terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

É bizarro

É certo que as relações laborais, na Base Americana das Lages, se regem por documentos jurídicos que ambas as partes são obrigadas a respeitar nos seus precisos termos. Todavia, parece-me estranha coincidência que as reivindicações do nosso lado surjam com um tom ultra-esquerdino e anti-americano que parece em nada favorecer as justas reivindicações em causa. Se se trata de relações laborais sem mais nada, é bizarro que essas justas reivindicações não sejam desde logo tratadas nos tribunais e tenham de vir à praça pública, sempre com a dita toada anti-americana que não parece bem num povo cuja maioria da população vive nos Estados Unidos ou tem a nacionalidade americana.
Durante mais dum século sobrevivemos abandonados por todos, menos pelos americanos que nas graves crises de guerras ou de vulcões nos abriram as suas portas ou os seus celeiros para que não morrêssemos de frio ao relento ou de fome na penúria. É, por isso, no mínimo deselegante tratar os americanos como inimigos ou como adversários. Para já, aquele nosso milhão e tal de emigrados e filhos que com as suas generosas remessas ajudaram a equilibrar as contas do Banco de Portugal e os orçamentos familiares de milhares de lares açorianos, hão-de sentir-se constrangidos com a atitude. Depois, o lugar e o modo próprios para discutir diferenças dessas não é na rua nem aos berros. Cheira isto tudo a algo estranho à nossa sempre correcta maneira de ser. Mas é bom que as pessoas de bem não fiquem quietas nem caladas.
2008-02-26

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Enigmas

Fidel, aparentemente, abandonou o poder. A propósito, recordo duas ou três coisas. A primeira é que, apesar do cripto comunismo do cubano e o anti comunismo visceral de Salazar, eles entendiam-se comercialmente. Lembro-me, criança, de ver os navios das linhas Mambíseas na doca e até de tentativas de fuga do paraíso deles para o nosso. Recordo com amargura os aviões que paravam em Santa Maria com cubanos que transportaram a morte para Angola depois da descolonização e a cruel indiferença dos governantes de então (senão da sua protecção) a esses voos criminosos que ajudaram a impor aos nossos irmãos angolanos uma longa e dolorosa guerra civil que os matou e estropiou numa escala monstruosa e desumana ou os forçou a emigrar. Sobre esses voos, os Blocos e quejandos não falam, tão ciosos de proteger os inocentes assassinos que espalham um terror suicida pelos quatro cantos do mundo, numa cegueira de pasmar e enraivecer o mais calmo. E o pior é que, governantes responsáveis ainda lhes dão troco político como se fossem pessoas sérias e respeitáveis. Arrepia-me pensar que foram levados para Havana autocarros e tantas outras coisas que empresas portuguesas haviam levado para Angola, pagos com trabalho e sacrifício, para serviço duma das mais sanguinárias ditaduras que o planeta albergou. Dessa não falam eles, talvez pensando que, com viagens turísticas apagam o sangue derramado ou tiram as grades a tantas gerações de homens e mulheres que desde os anos cinquenta aspiram pela liberdade.
Carlos Melo Bento
2008-02-19

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Autonomia, autodeterminação ou independência?




AÇORES: AUTONOMIA, AUTODETERMINAÇÃO OU INDEPENDÊNCIA?

Não é necessária qualquer nota prévia à publicação que resolvi fazer das palavras que proferi no dia 20 de Novembro de 1974, na Lagoa, a convite do respectivo Círculo de Amigos.
Vale por si o facto de o que foi escrito sobre o título de “Os Açores e Autodeterminação” ser pensado, sentido e pesado.
Sei os perigos que corro num país em que a tolerância não dá senão os primeiros passos, trôpegos, apoiada na demasiada jovem liberdade política que agora temos.
Mas essas palavras tinham de ser ditas por alguém. Coube-me a vez. Disse-as. Corriam dois riscos: um, o de serem palavras filhas da razão; o outro, de poderem ser interpretadas como espúrias do ridículo.
A quantidade de pessoas que me exprimiu, de tanto lado, a sua concordância, permite-me com segurança excluir a segunda alternativa.
Tenho razão e como tal, nada me pode impedir de a usar.
Gostaria de deixar bem assente a ideia de que as minhas actuais conclusões não são fruto de devaneios de ocioso mas são, tanto quanto pôde depreender, o caminho a que nos leva todo o desenrolar dum processo histórico nas suas determinantes. Eis o texto que então li:

“Ao aceitar o convite que me dirigiu em nome do Círculo de Amigos da Lagoa o prof. Jorge Amaral, para falar sobre um tema que me é caro a todos os títulos ou seja o da autodeterminação do povo a que pertenço, faço-o consciente da sua complexa acuidade, da sua importância no processo histórico que aqui se vive, nas suas implicações no futuro para aqueles que daqui a anos porventura se debrucem sobre os pensamentos que agora alinho, na esperança de cumprir o dever que me compete.
As sociedades como os organismos individuais têm a sua memória, (que neles se chama história) os seus centros de inteligência, decisão e vontade (que são os governos) e sangue que circula banhando todos, o qual, na sociedade, nós poderíamos parabolizar no povo.
Como todas as partes dum organismo estão votadas a um objectivo comum e único que é o da sobrevivência e geração, é mister que cada um consciencialize a função, que lhe cabe e, na medida do que lhe é possível, contribua para o fim visado para que o corpo social possa atingir os objectivos gerais a despeito das células que tenha de expurgar na incessante tarefa de renovação que lhe é imposta de fora.
Saber quando uma sociedade gera outra e esta se destaca, é porém facto que é mais fácil de conhecer quando, como e onde nos indivíduos, do que naquelas. Ambas porém se têm feito com uma certa dose de dor e sofrimento. Depois disto porém, não há maior amor nem mais sublime que aquele que une os dois seres: o velho e o novo.
Enquanto que as relações com terceiros serão sempre pautadas pelo interesse, pelo cálculo e quando muito pelo respeito, admiração ou medo, as relações entre duas sociedades, em que uma é filha doutra regem-se pelo supremo amor ao fruto da criação e, da parte deste ,pelo indestrutível e sagrado laço da filiação em que a obediência é natural, o sacrifício é espontâneo e fonte de alegria e o seu progresso é progresso de toda a árvore.
Se pelo contrário, o ser maternal se nega a dar à luz o que com prazer se concebeu, por medo da dor do nascimento, então toda a árvore periga e para evitar gangrena torna-se por vezes necessário arrancar a ferros o que teria sido facilmente obtido pelo cumprimento das leis da natureza.
É nosso destino sermos pacíficos e essa é uma constante que concretiza a superioridade do nosso viver. Não vemos necessidade de mudar de atitude. Mas do que não poderemos jamais abdicar é da nossa individualidade e do permanente e quiçá eterno esforço de pugnar denodadamente pela nossa sobrevivência como ser social diferenciado.
Desligados dos contactos com a velha Europa pela distância, fomos pelo desinteresse e pelo abandono, forçados há tantos séculos a emigrar para o continente americano. Brasil primeiro, a seguir para a América do Norte e, depois da última grande guerra, para o Canadá, forçosamente criámos uma maneira de ser que difere em alguns aspectos essenciais da de Portugal continental.
Não temos culpa se somos menos de 300 000 e nas Américas um milhão. Esse milhão de pais, irmãos, maridos, mulheres e filhos, têm necessariamente de nos influenciar, na sua linguagem, nos seus costumes, nos seus hábitos económicos, sociais e políticos.
Abriram-nos uma mentalidade tolerante, virada para o progresso, prenhe de iniciativa individual e preocupações sociais.
Criaram-nos um espírito de aventura que procura a riqueza no estrangeiro para a trazer para a sua terra onde quer leis que lhe permitam desenvolver harmonicamente o que conquistou com o trabalho de anos ou décadas. Ele não andou lá fora a mourejar para vir para cá dar o que tem aos outros.
Tudo isto criou aos açorianos desta última metade do século XX um cruel dilema que se vinha agudizando ultimamente e tomou foros de drama com a vertiginosa evolução da situação socio-política surgida depois daquilo a que os ingleses já chamam e com verdade a revolução mais civilizada do século.
Esse dilema desenvolve-se entre duas posições: a dos portugueses do continente que teimam em afirmar que queremos vender isto aos americanos.
E a dos açorianos que residem na América que nos acusam de querermos abrir as portas ao comunismo soviético, tradicional inimigo dos americanos.
O resultado disto é, por um lado, uma centralização política europeia, com tentativas mais ou menos camufladas, de criar problemas entre os açorianos luso-americanos pondo-os de lado nas negociações das bases americanas em nosso território; e criando por parte de certos movimentos políticos com sede no continente uma declarada animosidade contra tudo o que seja genuinamente açoriano.
O outro resultado é o boicote económico que nos foi declarado das Américas pois que desde o 25 de Abril que as remessas dos emigrantes decaíram desastrosamente com consequências imprevisíveis para a nossa economia que já abriu de par em par a porta do desemprego e do caudal da miséria que o acompanha.
Perante este crucial dilema compete-nos neste momento cortar as amarras que nos ligam à Europa e à América para que nos vejam enfim pelos óculos da verdade sem suspeitas degradantes nem acusações infames, iguais a nós mesmos com a dignidade de viver a que aspiramos, bem estar económico e social a que temos jus pelo nosso infatigável trabalho, vezes sem conta tão mal pago que não é raro ver-se homens sérios trabalharem denodadamente quase uma vida e terem depois, que emigrar para poderem pagar as dívidas.
Após a independência do Brasil, o velho império português, o mais antigo do mundo, manteve-se 150 anos intacto. Nós éramos sua parte integrante, mantivemo-nos fiéis às linhas mestras que Lisboa fixou.
Hoje que esse império se desmembrou já nada nos obriga à tese da unidade. Vamos buscar sozinhos a nossa ventura. Da tenacidade com que o fizermos dependerá o futuro das nossas gerações. Da honestidade com que trabalharmos virá a força da razão que nos assiste e a vitória será tão certa como certo é o nosso destino como povo, como civilização e como portugueses de origem. Assim Deus nos ajude.


1. AUTONOMIA, AUTODETERMINAÇÃO E INDEPENDÊNCIA

a) AUTONOMIA
Vejamos então para precisarmos ideias, em que consiste cada uma destas palavras: autonomia, autodedeternimação, independência.
Autonomia para alguns é “o direito que frui um país de se governar segundo as próprias leis,), ou Independência Administrativa”.
Segundo Kant, a autonomia da vontade tende a encontrar em si própria a lei das suas determinações. Para este filósofo a autonomia da vontade é o único princípio da moral.
Veremos mais tarde as aplicações deste pensamento à nossa situação concreta. Todavia o conceito da Autonomia pode ainda ser estudado sobre outros aspectos.
Segundo o direito canónico e seguindo o que nos diz Manuel Sotto Mayor, a autonomia é a situação jurídica de algumas igrejas cuja organização e governo não é totalmente independente, porque reconhecem uma autoridade eclesiástica superior que lhes sagra o bispo principal, envia o santo crisma e aceita apelações.
Durante muitos séculos, por exemplo, as igrejas do Oriente mantiveram-se em união com Roma, conservando, porém, independência sob o aspecto jurídico que lhes permitia manter as antigas tradições da liturgia, o regime eclesiástico, a teologia e a espiritualidade.
Segundo esta orientação, uma autonomia não total é compatível com o reconhecimento do primado de Roma.
Vejamos agora o significado da expressão autonomia à face dos seguintes ramos de direito, a saber: direito Internacional Público, direito Constitucional e direito Administrativo.
Quanto ao direito Internacional Público e segundo Santi Romano em sua obra “Decentramento administrativo”, autonomia exprime por contiguidade, por extensão de sentido o mesmo que autarquia, auto-governo, Self-Goverment...
A autonomia absoluta é assumida no exercício do proclamado direito da autodeterminação dos povos ou concedida a certos territórios pelo Estado de quem faziam parte”. Pelo que se vê e quanto a este ramo de direito, é difícil dizer onde acaba a autonomia e começa a autodeterminação ou independência, pois estas noções servem de base ou são desenvolvimento umas das outras.
Daí que tenhamos de regressar, também mais adiante, a este ramo de direito. Quanto ao direito Constitucional, também dito político ou ciência política, existe nele autonomia quando se confere a alguns órgãos poderes legislativos, executivos e judiciais. E em certos casos até (estado Federal) poderes constitucionais mas dentro do quadro do estado unitário ou composto.
Finalmente e para o direito administrativo temos que observar dentro da Autonomia três fenómenos. Primeiramente, a descentralização de poderes, isto é conceder a órgãos regionais não hierarquizados poderes que pertenciam ao poder central. Depois existe uma desconcentração de poderes, pois que se conferem a entidades regionais hierarquizadas com as do centro, alguns poderes destas últimas, mantendo-se todavia a dependência. E finalmente, o 3.º fenómeno ou seja a existência nos órgãos locais de poderes para arrecadar rendimentos e deles dispor como receita própria, aplicando-se à cobertura das despesas ordenadas por exclusiva autoridade sua segundo um orçamento privativo. Salvo o devido respeito por esta posição do Prof. Doutor Marques Guedes, antigo discípulo de Marcello Caetano, teremos que acrescentar que a autonomia financeira não ficará completa sem o que poderíamos designar por autonomia fiduciária isto é o poder conferido aos órgãos locais de emitirem uma moeda própria que seja o barómetro da saúde económico – financeira da autonomia, seu instrumento e sua garantia.

b) AUTODETERMINAÇÃO

Vejamos agora o que deve entender-se por essa expressão. Para o Prof. Gonçalves Pereira a autodeterminação é “a regra segundo a qual todos os povos devem poder escolher livremente as suas instituições políticas e determinar o seu destino”.
Para outros, porém, autodeterminação é “a faculdade dum povo determinar pelo voto dos seus habitantes o seu próprio destino político” (Lello). Para nós autodeterminação não é porém apenas isso, autodeterminação é a vontade juridicamente expressa por um povo que tomou consciência de que é autónomo, e portanto culto e civilizado, e daí livre de tutelas portanto emancipado que pretende por isso mesmo livremente escolher as leis que, em todos os escalões, hão-de pautar a sua própria vida. Leis sim mas as que ele compreender. Leis sim mas as que ele julgue oportunas e adequadas.
Enfim uma ordem jurídica casada com os factos, não apenas ecos distantes duma música provinda de instrumentos desconhecidos cuja melodia nos escapa porém, visto habitarmos numa onda de frequência diferente.
O artigo I.º, n.º 2 da Carta das Nações Unidas e o art.º 55 desse mesmo diploma definem autodeterminação como “o direito dos povos disporem de si próprios”.
Existe até uma declaração das Nações Unidas aprovada em 14 de Julho de 1972, segundo a qual “todos os povos têm o direito de livre determinação; em virtude deste direito determinam livremente o seu estatuto político e prosseguem livremente o seu desenvolvimento económico-social e cultural”.
Há porém entre os doutrinadores da maioria das Nações Unidas uma dificuldade: quem é o titular deste direito de autodeterminação?
Se não se conseguisse estabelecer um limite, uma base territorial para o reconhecimento desse "direito, o princípio da autodeterminação toma-se um princípio de dissolução dos Estados”. Para as Nações Unidas porém entende-se que o titular desse direito é a população das antigas dependências europeias, qualquer que seja o tempo que lá se encontrem.
Outra orientação entende que deve prevalecer a vontade do grupo maioritário e que há mais tempo habita este território diferenciado da metrópole europeia.
De qualquer dos modos, a doutrina dominante na Organização das Nações Unidas é aquela segundo a qual em caso de conflito, o princípio da autodeterminação prevalece, sobre o da integridade dos estados membros e isto, apesar dos termos expressos do art.º 7.º da Carta, sobre a competência exclusiva do Estado sobre as matérias de jurisdição interna! (Rosalynn Higgins, in «the Development of International Law Through the Political Organs of the United Nations”).

c) INDEPENDÊNCIA

Esta é a condição dum estado que não está subordinado a outro. Nos tempos que correm não é possível na prática a existência de tal desvinculação. Por mais que se procure, é difícil de descortinar um Estado que não esteja subordinado a outro quer economicamente, quer militarmente, quer ainda politicamente. Por isso a independência é, cada vez mais, relativa, surge apenas como um estatuto. O que melhor salvaguarda os interesses materiais e morais dos povos que a abraçam. Mas independência tem que existir antes de ser declarada. Porque quando se declara um povo independente e ele não tem condições para viver sem subordinações essenciais a outros povos, caímos no caos social, na desorganização económica e na mais odiosa das dependências. Poderíamos dizer agora (para logo o demonstrarmos) que apesar do povo açoriano ter sido dos povos portugueses a seguir ao brasileiro, o primeiro que esboçou um gesto no sentido da independência com a autonomia em 1895, não está ainda suficientemente preparado para um estatuto de independência que neste momento, salvo melhor opinião, lhe não serviria, embora seja inevitável a médio ou a longo prazo. Se a independência é, como ensina Rodrigues Queiró, a situação dos Estados que não tem acima de si nenhuma outra autoridade e portanto dirigem autonomamente todos os seus negócios internos e todas as suas relações exteriores, mais uma vez me convenço que tenho razão no que afirmo.
Segundo este mesmo professor, independência pode ser limitada a favor de organizações internacionais (para não falar nas federações de Estados e protectorados) como é o caso dos estados membros da O.N.U. por força do capítulo VII da Carta que faculta ao Conselho de Segurança a capacidade de decidir da aplicação das medidas necessárias à manutenção ou restabelecimento da paz e da segurança internacionais.
Os países membros do tratado de Varsóvia admitiram o princípio da soberania limitada, que lhes permitiu intervir na Hungria e Checoslováquia.


2. AS GRANDES CAMPANHAS AUTONOMISTAS.

Fixado pois o significado que demos às expressões com que vamos lidar daqui para diante, passemos em revista os grandes movimentos autonomistas que surgiram nesta ilha e nas outras, cujo significado social, político e jurídico muito contribuíram para cimentar o irreversível caminho para a autodeterminação que calcorreamos de novo.

a) A CAMPANHA 1893/95

O primeiro grande movimento surgiu no fim do século passado em S. Miguel e dá um dos primeiros passos com a publicação em Março de 1893 do primeiro número da “Autonomia dos Açores” jornal que embora editado por Jacinto Cardoso facilmente deixa transparecer a cada passo a pena de Mont’Alverne de Sequeira; nesse número se proclama: a livre administração dos Açores pelos açorianos e “àqueles que pedem um bom governo opomos: libertemo-nos do governo".
Nesse ano, em 19 de Fevereiro no velho Teatro Micaelense em Ponta Delgada, é eleita a comissão de propaganda da autonomia composta por Jácome Correia, Fonte Bella, Duarte Andrade Albuquerque Bettencourt, Francisco de Ataíde, José Maria Raposo de Amaral, Aristides da Mota, Caetano de Andrade de Albuquerque, Mont'Alverne de Sequeira, Luís Soares de Sousa e Manuel da Ponte.
Em Abril de 1893, haviam aderido à autonomia os seguintes jornais “Correio Micaelense”, “Persuasão, “Diário dos Açores”, “Diário de Anúncios”, “Vara da Justiça” e “.Aurora Povoacense”. A Lagoa a 4 de Abril de 1893, pela mão de Clemente António de Vasconcelos adere ao Movimento.
Em Maio de 1893, a “Verdade”, de Tomar, aprecia com palavras de justiça a atitude viril as reivindicações dos Açores.
Em 21 de Maio de 1893, anuncia-se que o relatório e projecto de Autonomia dos Açores elaborados pela subcomissão de expediente de que é relator o Dr. Caetano de Andrade estão concluídos; os outros dois elementos desta comissão são Aristides da Mota e Mont'Alverne Sequeira.
Em 8 de Maio de 1893, a Terceira adere à campanha através duma comissão de imprensa liderada por José Fonseca Abreu Castelo Branco.
Em Junho de 1893, é enviado aos deputados o relatório e projecto da autonomia já referidos; neles se prevê uma Junta Geral com um poder regulamentar, fiscal e tutelar em relação a todos os outros corpos administrativos. A apresentação do projecto aos deputados é feita pelo Dr. Dinis Mota, mas leva também a assinatura de dois outros deputados: Mariano Faria e Maia e Francisco Almeida Brito.
A 5 de Outubro de 1893, o «Autonómico» ameaça o governo de que promoverá a eleição de deputados pares Republicanos se a autonomia não for declarada em 1894.
Em 17 de Dezembro de 1893, a Comissão Autonómica que vinha reunindo febrilmente há mais de um mês, organiza-se em todo o Distrito.
Em 18 de Dezembro de 1893, José Maria Raposo do Amaral do Partido Progressista anuncia a adesão deste à autonomia.
A 15 de Janeiro de 1894, Serpa Pimentel, chefe Nacional do Partido Regenerador e sucessor aí de Fontes Pereira de Melo, ao responder à Comissão P. da Autonomia defende a Independência local, nos Açores dos seus apaniguados.
A 17 de Janeiro de 1894, «A Comissão promotora de autonomia administrativa dos Açores, neste Distrito, resolveu em sua sessão, que se realizou hoje às duas horas da tarde, apresentar a sufrágio popular os seguintes candidatos a pares e deputados por este círculo:

Pares do Reino
Conde Jácome Correia
Dr. Caetano Andrade Albuquerque

Deputados
Dr. Duarte Albuquerque Bettencourt,
Dr. Francisco Pereira Lopes Bettencourt.

Apoiamos com entusiasmo a resolução tomada pelos eleitos do comício de 19 de Fevereiro de1893 e estamos convencidos de que o povo há-de fazer triunfar os candidatos, que pela primeira vez vão ao seio da representação nacional defender os nossos direitos postergados”. Ponta Delgada 17 de Janeiro de 1894, in “Autonomia dos Açores”.
O Governador Civil de então tenta anular a candidatura dum dos autonomistas, o que provoca divisões no campo destes, pois Aristides da Mota e Jácome Correia tomam posições divergentes.
A 21 de Janeiro de 1894, anuncia-se a criação do Centro Católico Autonomista, em que o clero adere ao Movimento.
O Governador Civil António Moreira da Câmara Coutinho e a facção que o acompanha (Regeneradores) apresenta como candidatos para Pares: o Dr. Francisco Machado Faria e Maia e o Coronel Sousa Silva; para Deputados: Carlos Gomes Machado, Manuel Correia Medeiros e Henrique de Andrade.

Os Republicanos são o Dr. Teófilo Braga Filomeno da Câmara e João Pais Pinto (19 de Fevereiro de 1894).
Começa a campanha eleitoral e à saída da vila de Agua de Pau, depois dum entusiástico comício, às 10 horas da noite, os candidatos autonomistas são cobardemente atacados por um grupo de miseráveis que do alto da mais elevada trincheira lançaram sobre os carros enorme quantidade de pedra, de grande volume, tendo os cocheiros sido feridos, um com uma fractura no crânio e outro numa perna.
Já durante o comício, 3 ou 4 ébrios assalariados tentaram perturbar a ordem ao que o Regedor se opôs.
O Governador Civil é acusado pelos autonomistas de parcialidade e é ameaçado com a lei, senão proceder como lhe compete. O Governador Civil chefe duma das listas, transfere empregados públicos autonomistas, ameaça-os, corrompe os eleitores com obras públicas de última hora, impõe a força armada e suspende as garantias constitucionais.
A 25de Fevereiro de 1894 os autonomistas proclamam que, qualquer que sejam as ilegalidades e violências do partido no governo, não sairão da legalidade nem se emporcalharão nas imundícies dos outros.
A 18 de Março de 1894, comício na Lagoa dirigido por João Luís da Câmara, presidente do Município. Sem mais incidentes finda a campanha autonomista.
15 de Abril é fixado por edital do Governo Civil como data das eleições.
A 7 de Abril de 1894 o Governador Civil manda tropa para Povoação e Vila Franca afim de intimidar o eleitorado contra os autonomistas; os autonomistas protestam indignadamente.
Os “pobres autonomistas” ganham as eleições; eis os resultados que em 22 de Abril já eram conhecidos:
- Mont’Alverne de Sequeira: 9.466 votos
- Dr. Francisco Bettencourt Ataíde: 9.172
- Duarte Albuquerque Bettencourt: 8.752
- Henrique Andrade Bettencourt: 8.604
- Dr. Carlos M. Gomes Machado: 8.566
- Dr. Francisco Medeiros Pereira: 8.031
-Joaquim Teófilo Braga: 341
- Dr. Filomeno da Câmara: 341
- Dr. João Pais Pinto (Padre): 274
- Conselheiro Ernesto Medeiros Pinto: 106
- Francisco Almeida e Brito: 30
- Francisco Maria Supico: 4
- António Augusto P. Serpa: 1
- Caetano José Velho Cabral: 1
- Visconde do Porto Formoso: 1
-Jacinto de Andrade: 1
- José Silvério Ávila: 1
As vinganças sobre esta vitória não se fizeram esperar:
Na Ribeira Grande, todos os funcionários da Câmara que votaram nos Autonomistas foram despedidos. No Nordeste, dois autonomistas são perseguidos cobardemente.
Pouco depois, os autonomistas visitam a ilha Terceira desfazendo a lenda da rivalidade entre as duas ilhas que os continentais alimentam.
Em 2 de Março de 1895, Hintze Ribeiro assina o relatório do decreto ditatorial que estabelece o regime autonómico e nessa mesma data el-rei assina no Paço. Não é tudo o que se havia pedido mas é muito do que se esperava.
Em 1 de Fevereiro de 1894, a comissão autonomista declara a questão autonómica fora e acima dos partidos.
Em 7 de Dezembro de 1895, véspera das eleições administrativas, Mont'Alverne sugere: a ida às urnas mantendo a ordem e respeitando a lei.
Os autonomistas vencem de novo, o que provocou o pedido de demissão do governador Civil Dr. António Moreira da Câmara Coutinho. Duas derrotas tinham sido demais!

b) A CAMPANHA DE 1925

Do ponto de vista político, a mais importante campanha autonomista surgida após a vitória e 1894 foi levada a cabo em 1925 em pleno crepúsculo da 1.ª República quando os micaelenses e em geral os açorianos, ignoravam, como sempre acontece, o que se passava nos bastidores de Portugal Continental. Julgo poder fazer uma pequena resenha histórica onde apenas focarei o essencial dessa campanha. Torna-se útil tal resumo até porque nos consciencializará do que fizeram os da geração do princípio do século antes do sistema ditatorial que limitou ou deformou sem dúvida, toda a vivência político-administrativa que se lhe seguiu até aos nossos dias.
Depois disso, há que retomar o fio a meada. E digo retomar porque, como é evidente, na prática, houve nos últimos 48 anos um total centralismo completamente incompatível com a autonomia. A todos os regimes centralizadores são pesadas as autonomias, disse eu em 1970. É verdade.
Que o espírito autonómico se tenha mantido intacto, eis o grande milagre açoriano.
Na prática a campanha autonomista começou com a declaração pública feita em Março de 1925, pelo Dr., Franco que nos diz: «Os Açores estão cada vez mais autorizados a reclamar uma mais ampla autonomia».
Na mesma altura o Comandante Jaime de Sousa afirma:”Queremos administrar o que nos pertence: queremos a maior autonomia administrativa e ninguém mais do que os açorianos a tal tem direito».
Por outro lado, o Dr. Hermano de Medeiros defende o conceder mais ampla autonomia administrativa aos distritos insulares e declara em:
19 de Abril de 1925: “Os Açores para os açorianos”.
Em 15 de Agosto de 1925: “Nos Açores a Autonomia é uma necessidade duma tal acuidade que ninguém a poderá contestar ou negar”.
Justo seria que a nós competisse formular e organizar segundo as nossas necessidades as normas reguladoras da nossa vida económica e administrativa.
Para Emerson Ferreira, os Açores não devem, sem culpa sua estar sofrendo as consequências dos egoísmos parlamentares e executivos do Estado.
Em 16 de Setembro de 1925, José Bruno, proclama a ideia dum entendimento entre as forças políticas dos 4 círculos insulanos para a eleição dum bloco parlamentar insulano que “...se apresentasse na Câmara com o mandato e a missão de fazer triunfar as reivindicações dos dois arquipélagos”.
Um dos impulsionadores de toda a campanha e elo de ligação das forças Autonomistas foi o Dr. Gaspar Henriques com a sua: “Emancipação Administrativa”.
A 24 de Setembro de 1925 Mont'Alverne Sequeira declara:”Pugnemos denodadamente pela ampliação da autonomia.
Os autonomistas devem ir as urnas e há-de vencer a maioria, porque os eleitores micaelenses e marienses são homens na sua maioria livres e têm uma consciência que os guia”. E o septuagenário Aristides da Mota, no dia a seguir proclamaria: “Contem incondicionalmente os meus conterrâneos comigo e com tudo que eu possa fazer; sinto que me voltará o vigor da mocidade para ir por toda a parte pregar a nova cruzada.
Quem vier connosco fá-lo-á para honrar e defender a sua Pátria, a sua terra e a ordem social, defendendo ao mesmo tempo a pele em sangue”.
Em 2 de Outubro desse ano, o Partido Regionalista Micaelense aprova uma moção em que apoia as candidaturas independentes dos autonomistas Filomeno da Câmara e Amorim Ferreira.
Os autonomistas negam-se a entrar em acordo com quaisquer partidos continentais para apresentação de candidaturas conjuntas.
A 7 de Outubro, Mont'Alverne Sequeira e Read Henriques promotores da candidatura autonomista agradecem o apoio proclamado pelo Centro Católico em nome de quem assinam José dos Reis Fisher, João Corvelo d'Avila e António da Costa Ferreira.
Filomeno da Câmara proclama-se português de lei e açoriano de raça.
A 17 de Setembro já o Partido Regionalista Micaelense, o partido Republicano Nacionalista Micaelense e a Comissão das Candidaturas Autonomistas convidam os adeptos a vitoriar Filomeno da Câmara à sua chegada a Ponta Delgada.
No primeiro comício autonomista em Vila Franca do Campo falam: Aristides da Mota, Mont’Alverne e o Dr. António Câmara.
A 20 de Outubro, o Dr. Álvaro de Castro declara: “Sou favorável à aplicação nos distritos açorianos e muito em especial a Ponta Delgada, dum regime administrativo de completa descentralização administrativa e financeira”.
A 21, Aristides da Mota dirá: «Nós os ilhéus queremos viver com os nossos irmãos do continente sob o mesmo abençoado tecto, que os nossos comuns antepassados com tanto esforço e dedicação alçaram mas o edifício que ele abriga é muito grande, comporta muitas divisões, em algumas destas ainda que muito pequenas, nós queremos viver, com cozinha à parte, porque para nós é indigesto o esturrado do panelão comum».
A 23, o Partido Republicano Democrático inicia as suas actividades para as eleições.
A 24, António Hintze Ribeiro declara apresentar a sua candidatura e apoia Filomeno da Câmara
A 25, Álvaro da Costa responde a Aristides da Mota: «Cozinha não: Altar!”
A 27, há comícios autonomistas na Lagoa, Agua de Pau e Furnas e os autonomistas, Partido Regionalista, Partido Nacionalista e o Centro Católico confirmam as candidaturas.
A 31 de Outubro divulga-se o convite para um grande comício no Coliseu.
A 5 de Novembro, António Hintze Ribeiro desiste da candidatura pelo Partido Monárquico.
A 6, o Partido Republicano Português apresenta como candidato, Jaime Júlio de Sousa e Virgílio Saque. Um, oficial da marinha, deputado e ex-ministro. O outro, deputado e advogado.
O «Correio dos Açores.: “Chegou a hora da revolta dos escravos; é pois, pelos dois micaelenses ilustres que há-de iniciar-se o “Movimento de Libertação”.
À última hora corre boato de que podem acrescentar-se em 1.º lugar, o nome dum certo candidato não autonomista à lista desta; o Correio dos Açores apressa-se a desmentir.
Resultados das Eleições:
Filomeno da Câmara: 3.485 - Autonomista
Amorim Ferreira: 3.354 - Autonomista
Augusto Arruda: 1.742 - Direita Democrática
Jaime de Sousa: 1.207
J.O. San Bento 785
Virgílio Saque: 783
São as seguintes as listas autonomistas para as eleições administrativas que se seguiram:

Junta Geral

Ponta Delgada:
Dr. Aristides da Mota
Dr. Clemente Pereira da Costa
Dr. Duarte Manuel Bettencourt
Dr. Francisco Xavier Pacheco de Castro
Dr. Luís Bernardo Ataíde
André Pacheco de Castro
António Jacinto Ferreira
Luís Medeiros Albuquerque
Luís Sequeira de Medeiros

Lagoa:
Dr. Read Henriques
Dr. Pereira da Câmara
Dr. Riley da Mota
José da Silva Simões

Vila Franca do Campo
José M. Botelho
Dr. Urbano Mendonça Dias
José Leão
Teotónio Moniz

Povoação
Gustavo Adolfo Medeiros
Dr. Luís Medeiros Câmara
João Vaz Pacheco de Castro

Nordeste
Dr. Adolfo Martins Ferreira
João Maria de Aguiar
Dr. António de Melo
Virgínio Augusto Medeiros Botelho

R.Grande
António Tavares Torres
Francisco C. Botelho
Dr. Freire Leão Tavares
António Oliveira Botelho
Manuel António F. Coutinho
Sebastião Bettencourt do Canto

St. Maria
António Duarte Silva
António Morais Cordeiro
Guilherme Sousa Borges
Dr. Sousa Barroca

Para a Câmara de Ponta Delgada
Entre outros, Joaquim Maria Cabral, João H. Anglin, dr. Silveira Vicente.
Contra esta lista bateu-se a Concentração Democrática que foi evidentemente derrotada sendo o mais votado Autonomista o Dr. Aristides M. Mota 1.639 e o mais votado Democrata da Concentração obteve 495 votos.

c) PEQUENA TENTATIVA DE 1969

Restará agora fazer uma pequena resenha do que foi a ténue e infrutífera tentativa
autonomista de apresentar uma candidatura em 1969 à Assembleia Nacional em que tomei parte activa.
Antigo aluno de Marcello Caetano, devendo-lhe como jurista aquilo que um discípulo pode dever a um Mestre, vivi como poucos a alegria de o ver nomeado para chefe do poder executivo, outrora considerado como o cargo cujo titular exercia na prática o poder absoluto entre nós.
Constitucionalmente existia na verdade um Chefe de Estado que tecnicamente nomeava o Chefe do Governo. Na prática, esta disposição só funcionou duas vezes: a 1.ª quando Carmona nomeou Salazar 1.º Ministro em 1933 e a 2.ª quando o almirante Tomaz designou Marcello Caetano para esse cargo em 1968.
Não obstante, o primeiro discurso público de Marcello Caetano enchera o país de esperança pois aí se falava na restauração das liberdades, que o regime anterior suspendera, ou suprimira e até desrespeitara.
Como o país vivera até aí, pelo menos em certos sectores, com o receio de, com a saída ou morte de Salazar, rebentar uma guerra civil, os primeiros meses do Governo do Prof. Marcelo Caetano não afastaram as esperanças nele depositadas por muita gente.
E foi neste clima que se avizinharam as eleições de 1969. O Chefe do Governo proclamara que haveriam de ser honestas para que não houvesse dúvidas em parte alguma sobre os respectivos resultados.
E quando em Ponta Delgada se iniciaram os primeiros movimentos oposicionistas eu, que entretanto aceitara o cargo de vereador da Câmara de Ponta Delgada e que sempre fui autonomista, decidi-me a tentar impulsionar um movimento que tivesse por base essa ideologia.
Dos companheiros da hora o Dr. José Estrela Rego, distinto médico oftalmologista, foi aquele que mais influência teria na condução dos trabalhos que foram iniciados no escritório de Mariano Arruda Correia à R. do Aljube.
Presentes, além de Estrela Rego e do dono da casa, Joaquim Humberto Botelho Cabral, filho de autonomista e ele próprio grande entusiasta; o Eng.º Ribeiro Moura, tecnocrata cujos trabalhos de equipa haviam chegado ao nosso conhecimento como possível mentor duma reforma económica por que o arquipélago ansiava; presentes também um comerciante e um estudante; núcleo inicial do que pretendíamos pomposamente chamar o Movimento Autonomista.
A segunda reunião teve lugar alguns dias depois no meu escritório da Rua da Cruz, em 22 de Setembro de 1969 e, além do já referidos, esteve também presente o Dr. Jácome Correia, nome que lembrava a imagem de independência de espírito, altamente prestigiada em Ponta Delgada pela absoluta integridade do seu carácter.
Foi opinião geral, que não a minha, que as eleições não iriam ser a sério como as anteriores. E digo que não a minha porque a fé em Marcello Caetano me levara a acreditar na sua palavra e a discordar dos restantes micaelenses presentes.
Além disso, ao ser recebido pelo então Governador Luciano Machado Soares ficou a impressão de que simpatizava com o nosso Movimento, pois teve palavras que poderiam ser interpretadas como que de apoio.
Eu tinha lá ido levar pessoalmente o requerimento pedindo-lhe autorização para reunirmos.
A oposição democrática ultimava os preparativos para a apresentação daquela que foi a única lista que enfrentou aqui a União Nacional durante toda a existência desta.
E com êxito, pois os Drs. Borges Coutinho, Manuel Barbosa e João Silvestre ficariam em segundo lugar na oposição do País logo a seguir a Setúbal. O governo teve de pagar-lhes o custo das listas, conforme determinava, então, a lei eleitoral já que obtiveram mais de 20% de votos.
Nos bastidores da União Nacional, havia certo movimento, sendo aguardados com natural ansiedade os nomes que Lisboa haveria de sancionar da lista de 5 ou 6 candidatáveis que a comissão distrital enviara. Dava-se como certo os nomes de Armando Cândido, Vasconcelos Raposo e Arlindo Cabral.
Os autonomistas redobraram de esforços pois ansiava-se por uma abertura que aqueles nomes por certo não anunciavam possível.
Porém, na véspera do último dia para apresentação de candidaturas, a U.N. indicaria como candidatos os nomes de Magalhães Sousa, Sousa Pedro e Mota Amaral.
Para nós tinha sido de certo modo um êxito pois o movimento de pessoas que não haviam hostilizado o regime, fora dos quadros políticos vigentes na altura, há-de ter ajudado a repensar as propostas iniciais.
A improvisação com que o Movimento necessariamente nascera e a limitação dos prazos legais dentro dos quais todos nós nos queríamos manter, tornou impossível a apresentação da candidatura que ficou apenas como um gesto, para nós todavia de grande significado.
Quando em fins de 1973 fomos contactados para fazer parte de certas comissões da A.N.P. reunimo-nos uma vez mais. Desta feita em casa de Estrela Rego. Pesa-me a culpa da nossa entrada para aquela Associação uma vez que, como não tivesse esperança nem previa a possibilidade de um 25 de Abril, pensava que era melhor defendermos o nosso ideal dentro do regime do que fora dele.
Estrela Rego recusou inicialmente a sua colaboração e só depois de lhe lembrar a actividade de 1969 é que o seu espírito aceitou a participação naquilo de que nos afastáramos durante quase um lustre. Aceitou com a condição de entrarmos todos. A nossa influência foi ao ponto de conseguirmos que Ribeiro Moura fosse designado candidato a deputado em 1973 depois duma recusa formal do próprio Estrela Rego em aceitar o lugar.
Já na ANP, promovemos uma conferência sobre autonomia na Câmara Municipal e proclamamo-nos, autonomistas dentro do regime, no discurso que fiz ao cumprimentar o último governador que a Constituição de 1933 nos trouxe de fora, apesar da nossa oposição a essa nomeação traduzida no resultado dum inquérito que havíamos promovido em todo o Concelho de Ponta Delgada, a filiados e não só, o qual deu como resultado a vontade dos auscultados inclinar-se para a nomeação do Dr. Mota Amaral, para esse cargo.
Apesar deste resultado ter sido encaminhado para o Governo Central através dos deputados e da própria A.N.P. local, ao que julgo, Lisboa mais uma vez desprezou a vontade dos que aqui viviam.
Depois do 25 de Abril, não posso deixar de lamentar ter contribuído de forma tão decisiva para que os companheiros de ideal fizessem parte duma organização agora amaldiçoada cujos membros foram privados de certos direitos políticos.
Resta-me a consoladora esperança de que os meus concidadãos, nestas ilhas, me conhecem o bastante para ajuizarem da sinceridade do que faço e digo. E como o meu labor político só a eles se dirige e a mais ninguém porque os outros, os de fora, não me interessavam neste sentido, aguardarei o seu juízo se alguma vez me for dado a ele sujeitar-me.

3. AS ILHAS DOS OUTROS PAÍSES, COMO VIVEM?

Vejamos agora, antes de em simples esquema avaliarmos as nossas possibilidades de hoje, porque o tempo não dará para mais, qual solução que em outros países se dá a casos como o nosso.
Disponho, por amável deferência dum meu aluno de Princípios de Direito Administrativo da “Constitutional and Administrative Law” de S.A. Smith, professor de leis de Inglaterra, na Universidade de Cambridge, edição de 1973.
A Inglaterra a despeito de ser ela própria uma ilha, tem algumas ilhas à sua volta com uma população branca da mesma raça e origem daquela que habita a Grã-Bretanha.
Umas são as ilhas do Canal, a outra, é a ilha de Man com as suas 221 milhas quadradas e, em 1961, com 50 000 habitantes. Estudemos esta pequena ilha que terá um pouco menos da área e população da Ilha Terceira, do nosso arquipélago, e fica situada entre a Grã-Bretanha e a Irlanda.
O senhor desta ilha em 1765 vendeu os seus direitos à Coroa da Inglaterra por 70.000 libras, e o monarca inglês publicou um Revestment Act dessa data, que é ainda laço constitucional que liga os dois países. A ilha é governada pelo Tynwald que consiste num governador, um conselho legislativo e uma Câmara de Keys com 24 membros eleitos.
As leis aprovadas pelo Tynwald têm a promulgação real. A justiça é administrada por dois conselheiros; há também um Procurador-geral e um magistrado do quadro. Os impostos são inferiores aos da Inglaterra, estando os habitantes isentos do imposto complementar.
Esta ilha é assim uma dependência da coroa inglesa mas não faz parte do reino Unido, sendo por isso um domínio de sua Majestade, e embora caia sob a definição de possessão britânica, não é uma colónia. O seu status é único, é sui generis.
As suas instituições são muito antigas havendo um Privy Council que actua sob a recomendação de comités. O principal canal de comunicação entre a Inglaterra e a ilha são o Ministério e o Secretariado do Interior que são figuras dominantes no Privy Council, o qual muito raro actua como corpo deliberativo; o Order in Council promulga as leis. A maior parte destas são baseadas no costume.
Os recursos são interpostos para o comité Judicial do Privy Council. O Governo do reino Unido é responsável pela defesa e relações internacionais da ilha.
50% dos impostos cobrados na ilha são pagos à Inglaterra para custear as despesas de defesa e representação internacional.
Os produtos da ilha são exportados para a Inglaterra livres de impostos. E os habitantes de Man recusam a omnipotência legislativa do Parlamento Inglês.
Em 1970, foi estabelecido um comité consultivo conjunto, composto por membros em igual número representativos do reino Unido e do Governo da Ilha.
As ilhas do Canal (Jersey e Guerneseys) aquela de 45 milhas quadradas e 52.000 habitantes e esta de 24 milhas quadradas e 45.000 habitantes, são administradas pelos “Comités dos Estados” que formam o Parlamento da ilha. Este é constituído pelo Bailiff que preside, 12 senadores eleitos por 9 anos (4 são substituídos de 3 em 3 anos e tomam-se inelegíveis), 28 deputados eleitos por 3 anos e os notáveis das 12 paróquias que são membros do States por dever de ofício.
O Governador representa a Rainha, tem lugar mas não vota, tendo em teoria o direito de veto.
O tribunal é constituído pelo Bailliff, jurados eleitos por um colégio eleitoral (antes por sufrágio directo), oficiais da coroa e outros funcionários. Muitos deles são ilhéus que prestaram relevantes serviços à ilha. Decide a matéria de facto.
O Bailliff decide a lei aplicável, ele é nomeado pela coroa de acordo com consultas prévias à população local.
Há leis de duas espécies votadas pela Câmara legislativa: as primeiras necessitam do assento régio para vigorar. As outras não.
As leis do Parlamento Inglês só são aplicáveis nas ilhas por consentimento expresso dos ilhéus.

4. AÇORES E AUTODETERMINAÇAO

E nós?
Qual de nós não pensará com tristeza que o mais humilde camponês do continente é mais rico do que o maior ricaço desta terra?
Sim porque esse camponês por escudos 200$00, de comboio, tem à sua disposição especialistas em qualquer doença.
Pelo mesmo preço vai a Lisboa, Coimbra, Porto ou Évora ver se o filho está mesmo a estudar ou se lhe está a gastar o dinheiro suado em fantasias inúteis.
Da mesma maneira vai ao Terreiro do Paço reclamar duma injustiça.
Tem televisão, jornais, teatro, cafés, feiras, circos, cinemas, escolas perto, liceus a dois passos, universidades 5 ou 6, pode conhecer a Europa por dez reis de mel coado, não lhe faltam bibliotecas, nem museus, nem fado, nem Fátima, nem futebol. Sendo pobre tem porém tudo isso à disposição.
E nós? Mar e ar por seis contos a passagem, fora a estadia. E nós? Temos igualzinho mas sem tirar nem por os mesmos impostos e as mesmas leis; resta-nos essa consolação. Ah?! e o mesmo Governo!
Podes morrer com uma peritonite, por falta de médico no cais das Velas em S. Jorge, porque há mau tempo no Canal, podes perder o concurso por não ter avião nem livros nem contactos que te levem à mesma posição dos que no continente te enfrentarão, podes ter um falar diferente (que te escarnecem) e uma nomenclatura medieva; podes perder o exame de admissão à Universidade ou passar fome por a mesada ficar retida em S.Miguel pelo mau tempo, 15 dias; podes parecer um bicho do buraco para te enganarem à chegada a Lisboa, podes ser filho de mãe solteira porque teu pai esteve aqui na guerra do ananás e resolveu enganar a tua mãe e não casar com ela porque não era da terra dele; podes ser funcionário público e estar com o ordenado semanas sem chegar; podes ser preterido no concurso da Caixa por não seres de Lisboa; podes ser obrigado a assinar papéis para entrares na tua terra vindo do continente; podes ser obrigado a falir porque não deixam os teus produtos entrar em Lisboa, podes ter o projecto da tua casa dez anos para ser despachado; podem-te tirar as empresas que eram públicas e deixaram de o ser; podes ter que emigrar para pagar as dívidas apesar de seres honesto e teres trabalhado toda a vida mas temos as mesmas leis e se venderes uma sanduíche por 20 centavos a mais apanhas 18 dias de cadeia porque a tabela em Lisboa é assim; e se venderes revistas dois escudos mais, apanhas 30; se os tribunais de Lisboa te condenarem por não teres apresentado lá testemunhas e não teres constituído um advogado, tens é que te calar e pagar.
Pagas isso porque as leis são as mesmas e os impostos também que isto de igualdade nos deveres é o melhor que há.
Mas então do que precisamos nós? Em 1.º lugar que não venha para cá dar sentenças quem aqui está há dois dias e tenham o mais elementar dos respeitos pela terra e pela vontade das pessoas; porque se restauraram a liberdade, nós somos homens livres e a maior prerrogativa dos homens livres é determinar as leis porque se hão-de reger.
Somos diferentes porque somos ilhéus, distantes e abandonados; séculos.
A nossa cultura evoluiu em certo sentido que não o do continente da República.
As nossas necessidades são diferentes; precisamos de portos de pesca em mais lugares, um aeroporto em cada ilha; Universidade; poder legislar sobre matéria económica e financeira, fiscal, emigração, turismo, etc. etc.
Precisamos ter um Governo escolhido por nós que arrecade tudo o que produzimos mas tudo, que use uma política tributária adaptada às nossas necessidades, isentando o que quisermos beneficiar e reprovando o que não nos convier; um governo que execute leis que formos nós a fazer para as nossas necessidades e que seja destituído por nós quando nos não servir. A lei fez-se para o Homem e não o Homem ara a lei. Mas nós não. Aqui temos que ser fantoches obedecendo a leis que foram feitas pensando em outros.
E temos que ter um tribunal novo e nosso que fixe jurisprudência superior com base nas realidades locais e não esteja ao sabor dos casos continentais.
Pois bem, isso é o que nós pretendemos. Chama-se isso autodeterminação? Deixá-lo pois é disso que precisamos. Acabamos de vez com os tabus e o terror às palavras santas proibidas. As coisas chamam-se pelo verdadeiro nome.
E se daqui a dez anos tivermos universidades, hospitais, fábricas, aeroportos, hotéis, turismo.
VIDA! pois então que seja declarada a nossa independência para que não se torne a repetir a vida de escravos.
Pobres sim mas donos do que é nosso.
Homens sim, mas não escravos, assim queiram Deus! e os homens. Dificuldades vão haver imensas. Primeiro há quem de tal não aproveite. E esses são os que gozam com o actual estado de coisas: aqueles que têm terras e fábricas e vivem no continente beneficiando da ausência da moeda insulana para nos esvaziarem os cofres com o que lá gastam; os que têm os mercados daqui garantidos pois são eles que não nos deixam comprar ao estrangeiro que é mais barato e nós precisamos como é o caso do cimento, ou das companhias de aviação; quem quer comprar aqui não pode fazê-lo senão passando pelo mercado continental; Beneficiam os que tendo influência em Lisboa podem ser nomeados para cargos públicos ou semi públicos aqui, independentemente da vontade dos indígenas.
Beneficiam os que tendo influência em Lisboa, podem obter monopólios de fabrico ou comércio daqui sem o mínimo lucro para nós.
Beneficiam os que cá nunca seriam escolhidos por nós e nos são impostos de fora.
Todos esses vão lançar e já estão lançando, uma campanha de descrédito contra o ideal autonomista, todos esses nos vão tentar dividir com medos, promessas ou ofertas eleiçoeiras. Vão-nos ameaçar com prisões que já não têm, com balas que já não matam e ódios que nós não queremos.
Mas tudo será em vão. É a história que no-lo diz e ensina. O destino dos povos oprimidos por leis injustas é mais forte que o mais poderoso dos exércitos.
É por isso, pois, necessário que surjam autonomistas nas próximas eleições para a Assembleia Constituinte; nas ilhas todas e na América e Canadá donde os nossos emigrantes agora com direito de voto deverão também trazer os seus deputados, é preciso que vá alguém dinamizá-los e ensinar-lhes a nova generosa lei eleitoral;
Seremos uma vintena, aquele grupo de vinte deputados com que sonhava em 1925, Amorim Ferreira «seria, diz ele, uma força que decidirá tudo no parlamento».
Esse grupo terá de defender que da nova Constituição conste um preceito que reze: «Os Açores de agora para futuro ficarão sujeitos a um regime especial de autodeterminação pelo qual o povo açoriano poderá fazer leis próprias, escolher o seu governo e ter tribunais privativos».
«A defesa e representação internacional dos Açores competirão ao Governo da Mãe Pátria portuguesa enquanto as circunstâncias o exigirem ou aconselharem».
E quando o povo açoriano em plebiscito afirmar a Portugal, Pátria querida e imortal, que pretende a sua total independência, então que a Mãe da lusitanidade os proclame livres e independentes e os ajude a caminhar, como tem feito aos outros que procriou, para que deixemos de vez de ser estrangeiros na própria Pátria.

Lagoa, 20 de Novembro de 1974
Carlos Melo Bento

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Até Quando?


Prisioneiro sem remédio da açorianidade, meditei nos emigrantes, a propósito (não sei bem porquê) dos Romeiros. Na rádio, um deles explicava que a Romaria servia para pensar no porquê da vida, no que fazíamos por cá e no destino que nos aguardava. Nunca tinha pensado na questão por esse prisma e pareceu-me que tinha sentido porque, no dia a dia, sem tempo para nada, a vida começa e acaba sem ser percebida porque nunca se pára para pensar nela. O mais estranho foi isso resultar dum micaelense, o mais aparentemente insensível dos açorianos que afinal, em lógica simples, explicou o secular costume de um grupo de homens largarem trabalho, mulher e filhos por largos dias e esfalfarem-se numa corrida a pé batido à volta da ilha sem outro rumo que não seja voltar ao lugar da partida. Menos sorte tiveram as centenas de milhares que emigraram no século XX, à média de 5.000 por ano e os da primeira geração que por lá nasceu, alimentados pela mesma raiz cultural sem poderem regressar nunca. Quantas lágrimas de saudade, quantas dores de afastamento, quantas agonias de morte suportou essa imensa multidão? Desorganizados, desperdiçados, abandonados, por misérias e trabalhos sem conto em terra alheia, entre estranhos, vivendo apenas da memória do verde, do odor do incenso das festas e do tão triste adeus da partida que a geração seguinte (que lhes é roubada) perde no turbilhão de vivências desconhecidas. Até quando a Pátria Açoriana os deixará abandonados em tal sorte?
Carlos Melo Bento
2008-02-12

domingo, 10 de fevereiro de 2008

José Bruno Carreiro

AUTONOMISTA E ESCRITOR
INSVLANA-Separata
Ponta Delgada-1995
Conferência proferida na Junta de Freguesia da Fajã de Baixo


Nascido em Coimbra do Mondego, em 1880, dos amores dum estudante micaelense, veio José Bruno Tavares Carreiro para Ponta Delgada, ainda criança, na companhia de seu Pai – o grande médico operador Dr. Bruno Carreiro – cujos pergaminhos passavam por um estágio em Paris, ao tempo a "capital das luzes", onde a ciência médica possuía os seus maiores expoentes.
Regressou ao continente da República ainda adolescente, para fazer os seus estudos no Instituto dos Padres do Espírito Santo, em Braga, mas terminando o secundário num colégio privado do Porto, de onde regressava a São Miguel apenas no Verão, cumprindo assim a via sacra dos estudantes universitários açorianos até há bem pouco tempo.
Era, portanto, menino e moço quando eclodiu a "revolução pacifica" (1) do movimento autonómico de 1893 – 1895, mas é lícito supor nunca mais se ter varrido do seu espírito a loucura do ideal autonómico que o acompanhou toda a sua vida e serviu de pano de fundo para toda a sua obra.
Não sendo um militante profissional da política, os políticos toda a vida o namoraram e a sua palavra fez lei durante muito tempo nesta terra, tal foi o prestígio que alcançou perante os seus contemporâneos.
Em 1889, matriculou-se na Faculdade de Direito portuguesa que ao tempo unicamente existia na Coimbra onde nascera.
Numa universidade, nessa altura em constante ebulição, para além dos estudos específicos de cada curso, era praxe vital a cultura literária intensa, as preocupações com os grandes problemas da existência e uma actualização completa dos conhecimentos culturais da época em que se vivia.
Antero, que se formara em Direito, 50 anos antes dele, dera o mote e subira aos píncaros do saber e do prestígio. Analisando a obra de José Bruno julgo não mentir se disser que em Coimbra a sua figura tutelar foi Antero, de sangue açoriano como ele, culto e actualizado, líder e irrequieto, cuja inteligência e talento não temiam comparação.
São dele estas palavras sobre a Universidade de Coimbra: "ultra conservadora e ultra católica, era não só uma escola de revolução politica mas uma escola de impiedade moral" (prefácio de "Uma Véspera de Feriado").
Aos 22 anos conhece a obra de Eça tão completamente que o maior dos seus romances, "Os Maias", sabe de cor. Numa viagem de comboio de Santo Tirso para Lisboa, teve a ideia, meteu atestado durante 3 dias, e adaptou para teatro esse trabalho imortal do genial escritor. A Companhia Rey Colaço – Robles Monteiro, de fama internacional, levou à cena esse trabalho de José Bruno com um êxito espectacular. Julgava-se perdido o original no incêndio do teatro D. Amélia, hoje S. Luís, mas um feliz acaso levara-o entretanto para Paris pela mão de João Chagas, de onde regressou incólume, tempo depois. É editado em 1984, pela Antília, com um notável prefácio do Prof. Doutor Almeida Pavão e um curioso estudo do crítico Carlos Reis. Enquanto o original não apareceu, "Os Maias", com base em 3 actos que José Bruno conservava, foram levados à cena no Teatro Micaelense, no tempo em que os micaelenses ainda se interessavam por ele, sob o nome de "Maria Eduarda". José Bruno nessa altura não se lembrava como tinha concluído a sua peça, o que confessava sem nenhum falso constrangimento (2).
Dois anos depois da teatralização de "Os Maias", aos 24 anos de idade, finalista de Direito, compõe outra peça de teatro, desta vez da sua autoria, "Uma Véspera de Feriado", que foi logo publicada e esgotada, com a 2ª. edição, 30 dias depois e a 3.ª em 1929, pela Coimbra Editora, em que o autor corrigiu as "partes rimadas". Diz José Bruno que a fez sem preocupações literárias, rabiscada em mesas de cafés e durante as aulas…
Guardou para si o papel de Faria, estudante de Teologia. É uma saborosa comédia de costumes coimbrões que ainda hoje se lê com agrado e encantamento e pena é que não seja representada para a apreciarmos viva e engraçada, como a apreciaram no Brasil, em África, e até os Reis D. Carlos I, e D. Amélia, na bela festa que os estudantes de Coimbra encenaram no Teatro S. Carlos a favor da Assistência Nacional aos Tuberculosos, recebendo o autor da mão da Majestade Real uma bela cigarreira de prata como inesquecível recordação que seus filhos o netos guardam com indisfarçável satisfação. O êxito dessa peça contrasta com o 2.º lugar que a comissão oficial de festas da "Queima" Ihe atribuiu, favorecendo outra de que nunca mais se ouviu falar.
Regressando a São Miguel após a formatura, logo os jornais locais se fizeram eco dessa conquista, ao tempo rara. Em 1905, estreia-se nos tribunais, como subdelegado do Procurador Régio, em audiência em que "brilhou", tendo aberto banca de advogado em sua casa na Rua que tem o nome de seu Pai e que antes ostentava a do cirurgião quinhentista "Gaspar". Dá-se por esta época a sua episódica entrada na política activa com a criação de "O Distrito", órgão do Partido Regenerador chefiado pelo micaelense Hintze Ribeiro, o I.º Ministro de D. Carlos que em 2 de Março de 1895 nos concedera a Autonomia. Este jornal irá durar 3 anos, nele defendendo José Bruno a Autonomia contra os ataques do Centralismo e pondo os interesses da Terra acima de todos os outros.
É desde então muito activa a sua participação na vida micaelense. Em 1907 com o Visconde do Porto Formoso, Ferreira Cordeiro, Jaime Hintze e Victor Cabral, é eleito pelos sócios da Assistência Nacional aos Tuberculosos, de que a Rainha é Presidente, para a comissão encarregada de estudar a luta contra aquele flagelo então incurável. Em 1908, proferiu no Ateneu de Ponta Delgada uma importante conferência subordinada ao tema: "Erros Judiciários", prelúdio duma importante obra de que falaremos em breve.
Entretanto, não perde ocasião de viajar. Nesse mesmo ano vai à Itália, onde se demora 3 meses. Em Março de 1910, o Partido Regenerador, após a morte de Hintze e o assassinato cruel e impiedoso do Rei, está muito desorganizado. A adesão do Marquês Jácome Correia, escritor, benemérito, portentosamente rico e grande amigo de José Bruno, vai reanimar-lhe as hostes. José Bruno promete colaborar n' "O Distrito", que se pretende ressuscitar, sob a direcção de Manuel da Câmara. Em 28 de Agosto parte José Bruno de barco à vela, para Vila Franca do Campo em campanha eleitoral. É recebido pela Banda Lealdade e empolga os eleitores, correndo a sessão pacificamente, o que não aconteceu a outros políticos em outros lugares da mesma campanha eleitoral.
Depois, ainda tem tempo de proferir no Ateneu de Ponta Delgada uma conferência a propósito do centenário de Herculano.
Em Outubro de 1910, a queda da Monarquia apanha-o em Lisboa, a bordo do Funchal, onde tem de permanecer 3 dias antes de poder singrar para os Açores.
Em Novembro é nomeado, depois de concurso que ganhou, Secretário-geral do Governo Civil, lugar que ocuparia até à sua reforma em 1949.
Em 1911 perderia o seu bom pai; a quem os açorianos tanto ficaram devendo no campo da saúde. A revolução republicana foi muito traumatizante para a sociedade portuguesa em geral e para a açoriana em particular. Iremos ver, no fim do ano de 1910, José Bruno dar um passeio até Paris onde se encontraria com o Marques Jácome Correia e de onde regressariam via automóvel. Neste período da sua vida ele gastava dinheiro para viajar e quando regressava juntava-o para pagar o saldo negativo da viagem finda e para viajar de novo.
Ainda em 1910, José Bruno recebe a curiosa homenagem da oferta de um hino com poesia de Alice Moderno e música do militar Saraiva.
O seu nome despontava com vigor no meio cultural açoriano. Em 1909, advogado, politico, escritor, ainda tem tempo de representar teatro na comédia levada à cena no velho Teatro Micaelense, que se situava no actual Jardim Sena Freitas, " A sociedade onde a gente se aborrece..." não ia ser a sua última representação teatral, pois ainda o veremos interpretar "A Ceia dos Cardeais".
A Grande-Guerra não o vai deixar inactivo. O seu génio de escritor impele-o irresistivelmente. Vai então iniciar o relato histórico dessa guerra, de que deixou manuscrito sobre os dois primeiros anos, não o completando nem o publicando pelo escrúpulo de investigador que temeu a verdade sabida não coincidir com a verdade real, pois que só esta lhe interessava divulgar.
Quando, em 1918, o Governo criou a figura, ímpar na nossa história politico-juridica, do Alto Comissário para os Açores, temeroso que a Base Americana levasse os Açores para a independência, à sombra da bandeira dos "United States of America", José Bruno chefiou o gabinete civil do General Simas Machado, que exerceu poderes ditatoriais legislativos, executivos e até judiciais, resolvendo por golpe de mágica milhentos problemas que o centralismo vesgo e preguiçoso sempre gera e não é difícil adivinhar por detrás das sábias medidas, o dedo hábil e açorianíssimo de José Bruno.
Nesse ano, dá-se uma viravolta total na sua vida. Uma excursão de terceirenses a S Miguel traz consigo a jovem e bela Georgina Pamplona Forjaz de Lacerda. O coup de foudre, como então se dizia, produziu os seus efeitos fatais e, na excursão que o nosso jovem, já com 39 anos, faz à Terceira em retribuição da primeira, acertaram casamento que se realizou em 28 de Dezembro de 1919. Em 1922 o casal gerou dois gémeos, aqui felizmente presentes, que tanto têm honrado a memória de seu ilustre Pai, e isto apesar de lhes ter dado uma educadora alemã, que além de lhes ensinar a língua de Schiller, lhes disciplinou prussianamente a infância...
A guerra cimentou uma grande amizade entre o nosso biografado e o almirante Dunn comandante da Base americana que, terminado o conflito, o levou em destroyer para Londres e daí para Paris, chegando a deslocar-se às trincheiras da Flandres, dando-lhe a honra de participar em reuniões com os estados maiores aliados.
Data dessa época o boato, infelizmente aproveitado, de que José Bruno nos queria vender aos americanos... atoarda que ele suportou com benévola indiferença.
A paixão da escrita vai no entanto exacerbar-se à medida que atinge a maturidade. Funda em 1920 o diário "Correio dos Açores" que dirigirá até 1937 e onde publica muitos dos seus valiosíssimos trabalhos literários.
Em 1922, farto dos disparates e do espectáculo da política lisboeta, lança o desafio: "Se a Madeira quisesse...". E a Madeira quis, e organizou-se, recebendo-o, com Luís Bettencourt e dando início à segunda Campanha autonómica que praticamente liderou, levando à vitória dos autonomistas sobre os todo-poderosos do partido Democrático de Afonso Costa. Infelizmente o "28 de Maio" e os sacrifícios que impôs à Autonomia em nome da salvação nacional, não permitiram que essa vitória desse os seus bons frutos.
Apesar disso, o Estatuto que Marcello Caetano redigiu em 1938 e Salazar decretou no ano seguinte não foi feito sem a sua benéfica influência, pois aquele professor de Direito frequentou a sua casa assiduamente, dele colhendo a boa doutrina que naquela lei se consagrou.
Aliás, não era o único que a frequentava. Na Rua do Gaspar, juntavam-se quase todos os dias, em tertúlia, nomes grandes da intelectualidade local: Monteiro Arruda, João de Simas, Albano da Ponte, Rodrigo Rodrigues, Correia da Silva. Luís Bettencourt, Guilherme de Morais, Gaspar Teixeira e tantos outros, ouviram o
Mestre e talvez conspirassem, a bem da Nação, das 9 da noite à 1 da manhã.
Depois trabalhava, madrugada dentro, ate às 5. No Governo Civil só aparecia às duas da tarde, mas não consta que o seu serviço alguma vez se atrasasse.
O seu prestígio, porém, não deixa de aumentar e, em 1924, é convidado para dirigir o prestigiado jornal da capital portuguesa, "Diário de Noticias" em troca com o então director que fora colocado como nosso Ministro em Paris, lugar que José Bruno polidamente também recusou.
No "Correio", que então se tornou o jornal mais influente dos Açores, exerceu uma função pedagógica em admiráveis páginas literárias, resultado de aturada investigação e estudo.
Apesar do tempo que o jornal lhe tomava, isso nunca o impediu de manter larga correspondência com amigos, designadamente antigos condiscípulos.
Nesse ano, aliás, José Bruno vai promover um facto histórico de importância relevante para a divulgação dos Açores no País, organizando a famosa Visita dos lntelectuais, em que, jornalistas, escritores, pensadores, cientistas, professores catedráticos são recebidos entre nós com cuidado e atenção, daqui levando uma mensagem cuidada, preciosa e útil para todos, eles e nós, do viver açoriano.
Foram incalculáveis as consequências positivas desta iniciativa, única na nossa História. Em 1927 José Bruno vai chefiar o gabinete civil do Delegado Especial do Governo da República para os Açores, Coronel Silva Leal e tanto bastou para que o Delegado Especial conseguisse do I.º Ministro, um madeirense, o decreto alargando a autonomia, mas que teria vida curta, devido à intervenção salvadora de Salazar, alguns meses depois.
Nos princípios dos anos 30 deste século ocorreu nos Açores uma revolução anti-salazarista, conduzida por deportados que tomaram Ponta Delgada e prenderam as mais destacadas figuras da governação.
José Bruno estava com a família nas Furnas, de férias. Foi lá buscá-lo o seu amigo Guilherme de Morais. Preso no Governo Civil e, depois, no Hospital de Ponta Delgada, onde permaneceu de 9 a 19 de Abril de 1931 com guardas civis e militares armados, à porta, até que Salazar dominou os revoltosos e repôs o nosso biografado na posição predominante de "Príncipe dos Açores" como o jornalista deportado Ferro Alves o via então, no trabalho que depois publicou, intitulado ''A Mornaça", um livro cheio de amargura e exageros quase todos negativos contra nós masque não deixa de ter, não obstante, alguma utilidade pois a crítica é, por vezes, saudável. Às tantas, diz ele de José Bruno: "Os importantes da ilha, em correcta formação miliciana, agrupavam-se junto da Alfândega, ouvindo em êxtasi as sentenças do Dr. José Bruno cujo ascendente mental sobre os indígenas o transforma numa espécie de rei... que em, verdade, tem condições intelectuais que lhe dão o direito de hegemonia sobre os micaelenses”.
Sobre a sua prisão escreveu José Bruno no Correio dos Açores o "Diário dum preso político durante a Revolução de Ponta Delgada", (3) onde a determinada altura se pode ler:"Todos me dizem que a minha prisão é muito comentada na cidade, que ninguém a percebe... Por toda a parte se afirma que foi imposta por micaelenses, por velhas questões pessoais. Alguém conta que o Tenente Lopes Soares, interrogado sobre o motivo porque fui preso, não pôde responder, encolhendo os ombros, senão – "Porque é o José Bruno".
Já vimos como Antero o fascinava. No "Correio" escreve frequentemente sobre a vida e a obra do maior açoriano. Em 1934 profere no Liceu de Ponta Delgada que o tem por patrono, uma importante conferência subordinada ao tema: "Antero de Quental Notas sobre a sua vida". Começava a aparecer a ponta do iceberg que iria ser o seu monumental Antero de Quental, em 2 grossos volumes, que ele modestamente mas sem razão, sub-titulou de "Subsídios para a sua biografia", e que é a mais completa biografia que se publicou do poeta-filósofo, não devendo haver outro escritor que possa, no nosso país, gabar-se de ter outro tanto. Consultou 234 autores e mais de 400 livros, afora todas as obras do biografado, em prosa e verso, e volumes de cartas. Era o ano de 1948 e ele fora estimulado pelo grande Joaquim de Carvalho que lera as "notas". Nesse mesmo período (1939-50), o "Correio" publicara pela I.ª vez "O Drama do Capitão Dreyfus" de que Jacques de Bainville diria:"Neste livro empolgante, fruto de exaustivo labor, oferta-nos o Dr. José Bruno Carreiro, em prosa de intensa vibração, o documentário mais completo e mais emocionante que até hoje se escreveu em todo o mundo acerca da "questão Dreyfus".
Com 70 anos de idade ele considerava-se "no pendor da velhice" mas justificava o tema com a "imortalidade da questão Dreyfus que justifica esse trabalho em que mais uma vez se procurou reconstituir o drama sem igual na História do Mundo".
A obra é monumental mas, mesmo assim, o nosso autor ainda tem tempo para publicar a preciosa biografia de Ernesto Hintze Ribeiro (1949), feita como conferência no Salão do Governo Civil, em que lembra ter militado nos Regeneradores e fala da sua "voz rouca e baça", quando tem 69 anos de idade.
Diz-se porém "objectivo" nos seus trabalhos, por costume e termina lembrando um artigo seu, escrito quando tinha 26 anos (1906), sobre a morte do estadista: "ajoelhem comovidamente perante o seu cadáver rodos os micaelenses que nele encontraram sempre o seu maior amigo e o mais carinhoso protector, para com a sua memória contraindo uma dívida de gratidão que nunca poderá ser devidamente saldada".
Em 1955 José Bruno faz uma incursão maravilhosa no mundo da crítica literária onde procura completar a biografia do poeta, apoiado em cartas íntimas de Garrett à Viscondessa da Luz que por um feliz acaso se encontravam na Biblioteca Pública de Ponta Delgada, depois de conseguidas pelo grande José do Canto.
Das centenas de cartas que o romântico dos românticos escreveu à bela espanhola, salvaram-se essas 22 que serviram para José Bruno exibir uma portentosa cultura literária e completar a biografia do escritor, poeta e dramaturgo, com dados inéditos e importantes até então desconhecidos.
A Viscondessa da Luz inspira ao vate os seus mais belos versos –“Folhas Caídas” – e tanto bastou a José Bruno para que ficasse justificada a sua publicação contra a qual D. Georgina Lacerda Forjaz Carreiro chegou a levantar alguma objecção.
Em 1955, publica a vida de Teófilo de Braga que classifica de “resumo cronológico” por ele “organizado”.
Esta pequena obra abre com uma sintética biografia de José Bruno, da autoria do poeta Dr. Jacinto de Albergaria.
O autor chama a este trabalho um simples calendário da vida do Escritor mas mergulha-lhe na vida e na obra com a profundidade e o rigor com que já nos habituara.
Não pôs em dúvida que para se saber a verdade sobre Teófilo era preciso ouvir Francisco Maria Supico, o único que lhe merece confiança no período em que coexistiram.
Por ele descobrimos a dura verdade do Presidente que chega a querer dar facadas nos que lhe dificultaram os passos, o grande triunfo no concurso para professor catedrático, a sua imensa obra literária, o naufrágio da sua alma quando perdeu todos os filhos e a passagem pela chefia do Estado Republicano.
Apesar de viver neste remoto fim de mundo, o prestígio do seu nome abre os cofres onde se encontram cartas íntimas a que tem acesso e colou-se tanto à verdade que pôde dizer com ela que escreveu de Teófilo a autobiografia.
“A Aliança Inglesa” é um trabalho de História de Direito e dos poucos que se conhecem de José Bruno, na área em que era formado.
Ele próprio designa esse trabalho como “o grande triunfo da diplomacia portuguesa na confirmação da aliança pela declaração secreta de 14 de Outubro de 1899”.
Destinou esse trabalho a uma exposição das negociações que conduziram à última confirmação da Aliança (no) Tratado de Windsor de 1899, recordando José Bruno que publicara esse “trabalho” quase todo no Correio dos Açores em 1930, tendo sido organizado sobre documentos publicados no “British Documents on the origin of the war”, até então desconhecidos.
O tratado entre Portugal e Inglaterra é assim publicado pela primeira vez, no Correio dos Açores, em 1 de Agosto de 1930, tinha José Bruno 50 anos e só seria publicado em Portugal novamente, 8 anos mais tarde num trabalho do Professor Armando Marques Guedes intitulado “Notas da História Diplomática”.
Termina com a interessante publicação dos textos dos Tratados mais importantes da Aliança Inglesa cujo estudo fez com rigor e profundidade espantosas, no seu estilo claro e empolgante, demonstrando a maturidade dum espírito cultíssimo que se movimenta como grande senhor por entre assuntos os mais diversos, dominando-os com mestria e transmitindo-os com encanto e transparência.
Foi reeditado em 1960 pela Editorial Arquipélago, decorridos três anos após a sua morte.
Falarei finalmente na celebérrima conferência sobre " A Autonomia Administrativa dos Distritos das Ilhas Adjacentes", obra fundamental para quem quiser perceber o que se passa nestas ilhas.
Foi impressa em 1952, como separata da Revista Insulana, Órgão do Instituto Cultural de Ponta Delgada. Fê-la com 70 anos de idade. Tratava-se duma palestra, integrada na "Primeira Conferência de Administração Pública Distrital" que se realizou em 10 de Maio de 1950, a convite do Governador Civil de Ponta Delgada, capitão Aniceto dos Santos, braço direito militar de Silva Leal quando este ocupou o elevado cargo de Delegado Especial do Governo em 1927, ano em que os Açores acolheram como deportados os mais elevados e activos expoentes da democracia no País. Quer a Aniceto dos Santos quer a José Bruno se ficou a dever a forma acolhedora como foram aqui recebidos e tratados.
José Bruno confessa ter reunido neste trabalho "todos as informações para mostrar que não é uma fantasia a opinião de que também se deve ver a personalidade especial do Açoriano no movimento que há cerca de 60 anos o pôs em pé de batalha e reclamar para as suas ilhas um regime de autonomia administrativa” (página 7).
E não direi mais sobre a vida e a obra do maior vulto da intelectualidade açoriana deste século XX e um dos maiores de todos os outros.
Faleceu em 1957, rodeado pela mulher, filhos, noras e netos, cujo carinho permitiu a este genial homem público prestar à sua Terra um serviço sem preço na dignificação das suas gentes e dos seus mais altos valores.

1) José Bruno descreve o movimento autonómico na mais empolgante das suas obras: "A Autonomia Administrativa dos Distritos das Ilhas Adjacentes", Separata da revista "lnsulana", 1952.
2) José Bruno contou a história do seu manuscrito dos “Maias", no Diário de Lisboa e numa entrevista ao programa "Rádio – Teatro" da Emissora Nacional de Lisboa cujo teor me foi gentilmente facultado por seu filho Bruno Tavares Carreiro.
3) Que começa a publicar-se a 30 de Abril desse mesmo ano de 1931.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Da Justiça

FUNCIONAMENTO DO SISTEMA DA JUSTICA

ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA

Convocado para falar sobre este tema, lembrei-me duma velha estória que refere a ida dum médico cirurgião cárdio ao seu mecânico de automóvel e, enquanto este reparava diante do cliente uma deficiência no motor, disse-lhe em tom de brincadeira: - Nós os mecânicos quando reparamos os motores dos carros, somos como os médicos a reparar o coração das pessoas. Responde-lhe o médico: - Experimente a fazer essa reparação com o motor a trabalhar!
Mal comparados, o que se assiste depois da democratização da Justiça e do saudável mas assustador aumento de processos judiciais, são consertos de motor em funcionamento sem que por vezes se possam considerar brilhantes os resultados obtidos.
Do que venho observando, nestes últimos 38 anos, tirei conclusões e cimentei outras. Gostava de sintetizá-las em três pontos: mentalidade, ritmo e direito processual.

MENTALIDADE

Nós juristas temos, por formação académica, uma mentalidade sui generis que emprestamos a toda a nossa actividade. O rigor absoluto do conceito abstracto, o endeusamento do processo e o apagamento de todo o universo que não está dentro dele, um apego doentio à forma, designadamente à forma escrita, torna todos os juristas num mundo à parte. João Miguel Barros escreveu há bem pouco tempo: "As reformas fazem-se com pessoas e não apenas com boas ideias, sem o envolvimento e a motivação de todos, resolvendo antecipadamente os estigmas da acomodação cultural e mental resultantes de práticas e rotinas diversas, as resistências serão certas e poderão ser a origem do fracasso dos programas mais virtuosos". Nem mais!
Ora, como são os juristas a fazer as leis, todas elas estão imbuídas desse nosso espírito, gerando uma situação complexa, criadora duma infinidade de becos sem saída que nos conduziram à actual situação.
Perante este quadro, há quem pense que a reforma da justiça tem de ser feita por não juristas, gente que estude a natureza e dela colha directamente as soluções práticas que os juristas não têm conseguido descobrir. Acho que foi Clemenceau quem escreveu que a guerra era coisa demasiado importante para ser deixada apenas ao cuidado dos militares.
Mas foi José Faria e Costa quem defendeu que a justiça é tão importante que não "deve ser coisa só para juristas". Entendendo-se por justiça a suprema das virtudes de Aristóteles que não está ao serviço de nada nem de ninguém mas também não está contra ninguém.
Por mim, acho que a intervenção de juristas só deve fazer-se para prevenir e para dirimir conflitos.
Refiro-me à necessidade da advocacia preventiva, em que os leigos serão preparados pedagogicamente para procurar o jurisconsulto antes de praticar os actos potencialmente geradores de conflitos. E isto, quer na advocacia tradicional quer na que resulta do apoio judiciário, instituição que só por ter saído da esfera exclusiva dos juristas melhorou consideravelmente.
Só quando há conflito declarado é que o nosso espírito jurídico se torna imprescindível e salutar. Mas que conflito existe numa adopção em que todos estão de acordo? E que conhecimentos temos nós para regular comme il faut o poder paternal e a pensão de alimentos?
Num processo de falência há um mundo de questões que não estão conflituadas. Porque é que há-de ser o tribunal a geri-las? Porque é que não são as câmaras de comércio a decretar e regular as falências e recuperações de empresas com recurso para os tribunais apenas quando houver desacordo entre as partes sobre (e exclusivamente) sobre questões jurídicas e só quando as partes recorrerem delas para os tribunais?
Os tribunais não têm a mínima sensibilidade para lidar com os timings económicos. Para nós o único timing a cumprir são os prazos processuais, depois disso o mundo pode acabar que já não é da nossa conta. Daí que na fase executiva dos processos deverá também e cada vez menos, caber-lhes intervenção, a não ser por via de recurso que esse sim deve ser sempre admitido. Tal solução, aliás, corresponderia ao direito antigo em relação aos juízes pedâneos e ao recurso das sus decisões para os corregedores. Para que se há-de ocupar os tribunais? Quando as pessoas estão de acordo não bastaria uma qualquer espécie de tribunal arbitrário que, devidamente organizado mas fora dos tribunais judiciais comuns, deve redimir prévia e obrigatoriamente certo tipo de conflitos (divisão de coisa comum, prestação de contas, inventários etc.)
Por alguma razão já os romanos já diziam que summam jus summam injuria. É que o nosso raciocínio levado até ao extremo provoca o contrário do que nós pretendemos. E isto leva-nos também à outra questão:

O RITMO

Sempre me impressionou o excesso de trabalho dos magistrados e dos funcionários judiciais, com especial relevância para o destes pois que os magistrados têm poder que àqueles escasseia sendo em grande parte senhores do seu tempo. Comparar uma repartição pública qualquer com os tribunais é confrontar o descanso e a exaustão. Numas faz-se o indispensável, nas outras o muito que se faz nunca é o suficiente, apesar das secretarias judiciais estarem hoje transformadas pela força das circunstâncias em gigantescas estações de correios.
O ritmo doentiamente apressado com que se ministra Justiça hoje em dia é frenético e não permite alcançá-la na sua plenitude. O mesmo ocorre quando esse ritmo é demasiado lento, quando se leva anos para resolver uma questão e se cai por isso numa verdadeira denegação de justiça.
O nosso ritmo de trabalho tem de ser um ritmo humano mas não necessariamente olímpico. E neste capítulo rege a norma que proíbe ao advogado de aceitar mais causas do que aquelas que ele pode defender. E os magistrados? E os funcionários? O Doutor Matos Canas que nos anos setenta do século XX presidiu ao Tribunal de Ponta Delgada, dizia muitas vezes que a nossa profissão é um meio de vida e não de morte, por isso se recusava a trabalhar na hora do almoço ou depois das 18 horas, altura em que abandonava o seu gabinete ou a sala de audiência e ia fazer de mecânico, no parque traseiro do Palácio da Justiça, no mais antigo FIAT 600 que ainda existia no hemisfério norte.
Um Juiz não deveria ter mais que 365 processos por ano, tudo o que for para além disso é excessivo e é por esse número ideal que temos que nos bater permanentemente sob pena de a Justiça nunca ser a ideal, transformando-se num arremedo quase ridículo que só nós levamos a sério. Para que os tribunais retomem o seu lugar de escolas de conduta onde os cidadãos se formam e se revêem e deixe de ser a chacota preferida dos espíritos críticos que não falam alto, mais por medo das consequências do que por pensarem que não têm razões de sobra para escarnecer de nós.
Assisti durante quase 40 anos de serviço no tribunal de Ponta Delgada a períodos de cansaço insuportável que chegou a atirar juízes para o hospital e escrivães para a cama, sendo certo que estes últimos, por fim já metiam atestado médico antes de ficarem doentes quando viam que o magistrado recém chegado queria fazer num mês o que não fora feito no período em que a comarca estivera sem juiz (e isso chegou a ocorrer em Ponta Delgada durante mais dum ano seguido). A Justiça não é coisa de deuses mas de homens, escreve Faria e Costa.
Há muito que advogo a criação de tribunais móveis completos, formados por Juiz, Magistrado do Ministério Público e secretaria adequada, bem pago e privilegiado, para acudir a comarcas excessivamente atrasadas pelas mais diversas razões: falta de magistrados, doença física ou outra de qualquer das peças do tribunal etc. etc.
Esse tribunal vem, instala-se em edifício arrendado para esse fim na comarca em atraso; para esse efeito, distribui-se-lhe um número adequado de processos que são desaforados ao tribunal atrasado. Logo que este tribunal ad hoc despache o número de processos considerados suficientes para que a comarca em causa se possa considerar em dia, retira-se dali para outro lugar onde for preciso.
Mas, atenção, sempre com o mesmo ritmo de trabalho e sem pressas que mutilam, que não deixam tempo nem para pensar e muito menos para estudar. Com o volume de legislação que tem sido produzida nas últimas décadas, a falta de estudo ameaça os juristas de atingirem a idade da sabedoria com graves lacunas de conhecimento, colmatada apenas por juristas ainda em idade de amadurecimento que podem saber mais sobre o direito positivo em vigor num dado momento mas podem menos, em capacidade de alcançar os ideais pelos quais se bate a ciência que cultivamos.
Se ainda tiverem um pouco de paciência falar-vos-ia finalmente no

DIREITO PROCESSUAL

Para mim, que me perdoe o Doutor Castro Mendes de quem fui aluno no primeiro ano em que regeu a cadeira, não se trata dum verdadeiro ramo de direito. Por vezes é até um falso ramo de direito e algumas um autêntico anti-direito. As reformas a que os pensadores o têm submetido ultimamente vêm, penso eu, comprovar essa minha convicção.
Num tempo de "pensamento débil" necessariamente fluido, o direito processual ou se adapta a essa fluidez ou ameaça tornar-se todos os dias em coisa anacrónica.
Julgo que a lei processual deve deixar de ser um dogma insuperável para passar a ser uma norma orientadora do julgador, e este a verdadeira fonte de direito que, corno já acontece em instâncias internacionais, deve ter autênticos poderes legislativos, mormente no respeitante ao regulamento de procedimento e prova (Almiro Rodrigues) porque, como “juiz natural", tem que obedecer a princípios gerais de equidade que tem como parte integrante da sua essência o axioma do "due process of law", seja o contraditório prévio, seja o de recurso, busca da verdade material, imparcialidade, sagrado direito de defesa, etc. (Faria e Costa). E isso há-de levar também e ainda por outros motivos, segundo creio, à abolição do processo executivo quando é de facto uma simples fase do declarativo cuja decisão não é cumprida como já acontece com os mandados de despejo, e a impenhorabilidade da casa de morada de família, núcleo cada vez mais sacralizado dos direitos humanos.
E também conduzirá, segundo cogito, a que se acabe com esta mania de se legislar em abstracto, partindo apenas da excepção para a regra geral. Mas isso terá de ficar para outra ocasião por ser outra história que não cabe aqui hoje
Um dia encarregaram-me, do estrangeiro, de fazer uma citação, recomendando-me que deveria tentar obter a assinatura do citando mas que, se ele se recusasse ou hesitasse em fazê-lo, deveria pura e simplesmente atirar-lhe a petição aos pés e lavrar auto da ocorrência. E isso fez-me compreender que algo estava errado com o chamado direito processual. Pelo menos entre nós. Doutra volta, enviei a uma cliente inglesa a cópia do saneador a fim de ela informar uma das suas testemunhas, também inglesa, do teor das perguntas que iriam estar em causa; mas porque ambas estavam em Portugal há muitos anos e falavam correntemente português, dispensaram a tradução que lhes propôs mandar fazer. Ou por isso ou por economia ou por prosápia. Mas o certo e que, passado pouco tempo, recebi uma carta da minha Lady pedindo-me que mandasse traduzir a peça pois não conseguiram fazê-la por estar escrita em português muito arcaico. A princípio estranhei mas porque ao tempo estava a ler as Ordenações Afonsinas, ao chegar à parte do processo, percebi que as súbditas de sua Majestade Britânica não deixavam de ter a sua razão, pois a actual nomenclatura pouco se afasta da redacção medieval da nossa mais velha compilação de leis.
As leis processuais tornaram-se autenticamente em dogmas litúrgicos de que temos feito depender as nossas pobres almas de homens de leis.
A primeira reforma que o processo necessita é a de ser unificado, acabando-se de vez com tribunais e leis especiais para o trabalho, administração, fisco etc. que só servem para confundir os operadores judiciários com benefício apenas para os especialistas em tais “tecnicalidades”.
A segunda, é retirar ao Juiz a presidência do processo sem lhe tirar a superintendência, excepto na audiência para discussão e julgamento. O Juiz fez-se para julgar e não para processar. As partes e o escrivão do processo é que tem de fazê-lo. O Juiz tem de deixar de ser um fiscal de advogados e de funcionários, um fiscal de impostos e de custas, um regulador dos actos das partes e das testemunhas (porque é que há-de ser ele a tomar o seu juramento, por exemplo) e um escriba infindável, para ser aquilo que a sociedade espera dele: um julgador. Um jurisprudente. Sábio no direito e prudente no decidir.
As suas decisões têm que passar a ser verbais, registadas pelo tribunal e eventualmente confirmadas pelo autor delas, com a sua assinatura aposta na parte decisória que é a única que deve ser transcrita pela secretaria, ad perpetuam rei memoria, pois valha a verdade que na maior parte das vezes é a única que é lida pelos interessados que só quando há recurso têm necessidade de a estudar toda.
E quando houver recurso, então que o recorrente mande transcrever toda a decisão verbal e que ao Juiz recorrido seja dada oportunidade de defender o seu trabalho, contra a fundamentação alegada pelo recorrente. Enquanto nós formos, como até aqui, ortodoxos cumpridores duma liturgia medieval hoje totalmente incompreensível pela sociedade que temos de servir, não poderemos dar conta do recado, qual seja o de defender a Justiça de maneira tão forte e veemente como as "muralhas da cidade", de acordo com o ensinamento de Heraclito.
Veja-se, por exemplo a competência da Secretaria do Tribunal Penal Internacional, que me parece resumir o que a razão prática encontrou como forma de atingir nesse sector, o ideal de Justiça, ao qual dizemos subordinar toda a nossa actividade: pois aquela secretaria administra recursos humanos, financeiros e materiais e os serviços judiciais do tribunal, traduções etc., organiza as audiências segundo indicação do juiz, gere e transmite documentos, resolve o apoio judiciário, trata da protecção e assistência às vitimas e testemunhas, etc. e de toda a comunicação saída do tribunal e recebida nele. (Almiro Rodrigues). Acabo corno comecei, com uma pequena estória verídica, pois passou-se comigo: urna mulher foi a uma tentativa de conciliação em processo de divórcio desacompanhada de advogado. Eu, que representava o autor, deixei-me ficar calado depois de informar o Juiz de que o meu cliente não queria conciliar-se. Aquele explicou então os direitos da Ré: agora o Senhor. Funcionário vai citá-la, dar-lhe-á um prazo de 20 dias para a senhora contestar; se quiser fazê-lo terá que constituir mandatário judicial; depois, darei o despacho saneador de que ao seu advogado será dada oportunidade de reclamar; uma vez aquele fixado, será notificada para apresentar a prova, após o que marcarei audiência de discussão e julgamento. A pobre mulher aflitíssima com o que estava a ouvir sem perceber patavina, apenas conseguiu dizer: - E o Senhor Juiz acha isso justo?
Ponta Delgada 28 de Novembro 2002
Carlos Melo Bento

Aqui d'el Rei

D. Carlos I, o Chefe de Estado que assinou o decreto de 1895 com a primeira autonomia dos Açores, visitou-nos seis anos depois, gerando uma onda de forte simpatia pois, amável e cativante, ficou na nossa memória com uma série de gestos benemerentes que a todos sensibilizaram. Decorridos mais seis anos, é assassinado com seu filho primogénito, o que nos deixou incrédulos e estupefactos. A proclamação da República não apagou a vileza do acto e a revoltante desumanidade de se matar um jovem só por ser filho de quem se odeia. E quando o assassinado é o Chefe do Estado, tal morte soa a abjecto, antinatural e condenável parricídio. A Rússia que seguiu o exemplo português e assassinou cobarde e cruelmente adultos e crianças reais, quando acordou do pesadelo soviético, redimiu-se recolhendo os corpos no panteão e chorou a nódoa indelével da vergonha que há-de manchar para sempre o povo que a cometeu. Uma república que tem uma Família Real tem mais património que outra que a não tenha, porque símbolos vivos duma História que os colocou no mapa. A presença de Soares e Cavaco no casamento de D. Duarte, deu uma lição de classe e condenou o regicídio, mostrando que os civilizados podem conviver com o seu passado em tolerância e liberdade, sem complexos medíocres, tentando fazer melhor pelo País do que o regime que os precedeu. Quando precisou, a Espanha usou a Família Real em seu proveito. Porque a tinha. Se a nossa for factor de união da antiga portugalidade todos ganharemos.
Carlos Melo Bento
2008-02-04

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

ARISTIDES AMBAR RAPOSO





PONTA DELGADA
1991

“Pintando a realidade da paisagem açoriana, tentei por esta forma documentar os seus férteis verdes e a angústia dos céus molhados de cinzentos indefinidos que tanto se repercute no carácter dum povo, rodeado de mares, profundidades, introspectivas.

Ao abandonar a luz estiolante do «atelier», pintei a paisagem que tinha diante dos olhos, rodeado por toda aquela gente, que se abeirava com a curiosidade característica, tentando estabelecer uma relação entre a paleta e a sua natureza, um pouco como ela esperava e entendia.

É tempo do artista descer do pedestal das realizações individualistas e especulativas que tanto tem contribuído para o divórcio actual entre «arte» e «público».

A arte é «fazer» mas isto é pouco quando se pretende tornar um povo interessado e interessável.


Ao reunir algumas obras para esta exposição, apenas posso afirmar que, «ser» incompreendido numa linguagem nova, criativa, enquadrada na filosofia da arte moderna, integrado no tempo e nas correntes importadas para consumo duma elite intelectual, é tudo a quanto me proponho!

Que me perdoem os críticos eruditos que escrevem p'ra ninguém se o real ultrapassou nestes quadros toda a minha imaginação”.

Aristides Ambar
Lisboa, 1975
(do catálogo da Exposição «Açores - Ilhas a redescobrir», Palácio Galveias)


NOTA DO DIA

(Para o Ambar Raposo)

Deixem entrar o cântico dos pássaros
e o perfume das flores recém nascidas;

Deixem entrar o riso puro das crianças
e tudo o que lembrar que a vida continua.
Deixem entrar a Amizade, a Poesia
E tudo o que trouxer
uma alegria nova de viver.

Norberto Ávila
Lxª 31-1-59



INTRODUÇÃO À BIOGRAFIA DE
ARISTIDES AMBAR RAPOSO


A pintura na ilha de S. Miguel é uma arte cultivada desde o tempo do povoamento. Em Portugal ela atingira, no séc. XV, precisamente quando o Regente Dom Pedro (o das Sete Partidas) e Dom Afonso V para aqui encaminharam os primeiros povoadores, a sua forma mais esplêndida (Painéis das Janelas Verdes ou de S. Vicente de Fora).

Flamengos, hispânicos e italianos teriam habilitado os geniais pintores portugueses a encher literalmente as igrejas que por todo o lado construíram nos Açores, de pinturas religiosas que apenas de quando em vez contêm raros apontamentos leigos.

Os Açores foram povoados por gente aventureira de todas as classes sociais mas, desde muito cedo, a arte religiosa, designadamente a pintura, imperou. O Dr. Luís Bernardo Leite Ataíde que é porventura o introdutor da história da arte entre nós (Etnografia, Arte e Vida Antiga dos Açores, em 4 volumes) referencia e estuda grande número de obras de arte e por ele se fica a saber que os micaelenses desde há muito puderam encantar-se com obras atribuíveis a Rubens, Murillo, E1 Greco ou que de qualquer modo saíram das respectivas escolas e ornamentavam os interiores dos nossos belos templos.

O mesmo autor regista também uma longa lista de pintores que aqui viveram praticamente em todas as épocas da existência histórica açoriana, o que muito abona a nossa gente cujos artistas, rodeados de beleza natural praticamente por todos os lados, souberam deixar-se influenciar por ela criando essa imensa herança das chamadas Belas-Artes que aí estão apesar dos bárbaros atentados que a ignorância e a estupidez humana sempre desencadeiam contra o bom e o belo.

Como vamos estudar a vida dum pintor contemporâneo, é bom rever pelo menos o século XIX, como andamos de pintura e porquê, em S. Miguel.

É que um pintor não surge de geração espontânea e o homem que tenha génio de pintor só o será se, de facto, for crescendo em escolas mais ou menos institucionalizadas, não necessariamente em academias porque as não há em todos os lugares mas nos ateliers dos consagrados, verdadeiros conservatórios das regras da difícil arte de criar imagens.

O citado autor refere que em 1837 residia em Ponta Delgada o padre inglês Brandt, que se dedicava ao desenho, sendo professor de alguns amadores de pintura, dos quais o seu mais notável discípulo foi Marciano Henriques da Silva (1831 -1873).

Um pouco depois, aparece-nos Charles Martin (inglês?), pintor que em 1814 ensinou também pintura... e ainda o italiano Vicente Malio, natural de Roma, que já aqui se encontrava em 1829.

Malio deixou pelo menos um discípulo em João Albino Peixoto (1803 -1891), que ele próprio diz ter “muito génio para a dita arte (pintura)”. [1]


Chega mesmo a criar-se em S. Miguel a Sociedade dos Amigos de Letras e Artes num salão de concurso de desenho praticamente ao mesmo tempo que tal se fizera em Paris (1849).

Luís Bernardo refere a existência nessa altura duma verdadeira Academia com Pedro Alcântara Leite como professor com 4 Adjuntos e 21 Alunos!

A este ambiente chega em 1864 Cândido José Xavier - Tini que, com Lambertain, executam a decoração do desaparecido Teatro Micaelense.

“A este artista deve-se, em parte, o desenvolvimento da pintura e do desenho no nosso meio)”[2]. Ele foi professor de desenho do Liceu de Ponta Delgada, 1870, e presidente da Sociedade das Artes Reunidas e seu professor.

Cândido Xavier, ajudado por sua filha, ensinou desenho, pintura a óleo, pintura a pó de lápis, a pastel, aguarela, oriental e a dois craions.

Estes ensinamentos vão perdurar no tempo, traduzindo-se por vezes em exposições (1822, 1895, 1901).

No princípio do século XX, vamos focar a atenção na figura de Viçoso May, director da Escola de Desenho Industrial, que faz escola e deixou discípulos, como também aconteceu com Constâncio Gabriel da Silva.

Esse Século surge com o grande pintor e mestre, Domingos Rebelo, que vai influenciar toda a pintura micaelense até aos nossos dias.

Muito jovem, é descoberto pela imprensa. O Conde de Albuquerque manda-o para Paris à sua conta (José do Canto fizera o mesmo com Marciano Henriques) para estudar e Domingos Rebelo não decepcionou aquele generoso titular. Retrato, paisagem, flores, recantos, estudos históricos, etnológicos, religiosos e sociais em carvão, aguarela, óleo, tapeçaria, vão cobrir literalmente as mais importantes casas públicas e particulares de S. Miguel e, depois do Mestre fixar residência em Lisboa, todo o continente da República vai apreciar o pintor da alma e da quinta essência das pessoas e das coisas. Depois do seu falecimento, as pinturas de Domingos Rebelo atingem somas astronómicas.

De qualquer dos modos, como disse, ele vai ser mestre e inspirador de toda a gente.

Na casa do próprio Conde de Albuquerque há-de conviver com uma pintora de indiscutível mérito, em cujos quadros de real valia, beleza e ingénua regionalidade pode notar-se a sua influência - trata-se de D. Maria Ana de Andrade Albuquerque Bettencourt.

O próprio Luís Bernardo, sua filha Maria Luísa Costa Gomes, e sua neta Luísa Constantina hão-de beber em Domingos Rebelo, senão a inspiração pelo menos a técnica e o exemplo duma vida inteiramente dedicada à solução de alguns dos milhões de problemas que a arte de pintar suscita.

Victor Câmara é também astro de primeira grandeza no universo artístico açoriano. Ele próprio discípulo de Domingos Rebelo, vai seguir uma carreira sui generis cultivando o retrato, a paisagem, a composição histórica, a caricatura.

Mais recentemente Tomás Vieira, pintor académico de escola portuguesa do post-guerra cuja produção vem evoluindo a passos largos e que marca obviamente uma viragem estrutural na pintura micaelense, elevando-se sem discussão à categoria de introdutor entre nós da pintura moderna, marco importantíssimo da história da pintura universal.

Outros pintores açorianos se vêm destacando no mundo das artes mas que, por não viverem nem trabalharem entre nós, dificilmente poderemos considerá-los como pertencentes à nossa história da pintura (Ana Vieira, Câmara Pereira, Carlos Carreiro, etc.).

Já depois da primeira edição desta obra ter visto a luz do dia, desabrocharam entre nós diversos talentos que não é justo deixar de referir. Destacarei apenas três nomes Paula Mota, Urbano e Emanuel Carreiro que me parecem os mais representativos.


É neste ambiente riquíssimo em pintura e pintores que iremos abordar a vida e obra (até agora, 1995) de Aristides Ambar Raposo, produto sem dúvida do meio em que nasceu e viveu nos anos cruciais da existência, cujo génio permitiu alcançar a voga que um público aparentemente adormecido para as artes, foi por ele desperto com um mágico toque de pincel.
Açores -1991


BIOGRAFIA

Aristides Ambar Raposo nasceu em 24 de Fevereiro de 1937, na Rua João do Rego de Cima, numa casa a meio da Rua à esquerda quem desce, que na cidade de Ponta Delgada, seus pais haviam arrendado para habitar e onde viveu até aos 3 ou 4 anos de idade.

Seu pai chamava-se Aristides Ambar Raposo e era funcionário superior da Vaccum naquela cidade. Casara-se aos 59 anos com Ernestina da Conceição Silva Raposo que era viúva, sem filhos, muito mais nova do que ele e que lhe deu dois filhos, o mais velho Gualter Ambar Raposo e, 4 anos depois, Aristides.

O pai era anglófilo, falando fluentemente inglês e a mãe dava explicações a crianças.

Reformado da Vaccum, Aristides pai, durante a guerra de 1939 – 1945 passou a trabalhar na Azores Coaling, firma inglesa de carvões de hulha. Depois da sua morte[3], o filho descobriu que ele era Mação, facto porém que não o iria afectar.

Desde sempre Aristides Ambar sentiu o apelo das Belas-Artes, facto que aliás não era muito bem recebido em casa em que o meio artístico lembrava doidice, estroinice e pobreza...

Frequentou a Escola do Campo de S. Francisco onde foi aluno de D. Laurinda que tinha fama de boa professora mas cujos rigores físicos faziam parte dos métodos usados para garantir o sucesso escolar...

Cursou depois a Escola Industrial e Comercial de Ponta Delgada, no velho Palácio Jácome Correia, a S. João, onde foi aluno do Arquitecto Quintanilha, de Domingos Rebelo e do escultor Xavier Costa, presentemente no Porto, que foi quem mais o moldou no campo do desenho.

Aos 16 anos, vai para Lisboa para a Escola Agrícola de Paiã, onde havia estudado já seu irmão.

Era professor de Desenho na Paiã, Mestre José Maria Amaro Jr., formado em letras, arquitectura e pintura cuja actividade dispersa o tornava conhecido no meio intelectual de Lisboa. «Desenhava lindamente e pintava com espírito científico-didáctico, sendo os seus trabalhos belos mas frios».

Foi Amaro Jr. que o atirou definitivamente para a pintura, ensinando a Aristides Ambar mas sem o influenciar ou encaixar em qualquer escola, deixando-o sempre seguir o seu próprio percurso natural.

Vai então trabalhar no seu atelier, na Rua da Igreja, em Alvalade, durante 5 anos.

Aos 20 anos, faz a sua primeira exposição no Palácio da Independência em Janeiro de 1959, merecendo do grande Norberto Ávila, para alguns, o maior dramaturgo português vivo, a seguinte «Nota do Dia»: “Deixem entrar o Cântico dos pássaros / e o perfume das flores recém-nascidas; /Deixem entrar o riso das crianças / e tudo o que lembrar que a vida continua / Deixem entrar a Amizade, o Amor, a Poesia / e tudo o que trouxer / uma alegria nova de viver».

Fernando Pamplona, escreveu a propósito de tal exposição, no Diário de Notícias que Aristides Ambar era: «Vocação clara, forte, irresistível». E Amaro Jr. proclama-o “artista que se olha com agrado”.

Aos 22 anos, casa, na Igreja de Carnide, com D. Maria Filipa do Nascimento Cristo de 19 anos, algarvia que conhecera na Praia da Manta Rota, perto de Monte-Gordo, para onde fora passar férias de Natal em casa de seu amigo e colega Luciano Palma Guerreiro.

Após dois anos de namoro, deu-se o casamento de que nasceram Filipa Cristina Nascimento Cristo Ambar Raposo e Aristides do Nascimento Ambar Raposo.

Vive então em Lisboa com a família, em Campo d' Ourique à Ferreira Borges, já como pintor profissional, basicamente dedicado ao retrato. Nesta altura, ganha o prémio regional de pintura a óleo, em 1960, e o prémio nacional de pintura no mesmo ano, que recebe das mãos do Ministro de Educação Nacional, Leite Pinto.

Participa a partir de então em várias exposições colectivas dedicando-se porém preferivelmente ao retrato.

Pintou Ferreira da Costa, o celebrado autor de “A Selva”, o Maestro Sampaio Ribeiro; Baltazar Rebelo de Sousa, Mestre Amaro Jr., Vitorino Nemésio e Natália Correia.

E permanece em Lisboa até 1965, altura em que é mobilizado como furriel e embarca no Vera Cruz para África (Angola) integrado no destacamento de Intendência, da Administração Militar, comandado pelo Alferes João Carlos Falé Barahona Fernandes. Vai só, pois a família só irá juntar-se-lhe, um ano depois.

É curioso notar que Aristides Ambar só vai à tropa com 26 anos. Esclareça-se que o nosso artista tinha pintado o retrato do Comodoro Rogério de Oliveira, sobrinho do Ministro do Exército da altura -Mário de Oliveira… e entre eles ficara arranjado que Aristides Ambar iria para África, como pintor militar, com a missão de documentar pictoricamente a guerra.

Certos esquecimentos e distracções de artista fizeram com que o tempo passasse e o Ministro fosse substituído por Luz Cunha perante quem a arte não teria tanta importância.

Esse facto e a entrada em funcionamento dos computadores mobilizaram o nosso homem como já dissemos.

A mulher e a filha Tina chegam de avião a Luanda em 1966, onde permanecem 3 dias, após os quais, tomam novo avião para Maquela do Zombo, perto do Congo belga. É uma pequena cidade que servia de base de reabastecimento das tropas portuguesas que prestavam serviço no Norte de Angola. O filho ficara no Algarve com os avós maternos.

A actividade de Ambar em África é bastante intensa do ponto de vista artístico e cinegético. Ora, a África tinha sido para ele um mito que exercia uma indefinível atracção, a floresta, a savana, a aldeia, o capim penetravam-lhe pela alma extravasando-se nas inúmeras pinturas que fez e lá ficaram.

Luciano Palma Guerreiro, colega da Escola Agrícola, o mesmo que lhe tinha apresentado a mulher, aparece-lhe em África como empresário de algodão a quem o governo oferecera 2.000 hectares de terra e a Cotonang (Malange) ajudam, financiando; Ambar acompanha o amigo de jeep pelo mato a demarcar o terreno que lhe interessava para futuro registo. Tal terreno deveria não ser ocupado por angolanos. Tirou então inúmeros apontamentos de viagem.

Palma Guerreiro perdeu tudo em Angola com a independência deste país, em 1975 e Ambar vem a encontrá-lo nos Açores depois desta data. Escapara por mais duma vez ao fuzilamento devido à sua presença de espírito e capacidade de diálogo com os oficiais angolanos.

Paisagem, documentação etnográfica, roupagem de angolanas e angolanos, o retrato de uma neta da Rainha do Congo, tudo pintou.

Grande companheiro de Aristides Ambar em África, o seu cão «Gringo», amigo fiel de todas as horas e que regressou com ele a Lisboa. Trata-se dum belo pastor alemão africano.

Uma mulher-preta sentada no mercado, debaixo duma Mangueira cheia de mangas a vender mangas... foi o tema do quadro que melhores recordações lhe deixou pelo insólito do tema, tendo a pintura ficado bem conseguida.

Figuras, pintou-as sempre a óleo mas deixa inúmeras aguarelas testemunhando as cores africanas.

O óleo duma sanzala ao entardecer seria todavia o único apontamento que faz da cor africana fora do calor a pino que mais gostava de pintar. Pintou em Cuímba, pintou durante uma chuvada sobre o capim seco. O material que usava era papel para aguarela e tela para óleo que, em parte, foram trazidos de Lisboa e o restante comprado em Luanda, cidade que ao tempo “tinha tudo”.

De resto, um ordenado, ao tempo, principesco permitia um certo desafogo no campo material.

A vida familiar em África correu optimamente. Instalados numa vivenda, vizinha da mata (com quintal deitando directamente para o Congo!) com jibóias, javalis... Casa grande, onde Ambar recebia frequentemente amigos, designadamente açorianos, entre os quais lembra o Major Cristiano Martins e mulher D. Rosa Pracana, que acabam de receber uma Companhia de açorianos, com massa sovada e produtos açorianos que ajudavam a matar saudades.

Dois anos em África e nunca ouviu um tiro! Em 1969 (Julho) regressam mulher e filhos na TAP para Lisboa e Ambzr regressa com a sua companhia no Vera Cruz, acompanhado do seu inseparável «Gringo», que viria a morrer de cancro, 3 anos depois, no Algarve onde a família se estabelece na Praia da Manta Rota e constrói uma casa numa aldeia de pescadores.

É o período algarvio que durará 2 anos, em que a paisagem o influencia e inspira em óleo, aguarela e carvão, com que pinta também tipos humanos e enquadramentos etnológicos.

O tom ocre predomina no Algarve e caracteriza uma série de trabalhos seus como o «Ceifeiro», «Aldeia na Serra» e «Casario Algarvio».

É um período feliz senão o mais feliz da vida do artista, cuja alma despreocupada se encontrou com as amendoeiras em flor.

Conhece então o escritor Madeira Santos com quem, ao serão, na casa de Ambar ou na do escritor («Casal da Preguiça») fazem tertúlia, onde se reúnem João Hogan, pintor cuja visão da natureza era desértica. António José de Oliveira Martinho, «bon vivant» que mais tarde viria a ser produtor cinematográfico e actor famoso; sua mãe Ângela Sarmento, a Tareca, escritora que o Concurso televisivo «A Cornélia» tornaria famosa em Portugal. Sua filha Ana Maria Magalhães que foi argumentista da telenovela portuguesa «Palavras Cruzadas», participava na tertúlia.

Muitas mulheres bonitas coloriam o conjunto. Grandes sessões de música com guitarra e fado (o Dr. Manuel Maria Martinho era exímio na guitarra) em que a «Tareca» sobressaía com a sua voz de fadista inspirado.

O Algarve nessa altura começava a pulular de estrangeiros e, entre esses, alemães, dos quais a bela Ingrid que frequenta a tertúlia do «Casal da Preguiça» e cuja beleza vai provocar exageradas inspirações no nosso artista. Pintou-lhe o retrato a pastel que hoje por certo ornamenta uma fria parede da pátria de Goethe.

A partir de 1970, começa a deslocar-se a Lisboa onde se demora cerca de três meses, residindo com o seu amigo Miguel Sousa Machado, companheiro de África, à Lapa, que adaptou a atelier, pintando retratos, paisagens, naturezas mortas, tipos humanos populares.

Miguel sentava-se horas a fio a vê-lo pintar, comentando com espírito crítico e fina ironia o correr da obra.

Entra Ambar, então em período diferente da sua pintura. Captando os claros-escuros, influenciado pela obra de Rembrandt com algo da técnica expressionista então em geral voga na capital do império e de que é expoente Artur Bual, pintor que admira, apesar de abstracto e gestual, e que se celebrizou pela pintura de Cristos.

Ao mesmo tempo, no Algarve, continua a pintar.

Em 1973 arrenda, na Lapa, em Lisboa, um apartamento onde se instala e abre atelier, mantendo todavia, os seus regressos ao Algarve, onde ficara a família.

É, neste período, que surge na vida de Ambar a estudante de história d'Arte Ana Neves da Costa, bela alentejana, cuja docilidade, aliada a um corpo escultural vão inspirá-lo no novo género que cultiva pela primeira vez: a escultura.

Havia-a conhecido no Algarve e ela vai estimulá-lo durante 3 anos, durante os quais Ambar vai sentir os primeiros sinais de crise no seu casamento.

Na verdade, a grande paixão por Ana Costa não passou obviamente despercebida a D. Filipa.

Perdido de amores pelo seu modelo, ainda assim a sua alma artística envolve-se sentimentalmente por uma conterrânea, estudante de medicina, Nema de nome.

São duas paixões meteóricas que desapareceram com a mesma velocidade com que surgiram, deixando porém um rasto na sua obra.

Estamos em 1974. Ana Neves da Costa que cursava história de arte na Faculdade de Letras, era, ao mesmo tempo, jornalista da Revista Plateia, que nessa altura continha actualidades artísticas e sociais e tanto bastou para que resolvesse aceitar dar uma entrevista à «Plateia», onde tratou de vários temas importantes, tomando posições que vale a pena registar.

Vejamos, por exemplo, o que pensa no que se refere à pintura dita comercial, ou seja, a pintura que é feita por encomenda e paga pelos interessados. Eis a posição de A.A.:

-“Quando pinto, não é a pensar no público, estou entregue à minha própria opinião, completamente alheado da opinião pública”.

-Mesmo quando pinta retratos?

-“Mesmo aí. Para mim, a pintura comercial só pode existir, quando o pintor passa a sacrificar o tema e a técnica ao factor tempo, a fim de tornar a coisa mais rentável.

-Bem sei que se especula muito à volta da chamada comercialização da Arte, especulação esta absolutamente imprópria, uma vez que as grandes obras de arte que a humanidade conhece como a “Ronda da Noite”, de Rembrant, o “Tecto da Capela Sistina” ou ainda, a tão famosa «Gioconda» não foram mais que encomendas feitas aos pintores.

De resto, embora pintando paisagens, a minha actividade no retrato não é mais que o remo do meu interesse pelo ser humano. É para mim mais importante pintar uma pessoa, do que uma rosa, uma árvore, uma casa, que note, também pinto!

As pessoas simples, marcadas pela vida, especialmente do campo, apaixonam-me como pintor”.

-Mas não acha que as pessoas da cidade podem possuir igualmente, uma vivência que as marca?

-“Sim, mas as pessoas da cidade tornam-se mais marcadas pelo «savoir-vivre», ou por um viver quotidiano das relações sociais. Não mantêm tanto a sinceridade das expressões que o homem do campo nos dá, devido exactamente, à sua vida simples e menos dissimulada”.

-Porque é que nos seus quadros do campo, aparecem em especial, velhos e não os homens novos, em plena posse das suas capacidades físicas?
-“Pois, a nossa actividade agrícola contemporânea é exercida predominantemente, por velhos... Os novos emigram, como sabe, ou enveredam por outros ramos de actividade operária”.

É também interessante a posição de Ambar quanto ao fundo que compõe para os seus retratos e que lhes empresta um efeito procurado com intenção. As suas palavras são, portanto, necessárias â compreensão da maior parte da sua obra:

-Desde sempre que se dedica ao retrato?

-“Sempre tive mais interesse pela figura humana”.

-Olhando para os seus quadros, vê-se que muitos deles têm um fundo liso.

-“Os fundos lisos só existem quando toda a minha atenção se integra e prende numa cabeça, ou num tema principal. O fundo não é mais que o atributo, e como tal só existe para valorizar o elemento. O fundo liso está subordinado à temática do quadro e quando prendo mais a atenção a uma cabeça, por exemplo, não tenho sequer necessidade de fundos. Eles são um alheamento de elementos decorativos ou simbólicos. O fundo liso que emprego, é uma maneira de fugir a um simbolismo ou a um decorativismo que me pode contrariar a temática e a poesia do elemento principal”.

Pertencerá Ambar a alguma escola de pintura? Estará ele ligado a alguma corrente filosófica que se exprima pictoricamente? Eis a posição do próprio artista:

-Diga-nos, em que escola se pode ou julga integrar?

-“A minha escola, não sei sinceramente qual é. Sou um pintor figurativo e estudo a figura, não me sirvo dela. Não tenho a preocupação de saber ou de me integrar numa corrente”.

Onde é que aprendeu pintura?

- “Estudei particularmente com o Mestre Amaro Júnior”.

-Considera grande a influência que ele teve na sua Arte?

-“Poderei considerar que essa influência foi pouca, muito embora fossem enormes os ensinamentos que o professor Amaro deu, ao iniciar-me no mundo da Arte”.

-Desde o tempo em que começou a pintar até hoje, a sua obra tem tido diversas fases. Situar-se-ão estas, dentro de uma linha evolutiva de aperfeiçoamento?

-“A fase actual da minha pintura denota uma menor atenção ao desenho, do que no princípio. A cor absorve-me cada vez mais”.

-Pode-nos falar um pouco sobre a sua técnica?

-“A técnica não é mais que o veículo entre o pintor e a pintura. Mas é ele que a subordina; a técnica é do seu domínio e não vice-versa. Assim sendo o pintor vai criando a sua própria técnica, nesta experiência constante de pesquisa que é a pintura!”

Nem todos os biógrafos tiveram a nossa sorte de ouvir o próprio artista falar de si próprio e da sua técnica. Não nos esqueçamos porém de que a entrevista foi dada em 1974 e de que depois dessa data muita tinta correu... por isso teremos oportunidade de voltar a este tema.

Em 1973, D. Filipa resolveu empregar-se numa Companhia de Seguros, em Lisboa, cidade para onde vai viver com os filhos.

Nesse ano, a velha tertúlia algarvia renasce, em Salvaterra de Magos, na casa de João Ramalho, conhecido ganadeiro que fora colega de Ambar na escola agrícola de Paiã e padrasto do nosso conhecido Tozé Martinho. Na quinta da “Gatinheira” cantava-se o fado, jogava-se e conversava-se animadamente. A única diferença estava na troca da praia algarvia pelos cavalos ribatejanos.

Data desta altura o interessante trabalho que Ambar faz, pintando toda a colónia americana de Cascais. Com efeito, conhecera o coronel Backus cujo retrato pintou e lhe cedera a casa como estúdio, onde retratou os conterrâneos dele, numa interessante e proveitosa jornada profissional.

Registe-se que não eram só americanos os estrangeiros que já utilizavam os serviços de Ambar no retrato. O filho dum milionário alemão residente em Sintra, Ernest Reich, cuja colecção de miniaturas é no mínimo notável, conduziu-o a pintar toda a família, facto que ocorreu na referida casa de Sintra apesar dele residir no Monte Estoril.

Vê-se assim que a fama do pintor na modalidade do retrato vai conquistando os gostos mais requintados das classes abastadas dos estrangeiros residentes.

As inúmeras encomendas que surgem nesta época e que dificilmente consegue satisfazer, vão porém ser brutalmente interrompidas pela Revolução Militar de 25 de Abril que deu cabo do Estado Novo, do regime e do Império, restaurando em troca a democracia que a Revolução, também militar, de 28 de Maio de 1926 colocara no limbo das coisas proibidas.

Antes porém que a democracia fosse realmente restaurada, o país passou por um período de semi anarquia em que se degladiaram e se substituíram, no poder, comunistas, militares de esquerda e políticos de proclamada esquerda; é a via original para o Socialismo.

Os poderosos do antigo regime são perseguidos e presos os que não fogem para o exílio. O mesmo acontece com as pessoas mais abastadas. São ocupadas casas e terras. Todo o que tem alguma coisa é perseguido e considerado fascista. À sombra da política cometem-se atrocidades de toda a sorte.

A vida de Ambar vai sofrer uma mudança radical. As encomendas são canceladas e não aparecem. A sua actividade é reduzida a 10% do que era.

Como vive apenas do que pinta, a situação torna-se materialmente embaraçosa.

Tenta auscultar os novos dirigentes culturais do país. Os resultados não o animam. Victor Blanc acaba mesmo por lhe dizer que não interessa a forma de pintar, o que é importante é a temática.

Trata-se de fazer apologia da Revolução, na sua faceta mais esquerdizante, é bem de ver.

O período que vai de 1973 a 1974 não é, apesar de tudo um período de inactividade; já o vimos dar uma importante entrevista â «Plateia»; vamos vê-lo agora pintar a capa para «Mulher de Sal» de Madeira Santos.

Ele que jamais envereda pela arte abstracta ou abstractizante, desenha-nos uma mulher nua, ajoelhada e de braços cruzados que parece olhar o pintor, tendo como fundo um Sol. O desenho é todo ele indefinido e sem pormenor, um apontamento em que se vê que Ambar não está a vontade.

Nos tempos de aprendizagem com Amaro Jr. fizera alguma abstracção por ele hoje (1988) considerada sem interesse. Como não temos nada da época é nos impossível confirmar ou infirmar o juízo do artista sobre a própria obra, o que, no caso concreto de Ambar não é fácil de aceitar sem reservas porque ele próprio não aprecia o abstraccionismo.

Sabemos que por encomenda de Anita Ambar Raposo, chegou a desenhar figuras geométricas ao gosto do pós-guerra. E experimentou surrealismo no que é fortemente influenciado por Dali.

A Mulher de Sal tem, não obstante, força de génio artístico. Sabemos já que o fundo o distrai do tema central. E o esboçado da mulher ao arrepio de todo o género de desenho do artista, obriga-o a cobrir o fundo com um Sol, símbolo da luz e da cor que o vem obcecando cada vez mais.

Pode dizer-se que o 25 de Abril obrigou A.A., como aliás uma importante parcela da população portuguesa, a uma mudança significativa do modo de vida.

Enquanto as classes superiores (economicamente falando, entenda-se) não se estabeleceram, as artes plásticas, vão ser descuradas, quanto não estão ao serviço duma certa filosofia política.

E até lá, Ambar vai travar uma luta feroz pela sobrevivência.

O seu regresso a S. Miguel, nesta hora de perigo geral (e pessoal), é um pouco o regresso as raízes que, cem anos atrás, atraiu fatalmente Antero de Quental, como o nosso biografado, também um micaelense. Curiosamente, com Ambar o regresso dá-se à casa paterna onde a mãe e o irmão o esperam (com a família nuclear).

Era inevitável que as fortes cores açorianas o arrastassem para a pintura da paisagem que vai ocupar o lugar proeminente que o retrato até aí preenchia.

Por vezes até, o retrato é feito na paisagem que o rodeia como é o caso do pescador que pintou para o hall principal do hotel Barracuda em S. Roque (ilha de S. Miguel).

É uma curiosíssima composição que vive do estudo psicológico do modelo e do realismo feérico das cores açorianas intensas.

Aliás, essas cores, principalmente os verdes e os grandes planos, vão obrigá-lo a uma mudança de paleta.

Vai descobrir que a mistura de cores açorianas provoca um resultado cinzento na retina. Vê-se, por isso, obrigado a usar a espátula. O quadro que miraculosamente se salvou e que compõe ainda hoje a sua bela Sala de Jantar de S. Vicente Ferreira, que intitulou «Os Quintais»[4], é um bom exemplo deste período de transição e mudança de paleta.

Se as cores locais não estão totalmente conseguidas, todo o quadro vibra de movimento e harmonia. A roupa a secar ao vento consegue mesmo um efeito cinemático novo e raramente observável em termos ilhéus, onde normalmente é o sereno e o sossego do prado e a riqueza do colorido no contraste com a terra verde, céu azul e mar “A Planície Inquieta” de Cortes-Rodrigues) que acaba por vencer.

”Os Quintais” são porém um raro e belo estudo duma natureza menos pacífica e que o post-revolução explica perfeitamente.

Os retratos encomendados vão todavia ocupá-lo. Pinta Antonieta Câmara e sua filha (entre outros) colhendo-se do conjunto a impressão de que Ambar vive um vazio interior cujo preenchimento não lhe está a ser fácil.

No horizonte português surgem hipóteses de dezenas de partidos políticos que irão no entanto desaparecer como fogos fátuos, o que veio aumentar a confusão.

É curioso notar que vai ser o diálogo com um dos seus modelos -Valdez dos Santos - líder do Partido da Democracia Cristã, que começou com enorme aderência de pessoas e haveria de ser “democraticamente” proibido pelo Conselho da Revolução, acabando por deixar de ter qualquer expressão política.

No entanto, na altura, isso ainda não se sabia e a conversa com Valdez dos Santos vai trazer alguma serenidade de espírito ao pintor por encontrar alguém com quem comunga as incertezas dum mundo destruído e a esperança de melhores dias.

O retrato de Valdez dos Santos traduz um ponto de encontro e de equilíbrio sem deixar de denotar a angústia que o espírito de Ambar alimenta e que o vai levar a Lisboa, ao Algarve e de novo o traz a S. Miguel onde vai começar a lançar raízes de novo.

Chegamos assim a 1979; já Ambar conseguiu um núcleo de amigos -Paulo Martinho, artista e locutor da Televisão e Palma Guerreiro. Instalam-se em três casas que Tomás Caetano, rico emigrante açoriano do Canadá, possui (feitas por ele) numa falésia junta ao mar de Água d'Alto, a seguir à Praia pequena (a da Ribeira Chã).

Tomás Caetano regressara há já alguns anos do Canadá onde fizera uma boa fortuna e instalara-se nas Furnas onde construiu um chalet no alto dum monte a que chamou “mountain dream”. Para ali conduziu todos os confortos da vida moderna: electricidade, água, telefone. A vista da sua casa dominando o Vale das Furnas e uma nesga da Lagoa, é um dos mais belos recantos micaelenses.

Ali em cima, quase a tocar nas nuvens, colocou uma bela piscina, inacreditável proeza mesmo para um homem inteligente e dinâmico como ele, isto se tivermos em conta que jamais recorreu a um arquitecto ou engenheiro.

Seja como for, Caetano construiu aquelas casas à beira mar ainda antes de ser preso com outros 34 açorianos, após a manifestação do “6 de Junho de 1975” por ordem dum militar qualquer que se quis armar em Salvador da Pátria e ia provocando a independência sangrenta dos Açores.

Instalado em Água d’Alto, Ambar e os amigos vão recuperar as casas que estavam incompletas e semi abandonadas, na esperança de as comprar.

O mar inspira-o e vão surgir belas marinhas, uma das quais adquiridas por António Eugénio Pacheco (Verificador da Alfândega e perito em arte). Não deixa todavia de retratar. São deste período os retratos do Comandante da Marinha Mercante Carvalho e dos Baileys (marido e mulher), dois americanos que se vão estabelecer em S. Miguel antes de Mr. Norman Bailey ser nomeado conselheiro militar do Presidente Ronald Reagan dos Estados Unidos da América.

É de Mrs. Susan Bailey o grande quadro a óleo em que aquela é pintada junto do seu cavalo “O Clandestino”. O quadro ficou incompleto mas é riquíssimo de vitalidade da bela americana que a força sugerida do equino faz realçar. Este quadro encontrava-se, em S. Vicente, pendurado no corredor do quarto de dormir do pintor e a ele voltaremos mais adiante.

Todavia, em Água d'Alto pintou também temas campestres, como foi o caso duma Rapariga nas Hortênsias das Sete Cidades (Cumieira) -Tina serviu de modelo. Tal quadro que foi cobiçado por Rainer Daenhardt, que se estabeleceu em Ponta Delgada depois da revolução do 25 de Abril, acabou por ser adquirido por António Eugénio Pacheco. Ambar deslocou-se de mota com a filha e modelo, até ao ocidente de S. Miguel para pintar esse quadro.

A mesma facilidade de conhecimento que uniu Ambar e Tomás Caetano vai levar a uma ruptura brutal que iria provocar novo período na vida do primeiro.

Compelido a abandonar a casa junto ao mar que Caetano se recusa a vender-lhe, valeu-lhe a amizade dum antigo colega da escola agrícola -Tintim (Fernando) Canto Brum duma das famílias tradicionais açorianas cujo solar de Verão se situava no Pinhal da Paz, à Fajã de Cima. Embora o casarão estivesse semi abandonado, deixava antever a grandeza aristocrática desses descendentes dos antigos Provedores da armada da Índia, parentes dessa Violante do Canto que apoiou o Prior do Crato e que Filipe I1 mandou tratar como rainha quando a desterrou para Espanha.

O vandalismo e a estupidez popular iriam destruir esse solar que Ambar transformou em atelier. Tina serviu de modelo de mulher micaelense entre azáleas que foi adquirido pelo Solar da Graça onde se encontra a par com as “Vindimas” de Victor Câmara.

Ambar viveu até 1983 no Pinhal da Paz. Pintou neste período vários retratos dos que destaco o de minha mulher sobre fundo verde, cuja serena paciência captou magistralmente.
, por exemplo,
O melhor apontamento sobre azáleas adquiriu-o porém o Eng." Ambar Correia, manifesta influência do meio esmagadoramente florido sobre um espírito sensível à cor de que a flor é o expoente mais requintado.

O Secretário Regional do Equipamento Social, Eng. João Bernardo Rodrigues, encomenda-lhe nesta época para o seu gabinete o magnífico “Ala Arriba” dos pescadores dos Mosteiros cuja água brilhando na areia provoca, inimitável sensação insular; a versatilidade dum pintor ilhéu, tanto agarrado à terra como ao mar (Cortes-Rodrigues escreveu o conflito no “Quando o Mar Galgou a Terra”) consegue ligar a paleta às miríades de cores que ambos os elementos criam e fazem brilhar. Veja-se também o quadro sobre mar-pescador-terra que se expõe no bar do Hotel Barracuda (S. Roque, S. Miguel).

No Pinhal da Paz pintou o trajo regional micaelense porque o ambiente sugeria harmonias entre aquele e as multidões de flores que em turbilhão fervilhavam em redor do improvisado atelier.

Ali também viram a luz uma série de “Os Velhos”; o do Barracuda já referido, velho pescador ou vendilhões da cidade. Também pintou “A memória apagada”, um velho pescador que ergue, em saudação, um copo de vinho (que fica sempre de frente para o observador), vendo-se no fundo a silhueta de barcos. O lavrador de barrete com o cão, de saca e cesta, que foi vendido para a Venezuela e um estudo (pertencente a João Maria Bonifácio) da cabeça dum velho. Pintou outro velho que foi vendido para Espanha intitulado “O Romeiro”, figura popular-religiosa micaelense.

É um tipo de retrato não encomendado mas procurado pelo pintor que escolhe o modelo, porque nele encontra motivos psicológicos para a mensagem que pretende transmitir ao observador -a Velhice, o Trabalho, a Saudade, etc.

Foi realmente lamentável que esta série de estudos se tivesse dividido, não fotografada e espalhada pelos quatro cantos do mundo, praticamente inagrupável. Trata-se dum trabalho único e que nem Domingos Rebelo nem Victor Câmara, tratariam desta forma nem tão completamente.

O Quadro “Natureza Morta” (peixe, cebolas, abóbora), pertencente a Pedro Cyrnbron, foi também tema que versou.


A PINTURA COMERCIAL

Em 1982, Ambar vai desenvolver uma actividade nova. Com efeito, funda uma empresa comercial ligada ao ramo da publicidade. “A Siglaçor”, na sequência de encomenda formulada por comerciantes de pintura para propaganda comercial.

Não é nova a actividade do género em Ponta Delgada se nos lembrarmos das obras primas que produziu o saudoso José Vieira, encenador e publicitário que em cinemas, teatros, estádios e caminhos deixou o traço inconfundível do seu estilo.

A pintura publicitária açoriana (micaelense) caracteriza-se por um desenho perfeito, com figuras e objectos tão bem perspectivados que por vezes saltam da tela, com um colorido de tons uniformes e vivos.

Neste sentido Ambar não inovou. Mas introduziu um elemento novo, muito mais rico que os de Vieira: as mãos, os rostos e corpos que coloca nos cartazes publicitários são verdadeiras obras de arte dignas de melhor sorte que a efêmera passagem pelos placares publicitários ao sabor da longevidade das marcas e das empresas comerciais.

Todavia ao pintar publicidade, Ambar sente-se estimulado pela criatividade única que a composição comercial exige e que lhe ginastica a imaginação, abrindo um novo horizonte ainda mesmo para toda a sua restante pintura.

Ele próprio acha interessante a actividade: criação de imagens para servir objectivos determinados. E isso leva-o a aprofundar conhecimentos do mundo publicitário.

Aliás a História d'Arte possui todo um capítulo dedicado à pintura comercial. A técnica de pintura é mesmo diferente: a tinta é de esmalte, a maqueta é feita a 1ápis. Os fundos são pintados a pistola no chão (aí está a explicação para o curioso estado do bonito sobrado de pinho do atelier do artista) e a composição é trabalhada no cavalete.

O RETRATO DO INFANTE

Em Setembro de 1988, já esta biografia vai bastante adiantada, a Comissão Nacional criada para comemorar os descobrimentos portugueses, cujo quinto centenário se avizinha, vai encarregá-lo através de Sampaio Ribeiro de pintar a «Vera Efígie» do Infante Dom Henrique tal como aparece na estátua da fachada Sul dos Jerónimos. As nossas duas gravuras mostram ambas as composições, sendo certo que o nosso biografado conseguiu o «olhar» do Navegador, perante quem tantos se temeram.

Um olhar distante e ao mesmo tempo dominador invade a velha estátua composta algumas décadas após a morte do Infante.

No século XX, generalizou-se a figura de Dom Henrique tal como vem identificada na Crónica da Guiné de Azurara, com o chapéu alegadamente da Ordem da Jarreteira que aquele possuía devido talvez à ascendência britânica de sua mãe.

Como tal figura coincide com uma das que os extraordinários painéis de S. Vicente possui, os peritos durante muito tempo consideraram-na indiscutível. A única indiscutível até dessa obra prima da pintura.

Todavia, a máscara funerária em que resultou ou de que resultou a estátua jacente do Mosteiro da Batalha, e a quase contemporânea estátua dos Jerónimos feita numa altura em que muitos ainda o tinham conhecido, conjugado com as diversas interpretações dos Painéis, e até a data da Crónica da Guiné, vieram pôr em dúvida a versão original a ponto de, hoje em dia, serem raros os que aceitam como sendo o Infante, a personagem dos Painéis, cavaleiro da Jarreteira.

Penso até que é por via disso que a Comissão dos Descobrimentos pediu a Aristides Ambar a pintura da estátua dos Jerónimos, dando-lhe a vida que só a cor permite.

É de registar, num país em que as Belas Artes têm tantos e tão bons cultores, a escolha recaísse naquele que se exilou na sua terra depois da revolução que restaurou a democracia em Portugal. Nesta altura o prestigio de Ambar Raposo, como pintor, atinge o auge e as solicitações surgem de vários lados. No momento em que escrevo estas linhas, o nosso pintor é contratado pela Atlântida Estúdios em colaboração com a Televisão Portuguesa para pintar o “Retrato de Ricardina”, telenovela portuguesa onde ele próprio, suponho, virá a intervir como intérprete.

O AUTO RETRATO


Chegado aqui, confrontei-me com a questão da capa para este livro e, depois de debatê-la com o pintor, chegámos a conclusão de que deveria ser constituída pela reprodução dum auto-retrato a fazer agora.

Por isso enquanto o artista dava os últimos retoques no meu, a Sanguinha realçada pelo branco do papel e do colarinho da camisa, em que estou de toga escrevendo parte desta biografia, fomos conversando sobre o auto retrato, tendo tomado as notas que a seguir traduzem o pensar dele, nesta fase da sua carreira.

Como Rembrandt, entende que o auto retrato é a pedra de toque do artista. E, na verdade, no auto retrato todas as convenções e respeitos pelo modelo são necessariamente diferentes.

Por um lado, o pintor não está preso ao gosto de ninguém a não ser ao seu próprio.

Isto permite exprimir-se muito melhor e mais genuinamente. O retrato é mais explorado. A técnica é mais aproveitada e levada até as fronteiras do possível.

Por outro lado, o artista dispõe de liberdade absoluta para aprofundar a estética. É que ele não tem que agradar a ninguém a não ser a si próprio.

E ao mesmo tempo nada encontra de si próprio porque o interesse focaliza-se no resultado da obra mais do que em ficar “bonita” ou não.

Na última exposição que Victor Câmara realizou em Ponta Delgada, (estamos em 1988) o seu auto retrato ultrapassava todas as outras obras expostas por essas mesmas razões.

E, no entanto, fazer auto retrato não é inteiramente diferente de pintar outra pessoa, a técnica é que fica mais livre.

Aristides Ambar, ao longo da sua vida pintou vários auto-retratos que, entretanto, se perderam (Tina recorda um existente em casa do irmão do pintor de quando ele tinha 20 anos).

Na sua técnica Ambar trabalha os volumes como veículos duma certa estilização e até mesmo de «ideal de forma».

Quando pinta uma mulher, por exemplo, a cor comanda a forma. Há sensualismo na cor. E, na natureza ou no corpo humano, o volume é conseguido sempre mais à custa da cor do que de outro qualquer efeito. E, desde que a técnica do claro-escuro foi inventada, ela vem contribuindo para imprimir uma «certa» força ao trabalho.

Dos vários auto retratos que pintou, algum tempo depois, deixaram de lhe agradar, fenómeno interessante e que merece alguma ponderação.

É que, Ambar, como todo o artista “vivo” evolui. A sua técnica, de ano para ano, enriquece-se com experiências novas e novos estímulos. Não é rígido, é fluido, e progride sempre.

Por isso, quando olha para trás, algumas insipiências nos trabalhos antigos, já não lhe agradam.

De si gosta de dizer que a sua técnica é uma mistura das técnicas utilizadas pelos pintores de outras e todas as épocas.

O naturalismo e o impressionismo são todavia as correntes que mais o fazem vibrar de emoção quando cria.

A sua pincelada a mais das vezes é larga, outras vezes vai mais ao pormenor, que aliás ele evita e não quer dizer que o consiga porque o detalhe nem sempre é dispensável para quem se não evade do real.

O NU

Paul Valery disse que o “nu é para o pintor, o que o amor é para o poeta”. E, com efeito, o nosso biografado cultiva o nu com paixão amorosa.

A sua casa de S. Vicente, que no Atelier propriamente dito, e um pouco ao acaso, tem vários nus pendurados nas paredes, de mistura com as últimas encomendas prontas (ou quase) à espera de cliente ou do último retoque.

Mas Mestre Aristides tem também vários nus na sala do rés-do-chão e nos quartos de cama.

Numa região como a nossa, onde a tradição artística e principalmente a pintura não goza de reconhecimento e conhecimento gerais, não é fácil arranjar modelos que se prestem a posar nus. É a primeira dificuldade dificilmente ultrapassável. Aliás a história da pintura embora em países como a França, ainda há menos de um século, a questão dos modelos (aliás das modelos) para o nu punha-se até para os melhores pintores como Manet, por exemplo, com não poucas dificuldades.

Ambar parece ter alguma singularidade na composição do quadro do nu onde apenas se fixa no modelo que normalmente pinta da cintura para cima, aparecendo esse nu parcial burilado apenas no rosto, no busto e nas mãos.

E tudo em posições estáticas pois o movimento aborrece-o.

Numa tentativa de alterar a posição vertical com que pinta a mulher nua, Ambar pintou também uma mulher deitada, qual odalisca, de olhar vago e perdido entre a ousadia de despir-se e o natural pudor perante o pintor.

É, uma composição mais complexa em que o modelo sobressai suavemente ao fundo diante do que se estira a bela jovem.

Se a composição lhe oferece aparente dificuldade já a busca da cor e contextura da pele e suas incontáveis mutações e relevos duma sensualidade óbvia mas concomitantemente, é rica de sugestões e brilhantemente conseguida.

De resto, pintou nus (e semi - nus) toda a sua carreira como um poeta lírico cantou o amor: com amor e devoção.

Esses nus estão espalhados por todo o país, sendo o mais famoso e conseguido o de Ana, de quem já falámos, que emerge do resguardo, como Vénus do mar, num estudo sobre volumes de nítida influência de Rodin, e com um equilíbrio de cores serenas que denunciam o estado de espírito do pintor e a sua relação pessoal com o modelo.

Apesar de Ambar defender que toda a aprendizagem se deve fazer ar livre a fim de afinar a cor, o que é certo é que, por razões óbvias, só pintou um nu ao ar livre, na praia no Algarve, tendo Filipa servido de modelo.

Perruchot defende-os, aliás: «Ao menos no Verão podiam-se fazer no campo estudos do nu, já que o nu, segundo parece, é a primeira e última palavra da Arte.

Ao pintar o nu, Ambar tenta fixar a eternidade dum momento. Daí que os seus nus normalmente são contemplativos, nalguns casos até, tristes.

Laurence e Elisabeth Hanson (Gaugin, pág. 62) escreveram «à primeira vista, dir-se-ia que a familiaridade se aplica tanto ao nu como a qualquer outro tema. Mas não é assim: o pintor é um homem como todos os outros. Para ele a mulher nua, por mais que a pinte, é sempre uma mulher despida; pode não estar interessado no modelo, mas a nudez deste não é um estado natural no mundo civilizado».

Se assim foi no nu de Ana já o mesmo se não dirá da modelo em tudo dando a perceber tratar-se duma estudante de pintura, que posa sabendo o que faz, como que num trabalho de equipe em que ela sabe o seu papel na perfeição e a importância decisiva dele na conclusão da obra. O retrato de Ana é talvez o mais belo nu que saiu dum pincel açoriano.

FLORES

Eis um tema caro a Aristides Ambar.

A flor tem uma sedução visual irresistível.

Dissemos atrás que no regresso de África, ele as tinha pintado. Cabe agora referir o estudo que lhe dedicou através de FANTAIN LATOUR.

Calouste Gulbenkian tinha como se sabe, uma das melhores colecções privadas de pintura existentes. Dela faz parte o famoso quadro das «Rosas» de Latour que ofereceu ao Museu das Janelas Verdes.

Aristides Arnbar copiou esse quadro. Ele, um artista apaixonado pela técnica mas acima de tudo «sincero», desmonta a técnica de Latour copiando-lha das «Rosas», e entrando no segredo das cores, das formas, descobre que elas lhe causaram um prazer estranho.

E o resultado da cópia deixa Ambar tranquilo. Ele gosta de pintar flores. Ele sabe pintá-las, vivas e frescas como que acabadas de apanhar ainda molhadas do orvalho matinal.


Camélias reflectidas em mesa de vidro foram talvez as últimas flores que pintou até agora (1988). Elas emergem dum fundo de sombra que não é ausência de luz mas apenas «uma outra cor», elas estão ali quase sempre viçosas e belas quase exalando o agridoce odor das rosas do Japão, tão espontâneas.

Aliás convém referir que a espontaneidade para ele nada tem a ver com a rapidez da pintura. A espontaneidade provem de Ambar pintar o que vê e não aquilo que os outros gostariam que ele visse. Daí que as suas flores sejam particularmente belas.

PINTURA RELIGIOSA

O Cristo morto na Cruz é a única pintura religiosa do artista. Este quadro encomendado pelo actual (Dezembro de 1989) Secretário Regional da Habitação e Obras Públicas dos Açores, Américo Natalino Viveiros, e sua pertença pessoal, é uma obra de rara beleza

A composição emerge duma luminosidade incandescente que desce do alto direito do observador, por detrás da Cruz, derramando assim, por forma curiosa e original, toda a luz que a pintura transmite.

A figura central e única do Cristo crucificado está totalmente banhada por essa luz misteriosa que condiciona a pintura, impondo praticamente o mesmo tom a todo o trabalho.

Como o pintor retirou da sua objectiva as mãos e dois terços das pernas, as únicas feridas que aparecem são a do lado e as provocadas pela coroa de espinhos, de onde cai, melhor diria escorrega, sangue pelo lado sujando a fralda que atravessa, deslizando pela perna de bom volume e pela testa e face caindo no externo.

O madeiro em que Cristo-Homem está pregado é de madeira de criptoméria japónica hoje em dia (1990) a madeira preponderante nesta Ilha de S. Miguel, e que no nosso quadro se apresenta bem cortada e aplainada até à perfeição.

Sabe-se que quem serviu de modelo ao corpo do Redentor foi João Ferreira que teve de subir a uma escada encostada a uma árvore em cujos ramos assentou as mãos, colocando os pés nos degraus daquela.

Não sendo muito crente, Ambar teve de estudar Cristo para poder desenhar-lhe o rosto na Cruz, após a morte, nesse pavoroso e desumano suplício.

Não lhe reconhecendo a divindade, o pintor aceita todavia a grande força moral do Nazareno e tenta dar-lhe um rosto sereno, dum homem bom, profundamente convencido dos seus próprios ensinamentos de perdão e entrega e que parece adormecido, preparando-se para ressuscitar. Deve dizer-se que o conseguiu. Curiosamente, é sua filha Tina, quem serviu de modelo quanto ao rosto e ao cabelo.

Da vasta iconografia consultada, Aristides mostra-se manifestamente influenciado pelo Cristo crucificado de Velasquez, do Museu do Prado. Marco Valsechi na colecção da Verbo, sobre os grandes museus do mundo, no volume dedicado ao do Prado, diz na página 112, sobre o aludido quadro de Velasquez: «Esta imagem de Cristo crucificado, que Velasquez pintou cerca de 1632, merece, sem dúvida, o qualificativo de "miraculosa". O tema entre os preferidos na arte espanhola do séc. XVII, atinge neste exemplar um dos seus lugares cimeiros. Cristo aparece-nos crucificado com quatro pregos, segundo a iconografia sevilhana do séc. XVII».

Por esta descrição se pode ver que Ambar nos deu uma versão resumida deste famoso Cristo. Resumida porque lhe tirou a parte terminal dos braços e das pernas, o que foi pena visto que seria curioso estudar a forma como resolvia o problema surge, excitante em arte, das mãos e dos pés, neste caso, com a complexidade acrescida dos cravos e das suas consequências na carne humana dilacerada.

A ferida de lado e dos espinhos não nos permitem considerações de maior pois aquela surge com realismo arrepiante e inspirador da piedade.

A preparação deste quadro que data de 1983, passou por algumas fotografias de modelos e de desenhos que permitiram as soluções encontradas.

Um Cristo humanizado sem halo luminoso que Velasquez não deixou de criar à volta da cabeça e que Ambar transfere para o Sol que num plano superior ao tema central, ilumina a cena por detrás, mas que ao mesmo tempo não lhe retira um certo ambiente celestial ou pelo menos fora deste mundo.

De qualquer dos modos não é difícil ver neste quadro o trabalho de alguém que estudou bem a obra de Cristo; o rosto que lhe pintou vale bem a leitura do Evangelho de S. João.

A total serenidade que resplandece do Bem Aventurado que nunca odiou e levou o amor ao próximo até a paixão total, está ali registada para sempre como só neste século post-freudiano seria possível.

Ambar, com efeito, sem ser um crente aceita todavia a realidade da doutrina cristã como ética de comportamento.

O Mundo Ocidental seria irreconhecível se Cristo não tivesse existido. E se Ambar não acreditasse na superioridade dos ensinamentos de Jesus, manso e humilde de coração, este quadro nunca tinha sido pintado.


PINTANDO ANIMAIS

Já fizemos várias referências a animais pintados por Ambar. Conheço vários quadros em que o animal é o elemento central, exclusivo, ou acessório.

Cavalos (de montar, como o incompleto já referido ou de carroça, nas Sete Cidades em atmosfera de nevoeiro como elemento novo); patos bravos pendurados numa parede à espera do trabalho do cozinheiro (que na casa de S. Vicente ornamenta a parede nascente da sala de jantar do Mestre); o câozito da Tina está delineado a sanguínea; a aguarela do faisão (1973) marcando uma fase da pintura quase em série, extremamente decorativa pela riqueza policromática das penas e pela orgulhosa e agressiva postura da ave.

A vaca, nos fins da década de 80, é um animal que surge com alguma frequência na pintura ambariana.

Não admira de resto, pois os Açores deste final do séc. XX transformaram-se num imenso pasto onde há mais bovinos do que pessoas. Nos anos sessenta, a produção leiteira a nível industrial aumentou até se transformar na mais importante fonte de riqueza económica do arquipélago, que veio substituir o pastel do séc. XVI e XVII, a laranja do séc. XIX e o ananás micaelense já neste século e fins do anterior.

Quando escrevo estas linhas, é impossível viajar-se fora dos centros urbanos sem se topar de imediato com vacas. Vacas no pasto, de pé, deitadas; vacas em estábulo, comendo ou descansando. Mas sempre vacas. E todas malhadas de preto e branco (holando-micaelense, chamam-lhe) sendo as pretas ou vermelhas, a excepção. Vacas de leite, vacas de carne. Mas, como digo, sempre vacas.

Por isso, era fatal que Ambar as pintasse. Ora, a vaca não é um animal particularmente belo, embora possa, em grupo, constituir um curioso tema.

A composição mais interessante que vi na pintura de Ambar contemplava um grupo de vacas, acompanhadas por um jovem cavaleiro numa estrada micaelense.

O céu, a pastagem no seu verde indescritível, as flores da beira da estrada e as árvores, suponho que plátanos, que a ladeiam, dão ao conjunto um aspecto agradável, tipicamente insular e açoriano. O movimento dos ruminantes, lento e adormecido, é feito como que de medida para o nosso biografado para quem, como sabemos, qualquer mudança de lugar não é agradável nos seus quadros.

Neste que suponho lhe foi encomendado por um membro da família Sousa Lima, o primeiro dos animais parece sair lentamente do quadro, espreitando por ele como por uma janela.

O cavalo nessa pintura surge como um elemento secundário pintado quase como cadeira do rapaz que guarda as vacas. Sendo um animal nobre, a tarefa do guardador de vacas não beneficia muito esse estatuto, não só pela pose humilhante em que se vê obrigado a trabalhar quer pela função que desempenha na actividade pecuária.

Por vezes, lá surge o cão indispensável ajudante do lavrador (que em S. Miguel significa tratador de gado bovino); normalmente aparece o cão de Fila micaelense, hoje considerada uma raça pura e que parece descender dos griffons. Ladino, incansável, agressivo (muitas vezes sou obrigado a defender os seus donos em tribunal por terem mandado “aguerrar” nalgum adversário de ocasião).

Viajam debaixo ou em cima da carroça ou da caixa do tractor, ou então ao lado do cavalo sempre prontos a correr atrás das vacas aos primeiros sons do assobio estridente do dono.

Um desses cães, pintou-o Ambar, irrequieto, no seu olhar aparentemente «distante», de criança brincando.

EPILOGO

Esta biografia de Aristides Ambar Raposo não deixa de ser original, penso eu, pois o pintor está vivo, é ainda um homem novo, e o seu processo evolutivo ainda está a meio, pelo que terá necessariamente de chamar-se a este volume o primeiro e não é natural que seja eu a escrever o segundo.

No entanto, neste momento Ambar está no auge das suas faculdades pictóricas e é um pintor de moda em S. Miguel.

Recebe imensas encomendas dos sectores público e privado que não pode obviamente satisfazer na totalidade e trabalha constantemente. Retrato, paisagem, marinas, flores predominantemente a óleo.

De vez em quando fala em passar algum tempo em Lisboa porque lá tem também inúmeras encomendas que satisfazer, no seu Atelier da Lapa.

Sinto que o atrai ao continente da República a vida movimentada de outrora, absolutamente diferente da que leva no retiro campestre de São Vicente Ferreira.

Estuda sempre, e sempre pintura. Nacional e estrangeira. Repudiando a pintura abstracta a que dificilmente reconhece valia artística, gosta de denunciar os impostores que apresentam como pintura formas pouco sérias de arte e às vezes chegam a ganhar concursos ...

Ninguém poderá dizer hoje quais são os pintores que vão sobreviver à sua morte física. E não serei eu quem vai fazê-lo em relação ao meu biografado.

Sinto porém que se a natureza tem os seus segredos e as suas cores, Aristides conseguiu descobrir algo desse segredo e creio finalmente que uma parte da sua obra tem valor indiscutível e, neste século miraculoso da técnica em que a fotografia atingiu culminâncias nunca sonhadas, constitui verdadeira criação, fruto de génio moldado pelo meio açoriano.

Vive-se nos Açores uma época única na sua História. Os açorianos tendo alcançado embora uma autonomia ainda limitada, fizeram dela um uso prudente que elevou de imediato o nível de vida geral. Isso permitiu-lhes subir um tanto no nível da economia de sobrevivência em que a maioria vegetava para outras preocupações menos materialistas. A existência duma Universidade que vai permitindo aproveitar os valores dos que antes estiolavam por falta de meios de cultura superior, ao mesmo tempo que mantém nos Açores uma elite intelectual exigente e culta, tudo isto explica o fenómeno Aristides Arnbar, a sua produção artística e a procura dos seus quadros.

Chegou a hora de honrarmos os valores da nossa geração, e se não me sinto com forças (nem tempo) para biografar Domingos Rebelo, pai da pintura açoriana do séc. XX., urge que alguém competente o faça.

Quis o destino que conhecesse Aristides Ambar com a intimidade suficiente para lhe pedir licença para traçar a sua biografia e poder contar com a sua insubstituível colaboração. Sua filha Tina, ela também começando a dar os primeiros passos seguros na pintura, deu-me uma ajuda preciosa na lembrança de pormenores importantes e úteis.

Facilitada que foi a tarefa desloquei-me dezenas de vezes a S. Vicente onde conversamos sobre milhentas coisas durante centenas de horas. Dessas conversas surgiu este trabalho que completei com a leitura atenta da bibliografia que vai indicada no fim do livro.

Períodos da vida dum pintor que ditaram certo estilo ou tema, ficam aqui registados para ajudar os coleccionadores na classificação da obra dum artista contemporâneo que se impôs à sua terra natal e aos seus conterrâneos sem ter que invocar os favores da politica ou de um qualquer Mecenas

Isso faz-me pensar que, ou estamos todos enganados, ou a pintura de Aristides Ambar vai ficar como um marco na história da arte açoriana. Pena tenho que a minha cultura e formação não estejam à altura dos objectivos a que me dediquei.
Ponta Delgada, 20 de Janeiro de 1990
dia de S. Sebastião e aniversário D’el-rei “Desejado”

Carlos Melo Bento


CRONOLOGIA DO ARTISTA

1937 - Nasce em Ponta Delgada

1954 - Interrompe em Ponta Delgada, na Escola Industrial e Comercial, o curso geral do comércio, onde é aluno de Domingos Rebelo e Xavier Costa.

1954 - Ingressa na Escola Agrícola D. Dinis da Paiã, em Lisboa, onde é aluno de Mestre Amaro Jr.

1954 - Começa a trabalhar no Atelier de Amaro Jr., em Alvalade.

1957 - Expõe pela 1.ª vez no Palácio da Independência em Lisboa, 58 quadros.

1959 - Expõe pela 2.ª vez, no Palácio da Independência, em Lisboa, 25 óleos, 13 aguarelas, 1 pastel e 5 desenhos.

1959 - Casa em Carnide com D. Maria Filipa do Nascimento Cristo.

1959 - Sua mulher dá a luz 2 gémeos - Filipa Cristina e Aristides.

1960 - Ganha o Prémio Nacional de Pintura.

1965 - É mobilizado e embarca para Angola - Maquela de Zombo - onde permanece 2 anos e onde se lhe junta a mulher e a filha Filipa Cristina.

1967 - Regressa a Portugal e instala-se dois anos no Algarve, onde conhece o escritor Madeira Santos com quem funda a tertúlia do “Casal da Preguiça”.

1970 - Vai a Lisboa com demora de 3 meses (2 vezes por ano) dividindo com Miguel Sousa Machado o apartamento na Lapa. Pinta no período de claro-escuro (Rembrandt e Expressionismo), explora a superfície textual com grandes massas de tintas

1974 – Concede importante entrevista à Revista “Plateia”.

1974 - Compõe a capa para o livro “Mulher de Sal” de Madeira Santos.

1974 - Lisboa: Victor Belém diz-lhe que não interessa a forma de pintar; o que é importante é a temática. Trata-se de fazer a apologia da Revolução.

1974 - Com a revolução reduz a 10% a actividade por falta de encomendas e cancelamento das existentes.

1974 – Agosto - Regresso a S. Miguel com a família para a casa paterna, convivendo com a mãe e irmão, acompanhado de mulher e filhos, pinta paisagem e retrato (Antonieta Câmara e filhos) . Mudança Paleta por causa das cores micaelenses, os verdes e grandes planos impõem uma nova paleta, pois a mistura provoca um resultado cinzento na retina. Técnica de espátula e “melange optique”
1975 – Fevereiro - Retorno a Lisboa onde permanece 3 meses. Conversa com Vítor Belém, Director para as Artes Plásticas do Ministério de Educação e Cultura que lhe diz que a pintura não interessa em si mas sim a temática revolucionária. Vítor Belém é pintor… A mulher de Ambar converte-se ao comunismo e considera-o um parasita sem lugar na sociedade socialista o que impressiona Tina, a filha do casal.
1975 – Junho - Instala-se no Algarve até Novembro.
1976 - Pinta o retrato de Mota Amaral. A três quartos, encomenda da Casa dos Açores de Lisboa. Tem estudo da nova bandeira açoriana entre mãos.
1976 – Conhece Valdez dos Santos, Secretário Geral do Partido da Dem9cracia Cristã cujo retrato pinta e com quem desabafa politicamente: identidade de pontos de vista.

Caça submarina, paixão de infância que nunca o inspirou pictoricamente, por ser momento pessoal diferente. Caça em S. Miguel e Algarve. Nunca fotografou, o que em 1988 está pensando fazer.

1978 - O retrato de Susan Bailey com cavalo fica incompleto porque Susan Bailey falta ás sessões. A tela é em linho da Ribeirinha, o retrato seria gigantesco com Susan e o cavalo de corpo inteiro. O cavalo já morreu.
1988 - Norman Bailey é pintado em S. Miguel. Pintou Susan Bailey que se deslocou a Lisboa, para esse fim.

1979 - Instala-se em S. Miguel em Água d' Alto, separando-se de facto de D. Filipa.

1979 - Instala-se em Água d'Alto, casa de Tomás Caetano, com Paulo Martinho e Palma Guerreiro; recuperam casas. Esteve perto de 6 meses. Pintou marinhas. Retratos (Comandante Carvalho, Baileys) uma das marinhas foi vendida ao António Eugénio da Alfândega.

1980 - Tim -Tim Canto Brum colega na Escola agrícola convida-o para casa do Pinhal da Paz que o vandalismo destruiu. Pintou a Tina entre azáleas que está no Solar da Graça.

1982 - Funda a empresa de publicidade.

1983 - Instala-se em S. Vicente, dedica-se ao quintal e à pintura.

1984 - Pinta José Enes, primeiro Reitor da Universidade dos Açores (Incendiado em 1989).

1988 - Pinta a Patrícia Tomé vivendo primeira experiência do género em Lisboa com fundo paisagístico.


NOTA BIBLIOGRÁFICA:

Greco - Ed. Aster, por Gregorio Marañon.

Ganguin -Ed. Artes, por Lawrence e Elizabeth Hanson

Edouard Manet -Ed. Aster, 1962, por Henri Perruthot

O Retrato na Arte Portuguesa, - Ed. Livros Horizonte 1981, por José Augusto França.

Delacroix - Ed. Aster, por M. Philipe Julliam


OUTRAS OBRAS DO AUTOR:

Balada Política - 1968 (fora do mercado)

O Estatuto das Ilhas e a Região Açores -1970 (fora do mercado)

Soou a Hora (opúsculo) -1976

Horas Amargas -1979

História dos Açores I (esgotado) -1988

História dos Açores II

História dos Açores III

Escavações Arqueológicas em Vila Franca do Campo (1967 -1982)-1990

José Bruno Carreiro – separata da Insulana

Justiça da Povoação - idem

[1] Luís Bernardo, obra citada, volume II, página 215.
[2] L. Bernardo, obr. cit. 231.
[3] 8 de Janeiro de 1952.

[4] Este quadro pertence hoje ao Dr. Flor de Lima que o adquiriu porque se deixou fascinar pela forma encantadora como o pintor viu a sua terra natal.