A Câmara Municipal da capital açoriana presta hoje homenagem à maior poetisa de língua portuguesa de todo o século XX, e de que a nossa ilha serviu de berço, consagrando ao seu nome uma bela avenida da cidade nova.
Vulcão, génio, iconoclasta? Talvez até seja um pouco de tudo isso mas, para que havemos nós de perder tempo a indagar tal coisa, se ela o fez magistralmente e é encantamento tamanho ouvi-la? Na casa
onde todos rezavam orações decoradas
à volta duma imagem
só ela anjo mudo
escutava na aragem
a voz que lhe chegava do princípio de tudo”
(e, referindo-se à floresta da sua infância).
“Húmido pinhal e ramos altos
(enquanto ela se deleitava) no chão de rama verde
(...) errando na floresta embriagada
de névoa e de resina”.
(Até que)
“Uma obscura e inquieta castidade
pôs uma flor para mim no jardim mais secreto
num horizonte de graça e claridade
intangível e perto.
Promessa estática no luar
da densidade em mim corpórea
não é a culpa, é a memória
da primeira manhã de pecado
sem Eva e sem Adão
só o fruto provado
e a serpente enroscada
na minha solidão.
(Sendo ela)
Metade fêmea metade mar
como as sereias”
(faz um apelo aos colegas:)
“Poetas do mar vinde trazei-me as vossas ondas”.
(Porque,)
“Sou cidade. Onde bichos e anjos se devoram
por uma côdea de imortalidade”.
(Mas ela buscando a paz, proclama)
“Quero que suba à minha fronte
a serenidade desta condição:
harmonia exterior à estátua
que sabe que não tem coração”.
(E olhando o futuro considera:-)
“Não expulsarei os deuses e os demónios
que discutem a posse da minha alma
... eles que pintem a minha pintura essencial
com o sangue onde me exigem a dor da vida
que sejam deuses e demónios a justificar
a imortalidade a que estou prometida”
(Subitamente, vê-se ao espelho descreve:)
“Espátulas brancas palpitantes;
asas no exílio dum corpo
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
Encalhando em renúncia ou cobardia
Por vezes fêmea. Por vezes Monja
Conforme a noite. Conforme o dia
Molusco. Esponja
Embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
Presa na teia dos seus ardis
E aos pés um coração de louça
Quebrado em jogos infantis”.
(Se Natália aqui estivesse neste momento, entre divertida e incrédula, a este tempo atmosférico, ela diria:)
“É um Outono que não é Outono
Tampouco a estação por que se espera
Na dor de nos deixarem ao abandono
As ninfas que são flores na primavera”
(E depois acrescentaria:)
“Deram-me a rua e a janela
Se eram extremos da minha pista
Ficou-me a alma toda amarela
Por não saber de onde era a vista”.
Quem é porém esta poetiza que Sousa d’Oliveira considerou a maior do nosso País no século XX? Dou de novo a palavra a Natália e eis o que ela nos diz falando desde Lisboa onde habita:
“ Não sou daqui. Mamei em peitos oceânicos
Minha mãe era ninfa meu pai chuva de lava
Mestiça de onda e de enxofres vulcânicos
Sou de mim mesma pomba húmida e brava
Não sou daqui a minha pátria não é esta
... Tomai os meus cabelos. Levai-os para a floresta
Para Lisboa me trouxeram
não duma vez e embarcada
Minha longa matéria foi
Pouco a pouco transportada.
O Aterro era um sítio que havia
para a gente querer embarcar
Mãe ilha mãe caminho mãe água
a pingar das telhas de sonho
castiçal de impossíveis palavras
tempo lírico de que disponho.
Para Lisboa me trouxeram
Mais me trouxeram daquela
Ilha de pincel durável
que só pinta longe dela”
Chegada à velha Lisboa, vai dali desafiar o mundo aos gritos estridentes da sua poderosa lira, fazendo tremer de prazer e horror este mundo e o outro
“Senhores Juízes sou um poeta
... e ando com uma camisa de vento
Ao contrário de esqueleto
... com a paciência dos versos
Espero viver dentro de mim
Senhores banqueiros sois a cidade
... não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei
Senhores professores que pusestes
a prémio a minha rara edição
Senhores tiranos que do baralho
...Sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis
Senhores heróis...
Minha cobardia é esperar-vos
Umas estrofes mais além.
Sou um instantâneo das coisas
Apanhadas em delito da paixão
a raiz quadrada da flor
Sou uma impudência a mesa posta
De um verso onde o possa escrever
Ó subalimentados do sonho
A poesia é para comer
E se julgam que a morte lhe mete medo, digo-vos eu que ela a estudou com afinco e percebeu como só os poetas percebem a sua essência:
“... A morte é fúria
De vida que a carne não retém”
Descansada com o conceito, pôde então deleitar-se com o seu tema de eleição:
“Fiquei tanta de nascida
Na extrema acepção Natal
De nascer em terra pouca
Muita do ponto final.”
E ela? Que foi feito dessa adolescente quando os fados a levaram da sua ilha?
“Ai Paloma ai Palominha
Mal soubeste palomar!
Sob um guarda-sol de hortênsias
Palominha a passear
Passeava seus cuidados
Sem gorjeios apertados
Por gargantilha do mar
--- Palominha a suspirar
Duas feridas em seu peito
Por uma lhe entrava o sol
Por outra entrava o luar
.... da era de Salazar
que, selecta de oprimidos,
Haveria de expurgar
Os cabelos desabridos
Da Palominha insular
Que das ondas tinham o solto
Sotaque de verde mar.
Ai Paloma ai Palominha
Mal soubeste palomar.
Mas o pincel de Natália atingiu o máximo da magia quando descreve a sua amada ilha, já não como símbolo dum lugar mítico à volta do qual giram as existências e as essências. Qual pintora genial, pintando nas nuvens da lembrança, duma paleta sentimental e ao mesmo tempo impressionista ela canta pintando,
“ Eram bosques refugiados
Em altas ebúrneas névoas
E desses enovelados
Torreões de criptomérias
Veludos verdes tombavam
…lagoas aleluiadas
Entre fetos e conteiras
Eram pastos paulatinos
E neles vacas sineiras
Espraiando em relvas fagueiras
Um viço cheio de sinos.
E logo vinha o responso
Em estrofes de estorninhos
Eram nas Sete Cidades
Que do sacerdote rei
As santas propriedades
São ao que dizem segredos
Castos que ali respirei,
Duas luas – uma verde
Outra roxa – derretidas
Em águas que ali deixadas
São como o manto de Elias.
E nesses sete domínios
Do Espírito suspenso
Ao longe nuvens de equíneos
Galopavam em consenso
Ó que de leite e de fogo
De escarpas, fetos unânimes
Em pleniposse de incenso!
Que de plumas de silêncio
Rosadas, azuis, esparsas
Num céu fluente de garças!
A pairar
Batiam as asas do mar
Eram nas Furnas Caldeiras
Guelras que o vulcão abria.
Mas se enxofradas as sombras
Em chumbo e cachão ferviam,
A luz por vales e lombas
Em hortênsias se aspergia
Que não se ganham os deuses
Sem demos por mais valia.
Por isso ali o inferno
Com o céu não contendia.
Vai daí que me ficasse
Esta concórdia sadia
De não frequentar negrumes
Sem numes por companhia.
Ou o contrário se quiserem
Que se Deus dá flor e fera
Eu sou por esta harmonia.
E podíamos continuar toda a tarde sem descanso passeando pela poesia de beleza infinita sem cansaço que o que é belo não cansa e pede repetição.
Há muitos anos, tantos que já nem lembro, Natália quis discursar na inauguração da livraria
[1] que marcou uma época nos Açores. Uma época e uma direcção. Ela tinha plena consciência de que, falando ali, falava para a história e, qualquer que fosse o nosso destino, a sua voz ecoaria para sempre, através do Homem que ideou nas páginas da história contemporânea a epopeia do Povo de onde ela nasceu, aqui revelando o génio que nela havia e que àquele devia tal momento.
Disse ela:
“Bem hajam, pois, os que nesta ilha continuam a tradição da bibliofilia que tanto a tem ilustrado e a dotam com mais um instrumento de cultura, porque esta é a própria condição do fortalecimento da personalidade açórica e da sua invulnerabilidade à usura dum Estado centralizador, que no seu narcisismo condena a afundar-se nas águas fatais da auto-contemplação, tragicamente alheio a realidades indefectíveis como esta: açorianidade!
Senhora Presidente, em nome dos que amam a cultura como o veículo essencial da emancipação das pessoas e dos povos, agradeço-lhe a homenagem que prestais hoje e aqui a um dos maiores vultos da açorianidade de todos os tempos. Bem haja, porque é já tempo do poder político se curvar perante os valores mais altos que acabam por o tornar legítimo. Ao fazê-lo, a sua administração dá, não só um sinal de que percebe os tempos mas que reconhece os profetas que os anunciam.
Carlos Melo Bento