser, na poesia, um “pescador de palavras”….O pranto das mães dos homens que emigram como andorinhas em busca do sul….e, no mais, uma ânsia paralítica de vida encalhada no insulamento.

Singularidades da configuração insular açoriana que, no ofício do seu dizer poético, ganha um novo e rico elemento para a antologia açórica.

Recebe as felicitações amigas da

Natália Correia

É neste período da sua vida que se enriquece viajando pelo mundo, pela Rússia, pela Europa de Paris a Londres, de Florença a Roma onde os museus foram visita obrigatória e demorada e onde certamente despertou para a pintura que passou a cultivar com o mesmo talento e inspiração e que tanto tem maravilhado as nossas almas, durante toda a sua proveitosa vida. E na América onde sua adorada Mãe se acolhera para junto de outros filhos e netos ele vai cursar pintura na Ritner´s School of Bóston. Regressado à terra natal, logo chamam para a Direcção da Academia das Artes e para membro do Instituto Cultural de Ponta Delgada.

As suas pinturas encerram no fundo os mesmos anseios da sua misteriosa poesia. Cores suaves e formas telúricas, agigantadas numa imaginação fértil, derramadas por flores e plantas de dimensões estranhas e belas. Bosques românticos e estradas desertas onde só as almas eleitas passeiam sem serem vistas. Cores intensas e maravilhosas esparramadas em universos desconhecidos e fascinantes, nesta última fase do artista, eis o que um público desconcertado pela nova dimensão do poeta procura e recolhe.

Nesta capítulo da sua imensa produção cultural vai ter o convívio de dois grandes talentos das belas artes: Maria Luísa Costa Gomes e sua filha Luísa Constantina. Uma e outra na pintura e na escultura, mau grado a curta vida da mais nova, ocupam largo espaço na história da arte açoriana e certamente o mais importante do século XX. Nos Estados Unidos, onde desenvolveu um interessantíssimo comércio de antiguidades, a sua alma generosa vai ter tempo para ajudar Maria Luísa que ali estabeleceu um muito procurado atelier e escola de pintura, numa época muito difícil para a vida da pintora de flores mais perfeita, intensa e penetrante que a nossa terra conheceu.

E as suas pinturas são exibidas e cobiçadas em diversas exposições colectivas e individuais, em Ponta Delgada, Flores e Graciosa, com assinaláveis êxitos.

Como contista e poeta, Victor Meireles deu à estampa várias obras de que destaco As Amarras, Nunca Mais e Foi Sempre, O Todo a Parte Alguma, A Lapinha, Amargo Lírico, Memórias d’Ontem – Natais d’Hoje e O Anjo. Só a leitura atenta e vagarosa destas pérolas da nossa literatura contemporânea podem dar a verdadeira dimensão das mensagens que o autor do Sorriso de Cristal, esconde nas histórias de encantar que nos conta.

Eis o homem cujo segundo livro Água Retorta vai ter à sua disposição. Poesia? Conto? Álbum de pintura? Não meus amigos. Extractos dos livros da vossa paróquia, ou sejam os resumos dos assentos de baptismo que os vossos bondosos párocos foram fazendo durante os 5 séculos que para aqui estamos, enviados pelo senhor Infante D. Henrique, terceiro e tão famoso filho do mui alto e poderoso senhor Rei D. João I, o de Boa Memória.

São os vossos nomes próprios, os de vossos pais, padrinhos, sacerdotes e pessoas de estado que porventura se dignaram assistir como testemunhos ao mais importante acto da liturgia católica e o Dia, o Mês e Era em que ocorreu. Desta vez o seu autor transcreveu de 1768-1905, cento e trinta e sete anos! Quantos bebés nasceram, quantas alegrias e tristezas deram a seus pais, quantos viveram para procriar? Quantos heróis? Quantos sábios, quantos santos? Tudo isso num pequeno livro, roubado aos poemas, aos contos e às pinturas. E porquê?

Conta-se em poucas palavras que já vejo alguns a bocejar, não porque o tema seja fastidioso mas porque o orador não sabe mais.

A genealogia é uma ciência que trata da identificação dos nossos antepassados e é auxiliar da História, não só porque há muitas Marias na Terra como porque revela pormenores da vida dos que constam dela que ajudam a escrever aquela com rigor e interesse. Não se esqueçam de que aqueles que desconhecem a história se arriscam a repeti-la porque só sabendo-a podemos evitar errar de novo.

Mas Victor Meireles vai nascer para a genealogia por causa da origem da sua própria família. Sua estremada Mãe era dos Ginetes, e esta risonha freguesia da costa Sul de S. Miguel vai exercer um fascínio irresistível para o meu biografado a ponto de lá ter mandado restaurar uma antiga moradia onde no Verão respirou o mesmo ar dos seus maiores e se inspirou para as mais belas poesias que escreveu. Descendente directo do Cavaleiro de Malta, o mesmo que foi padrinho do baptismo de Madre Teresa da Anunciada, a do Senhor Santo Cristo, Frey Joam Meyrelles, ficou deslumbrado com o que conseguiu saber de si próprio. Os ensinamentos do grande mestre que foi o Dr. Hugo Moreira e do grande mestre que é Cristiano Ferin, aqui nesta sala, graças a Deus, vivo e são e sempre trabalhando numa arte em que além de decano é venerado e o invejável nonagenário mais sabedor sobre as famílias antigas de S. Miguel.

Acabada a genealogia de sua Mãe, que o levaria a fazer os extractos dos Ginetes ainda, por desperdício dos responsáveis, inédito, voltou-se então para os Pachecos de Água Retorta terra da família de seu pai, onde as surpresas não foram menores com a obtenção de preciosas informações sobre a chegada dos seus primeiros familiares do tempo do povoamento.

Os conhecimentos aí obtidos deram-lhe porém afoiteza e à vontade nos estudos genealógicos, a que se dedicar e vai daí, além de publicar diversos trabalhos como Carlos Alberto Velho Falcão Canário Melo – Subsídios Genealógicos, Cecília Meireles – Aspectos para uma Biografia, e a Genealogia de Natália Correia, começa a dar à estampa a publicação dos extractos da Ribeira Quente na revista Insulana, em que tem em vista ajudar os emigrados na sua incessante busca pelas raízes centenárias. E tem prontos para publicação, além dos Ginetes de que falei, os baptismos e casamentos do Nordeste, que oxalá sejam postos quanto antes à disposição dos estudiosos. É que, como já disse tanta vez, os açorianos são dos poucos povos privilegiados que sabem quem são os seus Adão e Eva. E tão poucos têm sabido aproveitar-se disso. Haviam de ter visto a cara de felicidade do nosso prémio Nobel, Craig de Mello, quando o Dr. José de Almeida Mello lhe ofereceu a genealogia!

Como genealogista consagrado, participa nos tão interessantes cinco encontros na ilha Graciosa, em que fez as comunicações que lhe competiam, a par dum Jorge Forjaz e dum Oriolando da Silva e tantos outros.

O livro que está aí é a sequência dos Extractos de Casamentos que faz hoje um ano, lançou nesta mesma freguesia e é bom que o tenham porque é obra monumental única (mil e trezentas páginas em dois volumes de excelente apresentação gráfica) mas que não interessa apenas aos habitantes da terra do Comendador Furtado Leite e sim a tantos e tantos que descendem daqueles dez ou doze casais que aqui fundaram o que Frutuoso descreveu como:
"Apegado à Grota Funda, a um tiro de pedra, está uma fonte de tão grossa água como coxa de um homem, que nasce em meia rocha, ao pé de uma fajã pequena; acima da qual fajã e da outra atrás dita está uma povoação de gente, de até dez ou doze casais que se chama Água Retorta por respeito da fonte que pela rocha cai em voltas, e são da freguesia do Faial.

D’Água Retorta , que parte com o Lombo Gordo na banda do ponente, se começa o termo de Vila Franca, porque ali fenece o do Nordeste.

De Água Retorta, donde agora mora João Roiz, pessoa nobre, até o Faial, pela terra dentro, estão estas fazendas: - junto de Água retorta, está o lombo dos Bardos e o Juncal e Roça Grande, em cima da Rocha, e a Fajã do Calhau ao pé da rocha junto do mar, e a Fajã do Louro no meio da rocha, que dá muito pastel, e a Rocinha que está sobre o lugar do Faial. Dependurada em cima da rocha, e outra fazenda que se chama a Lapa, terra que também dá trigo, e outra chamada o Guindaste, dependurada sobre a ribeira que corre ao lugar; arriba dela a Couvinha, que dá também novidade e tem criações, e outra que se chama as Quebradas, acima da Couvinha, ao longo da mesma ribeira, onde há muitas comedias de gados e muitas frescas fontes; e outra fazenda terra chã, mais acima, que dá pão, chamada os Moios das Quebradas; e logo acima outra terra de comedia de gado, que por ser mais alta se chama a Cumieira. Todas as quais fazendas que serão uma légua de terra, partindo com Francisco Fernandes, sogro de Matias Lopes, até o lugar do Faial, foram de João Afonso, o Velho, e agora são de mais vinte e cinco seus herdeiros, que partem pela banda do norte com os herdeiros de Domingos Afonso, sogro do licenciado Bartolomeu de Frias.
Um João Martins, de alcunha Calca Frades, morador nas Hortas de Vila Franca do Campo, vendeu dez ou doze moios de terra de pasto, onde agora chamam Água Retorta, a João Afonso do Faial, o Velho, por pano de Londres, azul, para um Gabão, que agora dá muito trigo e pastel e é de João Roiz Cordeiro, filho de Pêro Roiz Cordeiro".

Gostava de terminar com três poemas de três grandes poetas desta terra:

De Armando Cortes Rodrigues a:

Carta para Longe

“Maria!
Estimarei
Tua saúde e dos teus,
Pois a nossa, ao fazer desta,
É boa graças a Deus.

Depois que daqui saíste
Nunca mais houve alegria,
Que no céu da nossa vida
Veio a noite e foi-se o dia.

Saudade é como o luar,
Só de noite é que brilha;
O muito que por ti choro
Nem tu sabes, minha filha.

A dor em que teu pai vive!
Basta olhar-lhe para o rosto…
Envelheceu…nunca mais
Para nada teve gosto.

O craveiro do balcão
Já se secou, coitadinho…
Faltou-lhe a luz dos teus olhos
E o modo do teu carinha.

A tua cadeira baixa
Lá está junto à janela,
Como quem ainda espera
Que te venhas sentar nela.

Maria, manda dizer
O que por lá tens passado.
Triste velhice de quem
Não tem os seus a seu lado…

Para aliviar minha dor
- Coração de mãe não mente -
Cria um filho com amor
E vive, depois, ausente.

A bênção de Deus te cubra
Com amor, paz e saúde
E lembra-te que a riqueza
Verdadeira é a virtude.

Não te esqueças de teu pai,
Lembra-te sempre de mim.
Adeus…adeus…que as saudades
Só à vista terão fim!”

De Natália Correia, no Dilúvio e a pomba, a parte relativa às Furnas:

“Eram, nas Furnas, caldeiras
guelras que o vulcão abria,
Mas, se enxofradas as sombras
em chumbo e cachão ferviam,
a luz, por vales e lombas
em hortênsias se aspergia,
que não se ganham os deuses
sem demos por mais valia.
Por isso ali o inferno
com o céu não contendia.
Vai daí que me ficasse
esta concórdia sadia
de não frequentar negrumes
sem numes por companhia.
Ou o contrário se quiserem
que se Deus dá flor e fera
eu sou por esta harmonia”.

De Antero de Quental, um trecho das Fadas:

“As fadas eu creio nelas
Umas moças e belas
Outras velhas de pasmar
Umas andam pelos arvoredos
Outras pelos rochedos
Outras à beira do mar.
Quantas vezes já deitado
mas sem sono, inda acordado
me ponho a considerar
que condão eu pediria
se uma fada um belo dia
me quisesse a mim fadar”.

E para terminar quero ler-vos o poema sobre o mesmo tema, do nosso escritor:

As fadas

“A vida é um desperdício
pelas coisas que nos são dadas
e corremos toda a vida à procura
de agarrar os sonhos das fadas.

E as fadas que mal fadadas
se deixaram apanhar
foram elas as perdidas
de tanto nos fazer sonhar.

Ficaram enrugadas e tristes
e atiraram-se connosco
para o fundo do mar
levando-nos nas suas asas presas
as nossas mãos vazias
daquilo que não nos puderam dar”.

Obrigado por me terem ouvido

Carlos Melo Bento
2009-08-19

terça-feira, 18 de agosto de 2009

A Censura

Seja por interesses económicos ou políticos, por inveja, ciúme ou simples calculismo, a censura é uma coisa feia, deprimente e enxovalha quem a faz porque mostra a mesquinhez do seu espírito, mostra medo e cobardia e denuncia a incapacidade mental de quem a pratica para compreender a liberdade alheia, de expressão entenda-se, pois não refiro a censura que se faz por alguém cometer um crime ou acto reprovável. O censor no geral é burro, não no sentido de ser semelhante ao asno, ou assinus burrus dos romanos, útil animal de carga que durante milénios serviu o homem e conduziu o Salvador, no Domingo de Ramos, a Jerusalém no meio dos hossanas. Refiro-me ao burro, burro, àquele indivíduo que dentro da cabeça só tem vácuo e um neurónio deficiente e solitário, deprimido na sua idiotice irreversível. E na sua imensa estupidez, o censor corta porque lhe mandam e pagam para isso, no que não passa de reles lacaio, sem talento e sem futuro. Ou corta pensando que, suprime o censurado do mundo dos vivos, o que lhe dá a sensação de que quem tem talento é ele, porque apaga e elimina os que, se comparados com ele, lhe põem à mostra a irremediável burrice. Pobre diabo, side efect do prepotente que o conduz ou efeito adequado da sua pequenez mental. O meu blog onde ele não corta é carlosmelobentoblogspot.com.
Carlos Melo Bento
2009-08-10

O Suicídio das instituições

A frase não é minha mas parece suficientemente clara para exprimir a situação face ao curioso acórdão do Tribunal Constitucional que chumbou parte substancial do nosso Estatuto. Já esta autonomia é o que é, castrada lhe chamei em 75, mas parece que nem assim os algozes se satisfazem. Agora, numa interpretação mais que estranha (para não dizer tecnicamente errada e inconstitucional), vêm os Venerandos Conselheiros dar apoio à visão centralista do Presidente Cavaco Silva, nos medos do lobo em relação ao capuchinho vermelho. Castrada e inofensiva e ainda assim…Bom, mas a questão que gostaria de partilhar não é essa. O Estatuto agora violentado foi aprovado por unanimidade pela Assembleia Legislativa, a única que se proclama legítima representante do Povo Açoriano. Considerado este inconstitucional, não sei verdadeiramente o quê ou quem representa. Mas, ainda assim, tem de haver uma reacção ao dislate do areópago político português. Se as instituições não produzem o que devem, correm para o suicídio e desaparecimento. O único representante do Povo Açoriano que até agora disse alguma coisa de jeito sobre o assunto foi o Dr. Ricardo Rodrigues mas esse é deputado da Assembleia da República, representante do Povo Português, ainda não considerado inconstitucional (para lá se caminha!). E os outros?
Carlos Melo Bento
2009-08-18

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

O nosso superior interesse

O superior interesse dos Açores e dos Açorianos que é, obviamente, o nosso escopo fundamental, impõe a todos uma atitude de firmeza e coerência inabaláveis. Só nós podemos defender devidamente o nosso interesse e o dos nossos filhos como deve ser. Não há luta de classes nem ideologias nem governos alheios nem estadistas de opereta que nos possam substituir na luta permanente pela nossa realização como povo. A canção do bandido pode ser aliciante e até bela mas não podemos esquecer que não passa duma canção e que o compositor não passa disso mesmo. A nós compete estudar com cuidado os problemas e defender com fé as soluções que encontrarmos para os resolver. Ensina a nossa História que a unidade na provação nos dá força e invencibilidade. Àqueles que quiserem ficar nela como verdadeiros açorianos e não como traidores repelentes, hão-de juntar-se aos que de boa fé defendem bem os nossos interesses colectivos. Aos que se submeterem ao inimigo pelo vil interesse da ambição pessoal, haveremos de desprezar com indignação. Ponham de lado lucros mesquinhos e imediatos, repilam subornos disfarçados de prebendas e benesses sem justificação adequada; de que serve vencerem uma batalha com ajuda duvidosa de terceiros se perderem a guerra que nós vamos ganhar porque amamos quem nos pertence e servimos?
Carlos Melo Bento
2009-08-04

Bombeiros Voluntários - 130 anos de Vida por Vida

Exma. Senhora Presidente da Câmara
Senhor Presidente da Associação Humanitária dos nossos Bombeiros Voluntários
Senhor Comandante e demais responsáveis e Soldados da Paz
Amigos

Gostava de começar esta minha fala pela leitura duns versos:

“Peço a Deus memória
E também para me ajudar
Para versar esta história
Que é coisa de pasmar

Isto é coisa horrível
E o coração faz doer
Foi um desastre terrível
Uma igreja a arder

Eram dez e meia da noite
Quando o alarme começou
Quase tudo dormia
Quando uma mulher gritou

Esta mulherzinha gritou
Numa voz tão ardente
Que logo se juntou
Para ali muita gente

Foi a dois de Março
Que esta cena se passou
Foi o nosso templo sagrado
Que se incendiou

Foi a Capela-mor da Covoada
Que ficou destruída
Estava tão bem preparada
A nossa igrejinha querida

O lume ardia
Na sua malícia correcta
Pensávamos que destruía
A igreja completa

Quando o povo se juntou
Numa grande aflição
Um pobre velho gritou
Deitai o tecto ao chão

Foi a porta rebentada
Para se realizar tal fim
Mas a chama se elevava
Que se tornou muito ruim

Subiu para a torre
Um grande homem valente
A pedir socorro
E chamar mais gente

Mas um rapaz esperto
Que trabalha com sapateiros
Resolveu mexer os pés
E foi chamar os Bombeiros

Ele ao passar na Saúde
No Benevides queria bater
Mas lá dormia tudo
E teve de continuar a correr

Na corrida que levava
Para chamar os Bombeiros
Levou mais uma tacada
Na padaria do Viveiros

Não se encontrava o Viveiros
Parece que estava para o cinema
E para chamar os Bombeiros
Teve que procurar telefonema

Ele telefonema encontrou
Na mercearia Duas da Madrugada
Logo aos Bombeiros comunicou
Que havia fogo na Covoada

Este curato desgraçado
Isto é mesmo de tremer
Acho que não vale nada
Para nem telefone ter

Mas cá na freguesia
Foi um grande alevanto
Tudo chorava e gemia
Tudo fazia o seu pranto

O Senhor Abade
Veio com prontidão
Ó Jesus Sacramentado
Vinde ao meu coração

Ele quando chegou
Viu grande multidão
Neste momento desmaiou
Mas dele tiveram compaixão

O Pároco veio preparado
Para tirar a Eucaristia
Mas quando chegou ao adro
A capela toda ardia

As mulheres gritavam
Para alguém acudir
Os homens trabalhavam
Para o fogo sucumbir

Os nossos Bombeiros
Tiveram alguma demora
Porque o pobre sapateiro
Andou quase uma hora

Quando chegaram os Bombeiros
Àquele templo tão sagrado
Já se via o braseiro
A arder no sobrado

Chegaram com a tropa
Estes homens terríveis
Pararam mesmo à porta
Com aqueles carros horríveis

Utilizaram mangueiras
Para apagar o lume
Foi de tal maneira
Que ficaram pretos do fumo

Também polícias chegaram
Para esclarecer o caso
Que logo chamaram
Pelo Reverendo Pároco

Não se sabe ao certo
Como começou o incêndio
Sabe-se que começou perto
Do trono Supremo

Já o fogo apagado
Iam retirando os destroços
Foram eles retirados
Com os nossos esforços

A nossa imagem linda
Que ficou num braseiro
Deu uma dor tão fina
Quando a tirou um Bombeiro

Havia nesta Capela
Um retábulo mui querido
Era todo feito à mão-d’obra
E todo muito bem bornido

Este retábulo deixou pena
A todos os Paroquianos
Porque todos o amavam
Já havia muitos anos

Um homem novo queria
Salvar o lindo Sacrário
Porque ali dentro vivia
Jesus Cristo Sacramentado

Mas ele não pode lá chegar
Porque o fogo o impedia
O Povo estava a gritar
Pela Divina Eucaristia

Ainda mais percas houve
Num tão grande valor
O fogo também levou
O nosso lindo Tabor

Foi-se embora o Tabor
Desta pequena aldeia
Quero que dêas valor
Para se erguer a Igreja

Deste incêndio malvado
Só as cinzas restou
Nem o próprio sobrado
Da Capela-mor ficou

A Igreja era pequena
Para esta população
Quero que vós entendais
A nossa triste situação

Desculpai-me estas poesias
Que foi com pouco tempo
Ficamos com poucas alegrias
Quando falamos neste incêndio

Mais uma desculpa peço
Por esta minha maçada
E quero que se lembrem
Duma esmola p’rá Covoada

Vai faltando o papel
Para isto ir inteiro
Versos do Fernando Pimentel
E do Luís da Silva Cordeiro”

Encontrei por acaso estes versos numa publicação pertencente à Biblioteca da Fundação Sousa d’Oliveira, pouco depois do Magnífico Reitor, Professor Doutor Vasco Garcia, me convidar para usar da palavra neste dia comemorativo da criação da nossa mais querida instituição: a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Ponta Delgada, e logo pensei que o meu saudoso mestre me enviava de longe uma mensagem para que não esquecesse a poesia popular micaelense em tudo o que ela tem de profundo para nos descrever na sua linguagem, no sentir da alma da nossa gente, nos anseios que acalenta, nos medos que a atormentam, nas queixas que formula, na impotência perante o inevitável, na esperança da renovação e na fé com que se alimenta.

Quando em 1970, minha Mulher correu um “perigo” tentei nervosamente encontrar uma ambulância que a conduzisse ao velho Hospital da Misericórdia para que um médico a salvasse da morte certa. A ambulância do Hospital estava avariada e a da Clínica estava fechada a sete chaves. Lembrei-me então dos Bombeiros para quem telefonei aflitíssimo; conscientes da tragédia iminente, o pessoal de serviço não perdeu um segundo e, mesmo contra mão, vieram da Rua da Louça para a da Cruz, levando-a para a Urgência onde uma médica a salvou no último minuto. Desde então, estive sempre ao serviço dos nossos Bombeiros e assim estarei enquanto for vivo e são. Por isso, Magnífico Reitor Vasco Garcia, não lhe faço nenhum favor em vir aqui. Cumpro um dever de gratidão, tento amortizar uma dívida tão grande que mesmo vivendo cem anos jamais a saldarei.

E quando lembro os versos que vos li, penso em como está diferente a nossa terra em termos de socorro quer na doença quer no incêndio. Desastres acontecem e sempre acontecerão pois onde está o homem está o perigo, como dizia meu Pai que também vos serviu e que, se vivo fosse, faria agora cem anos. E, a propósito dele, gosto de pensar que os homens que servem com paixão e desinteresse as grandes causas humanitárias hão-de viver sempre rodeados de incompreensões e desenganos mas nunca se arrependem do bem que fizeram e o maior deles é o exemplo que deixam aos filhos, apesar das ausências de casa que tanto arreliam as nossas Mães e que tanta falta fizeram aos filhos semi - abandonados numa adolescência sempre difícil.

Mas o saldo positivo é gigantesco, salutar e recompensador. E se a má memória dos detractores não dorme, é preciso que a boa memória dos justos não se cale para que não nos tenhamos de lamentar como Martin Luther King, da dolorosa indiferença dos que nunca tomam posição perante as injustiças.

Temos então que a nossa Associação faz anos hoje. Centro e trinta, rezam as crónicas, quando talvez precisamente nesta mesma sala reuniu pela vez primeira a Assembleia-geral da nossa Associação Humanitária presidida pelo Barão da Fonte Bela, ao tempo também presidente da Câmara; era bisavô de João Gago da Câmara, um dos presos do 6 de Junho de 1975, que também presidiu aos destinos desta famosa Edilidade, ainda hoje, apesar de octogenário e, graças a Deus, entre nós, com larga geração.

Nesse tempo, a nossa doca “já” tinha conseguido 544 metros de comprimento, mercê dos esforços de José do Canto e dos heróicos micaelenses, contra tudo e contra todos que nada se conseguiu nesta terra sem luta.

Estou imaginando o velho titular, nessa altura com 64 anos, saindo do seu belo palácio, hoje Escola Antero de Quental, no carro de cavalos com o brasão da sua casa pintado na portinhola do coche, o cocheiro de chicote em riste, com o trintanário a seu lado, na boleia, nervoso e pronto a desdobrar o degrau de ferro para sua excelência se descer sem sobressalto, da viatura. O porteiro da Câmara solicito e empertigado na sua farda verde de botões dourados, curvando-se perante o magistrado municipal e abrindo o cortejo que sobe pausadamente a escadaria dos Paços do Concelho perante o olhar espantado dos inúmeros basbaques postados em frente do Paço e desemboca solene nesta mesma sala das sessões, de tochas acesas e janelas abertas que o Verão ia alto e quente. – “Está aberta a sessão, em nome do Barão da Fonte Bela, excelentíssimo senhor Amâncio da Silveira Gago da Câmara e a ordem do dia é a instalação duma associação de voluntários Bombeiros nesta nossa grande cidade”. Sua excelência aceitara presidir à nova instituição, na sequência do convite que lhe foi dirigido pelos cavalheiros que tomaram a benemérita iniciativa e que a Senhora Câmara aprovou por unanimidade, disponibilizando esta sala para as primeiras reuniões. Presentes também os vice-presidente Manuel Joaquim Tavares, o secretário da Câmara, Pedro Paulo Santos, Guilherme Rangel, Manuel Sequeira (chefe de Polícia Municipal), António José de Viveiros, Agostinho Pereira de Medeiros e Inácio Ribeiro Alves, Inspector de Incêndios. Logo depois se associariam nomes sonantes da sociedade local, como o Conde da Silvã, D. Francisco, o Visconde do Porto Formoso, também avô do Presidente João Gago da Câmara, Ernesto do Canto, o próprio filho do Barão, o Barãozinho Jacinto que morreria muito novo. Atrás deles veio toda a gente de bem que graças a Deus era muita, na sociedade novecentista micaelense, de quem me permito destacar esse gigante da nossa benemerência, nascido na Rua do Saco e morador na Rua do Melo, Alfredo da Câmara que haveria de nos empolgar como povo, à volta do ideal humanitário, durante toda a sua vida, arrastando multidões para a celebração do 1.º de Maio, em vista a melhorar as desgraçadas condições de trabalho e de vida das nossas classes mais necessitadas, ou nos cortejos ou bandos precatórios que fazia percorrer a cidade para angariar fundos para as miseráveis viúvas dos nossos pescadores mortos em naufrágios que ele sentava cobertas de luto, em barcos incorporados no cortejo cívico, rodando ao som dolente, compassado e triste de tambores, ou para as meninas do Asilo a quem proporcionou dotes ou para os velhinhos do outro Asilo para quem organizou passeios e festas numa época tão longe do que hoje nos parece ser inovação. Promoveu espectáculos teatrais para recolher fundos para afastar a miséria dos nossos pobres, servindo os bombeiros mais talentosos de actores, em bem escolhidos dramas. Protegeu órfãos, viúvas velhos e pobres!

Fundou o jornal O Repórter para defender os seus ideais e para divulgar as questões ligadas aos Bombeiro. Fundou a Associação Autonómica Micaelense de que foi grande impulsionador. Como ajudou tanto quanto pôde, a escola nocturna de ensino primário e ginástica criada pelos Bombeiros, proporcionando as luzes da cultura a quem esta era negada por desmazelo e ocultas razões, numa época de analfabetismo generalizado e anquilosante.

Antigamente havia duas organizações de Bombeiros: os municipais que dependiam da Câmara a cujos quadros pertenciam e os Voluntários que pertenciam a si próprios e ao seu altruísmo. Quando havia um incêndio, tocado o alarme nos sinos da torre da matriz, com 10 badaladas para fogo em S. Pedro, 11 em S. José e 9 na da Matriz de S. Sebastião, primeiro chegavam os Voluntários, a seguir os Municipais, depois chegavam os Carros de Combate ao incêndio e, só passado algum tempo, chegava a água, fechada a sete chaves como bem precioso que era. Só que, às vezes chegava tarde de mais…

Vistos estes inconvenientes, um ano depois de cá terem estado os Reis de Portugal, fundiram-se as duas corporações na actual, tendo vencido os Voluntários na luta surda pela sobrevivência dos melhores mas subordinando-se aos grandes princípios éticos, fundamento de toda a sua acção: Honra, Heroísmo e Filantropia.

Hoje, observando as magníficas instalações que Albano Neto de Viveiros e a sua equipa conseguiram edificar, e os instrumentos de combate postos à nossa ordem, num sábio aproveitamento dos abundantes meios humanos e materiais de que miraculosamente dispomos, não se faz uma pálida ideia do que foram os instrumentos de trabalho dos nossos antepassados que por aqui passaram.

O nosso primeiro Quartel foi na Rua do Gaspar, hoje rua Dr. Bruno Carreiro, inaugurado com pompa e circunstância, em longo cortejo de homens e material da Praça do Município pela rua dos Mercadores, Largo de Camões, Travessa da Graça, Ruas de S. João, João Moreira, Stº. André, Conde, Canada, Theatro (hoje, Marquês da Praia), S. Braz e Gaspar, tudo acompanhado pelas boas marchas triunfais da Rival das Musas. O Barão, o Dr. Pereira Ataíde que se incorporaram no cortejo, botaram discurso no novo Salão, onde Filomeno Bicudo e Araão Cohen declamaram poesia, e a Rival executou música apropriada. Foi isto em 1881, reinava serenamente o senhor rei D. Luís I e já roncavam nos subterrâneos da nossa terra os primeiros rugidos do autonomismo libertador.

Nove anos depois, mudaram-se os Bombeiros de armas e bagagens para a Rua do Aljube, aí onde tinha funcionado a cadeia religiosa que albergara durante séculos os que da religião tinham uma visão pouco ou nada ortodoxa. Ali funcionariam as aulas de instrução primária e de ginástica para quem quis e pôde.

Correram mais doze anos e foi então que os nossos Bombeiros se mudaram para o velho Teatro de S. Sebastião na velha Rua da Louça, hoje chamada de Manuel da Ponte, em memória do grande autonomista, pedagogo e republicano. A casa era dos descendentes do Morgado José Caetano e nessa família se manteve o edifício até há pouco tempo. Aí puseram os soldados da paz a funcionar um salão de cinema, invenção revolucionária. E foi neste salão de cinematógrafo que se dançou o primeiro tango Argentino nesta ilha, a nova dança esperada com “ansiedade”! Executada pelo professor Manuel Joaquim de Matos e pela sua aluna Arménia Casanova. Um sucesso. Isto tudo de mistura com a Tuna dos empregados comerciais e um quinteto Vitaliani, com fados e concerto de piano e as inevitáveis poesias tudo muito aplaudido e apreciado.

Foi desse edifício já degenerado em pardieiro quando tomei posse como presidente em 1972 que comecei numa luta sem quartel para lhes dar novo quartel e consegui, apesar das inúmeras dificuldades que tivemos de enfrentar numa instituição deste género que dispunha então de apenas uma viatura que, para subir a rua Joaquim Nunes da Silva, tinha de ser rebocada por um tractor! E com todo o restante material obsoleto e quase inútil. Ilídio Rodrigues disciplinou e treinou o pessoal e nós arrebanhámos duas viaturas novas do BPI e do Grupo Bensaúde ao passo que erguíamos a toda a força as paredes da nova casa com a empresa de Mestre Manuel Soares e a orientação técnica desse humilde gigante engenheiro João Gilberto de Medeiros. Mas estou eu a falar de mim, esquecendo-me que elogio em boca própria é vitupério. Os outros que digam antes que estrague a festa. Quando estava tudo quase pronto, veio o 6 de Junho de 1975 e a minha prisão pelo que foi o meu carcereiro para minha amargura quem presidiu à inauguração do nosso trabalho, em sessão soleníssima, a que tive de assistir a seu lado, para mal dos meus pecados que até a caneta ele me emprestou pois a minha, na hora de trabalhar, recusou-se, sabe Deus por quê!

Julgava eu ter descoberto o caminho marítimo para a felicidade dos Bombeiros no que diz respeito a meios materiais e, eis senão quando, vem a Europa e os seus milhões e o Albano Neto de Viveiros que os agarrou fazendo uma obra única no País e quase única na Europa. Esta coisa de ser o primeiro, acreditem, não é fácil! Claro que nem ele nem eu trabalhámos sozinho. A minha companhia foi o Padre Zacarias, o Sr. Tibério Barbeiro, o Sr. José Francisco, secretário judicial, João Gualberto Arruda e os comandantes Ilídio Rodrigues, herói da Guiné e Álvaro Lemos que foi herói lá e cá, pois à sua devoção devemos todo o período áureo da corporação.

Os Companheiros do Albano foram Clarimundo Brandão e Ferreira de Almeida que sem eles não se teria conseguido coisa tão boa. A cereja em cima do bolo foi a bela estátua de Álvaro França, esse micaelense escultor e mestre de escultores, obra que eu tinha sonhado para uma das praças da nossa cidade com a efígie de Alfredo da Câmara. Valha a intenção que a Câmara de então, quiçá envolvida em complexos duma falsa direita, não deixou.

Hoje, Vasco Garcia e os seus colaboradores, gerem uma máquina complexa, pesada, difícil e eficiente. Graças a Deus que estão ao leme, pois doutro modo não seria fácil conseguir os resultados espantosos até agora obtidos em que a segurança inspirada é total.

Consola-me a lembrança de que a disciplina de hoje é herdeira do desejo dos fundadores da corporação, em que os aos bombeiros era vedado andar em brigas e desordens nunca podendo aparecer embriagados com farda sob pena de expulsão imediata, sem apelo nem agravo. Consola-me saber que meu querido e saudoso Pai, formado nas fileiras do glorioso exército português ainda que como oficial miliciano, impôs, inspirado na velha instituição castrense, uma disciplina férrea que pode tê-lo tornado pouco simpático mas o seu ensinamento perdura no ânimo dos que servem pois que sem essa disciplina não há ordem mas o caos que impede toda a obra útil.

Não disse tudo (nem nunca ninguém o dirá) sobre a história destes nossos heróis mas gostaria ainda de vos referir que aos Bombeiros também se ficou devendo durante décadas, o socorro a náufragos e a criação do Clube Naval hoje tão prestigiado e afamado.

No auge da campanha autonómica de 1893/95, António San-Bento que guardava os aprestos de socorro a náufragos numa arcada da Praça do Município por ele arrendada, junto ao Cais da cidade, pediu ajuda à Câmara. Aí ou no Cais da Sardinha ao Corpo Santo ou no Campo de S. Francisco, funcionou por vez primeira o Club Sport Náutico, avô do actual, com bóias, foguetes de lançamento de cabos e todos os outros aprestos com que salvaram centenas de vidas nacionais e estrangeiras e por tantos foram louvados e agraciados. Os sinos de alarme tocavam 7 vezes para chamar os socorristas ou não fosse esse número cabalístico tão da predilecção dos homens dos sete mares e dos sete ventos!

E não vou dizer mais que hoje é dia de festa. A todos os que se sacrificam todos os dias por nós muito e muito obrigado e muitos parabéns por manterem vivo e em bom estado, o ideal romântico de Vida por Vida que nada há de mais sagrado nem de mais agradável neste mundo.
Carlos Melo Bento
2009-08-04