O Reino dos Transparentes
Entre os manuscritos de Natália Correia que a sua amizade me dispensou, existem dois que gostaria de partilhar publicamente, não tanto para exibir essa amizade que o destino forjou em circunstâncias tão excepcionais mas para tentar explicar uma faceta do seu génio tão sublime como paradoxal e em vida só compreendido por uns poucos como é costume entre nós.
E foram de facto excepcionais esses tempos de fim do Império e do Estado Novo que ela abominava e que eu respeitava, o que deu à nossa amizade um tom ainda mais invulgar, não desfazendo no pigmeu que eu era perto da sua figura gigantesca.
Natália era o espírito mais livre que conheci, guiado apenas por uma estética que tuteava e por uma intuição (ou lá o que era ) que a elevava acima dos mortais conhecidos. Servida por uma cultura que parecia sem fim nem começo, as suas palavras, ditas ou escritas, foram néctar e manjar de deuses e ela divina sacerdotisa da coragem de ser e de dizer o que lhe ordenava o pensamento sem respeitos humanos de que desdenhava e sem temores reverenciais que desconhecia.
No mundo do seu universo mental havia um lugar muito particular para o esoterismo que ela cultivava quase ocultamente, como é dado às coisas encobertas que a fascinavam profundamente e é eloquentemente demonstrado por uma das suas obras mais conhecidas.
Voltemos ao manuscrito. Escreveu ela em 2 de Março de 1982, nesta querida cidade de Ponta Delgada, ao dedicar-me os Erros meus, Má Fortuna, Amor Ardente:” Para o meu querido amigo e leitor eleito C Melo Bento, em nome do Espírito que nestas Ilhas desponta para implantar o Reino dos Transparentes. ...”.
Por ora não quero falar do porque me chamou ela de “leitor eleito” que um dia se os fados me favorecerem, hei-de tentar explicar. Mas o Reino dos Transparentes merece dar entrada neste In Memoriam pois é uma expressão esteticamente tão perfeita que a sua beleza choca e convida a uma reflexão aprofundada.
Natália sentia que era chegada a era do Espírito, que deveria seguir-se à do Pai e à do Filho. Natália não era católica mas não desdenhava da religião pois escreveu num dos seus mais belos poemas (“Quando me derem por morta/De lágrimas nem uma pinga/Um trevo de quatro folhas/Tenho debaixo da língua”) que não desdenhava duma missa rezada por sua alma. Aliás, sempre me pareceu que o seu culto do esotérico era uma janela aberta onde buscou sem parar o mundo espiritual e tentou encontrar sempre as suas fontes últimas buscando a religião perfeita.
Ela viu no nosso movimento quando, ao som do hino do Espírito, tentámos e conseguimos unir todos os açorianos dispersos pelo planeta, uma chamada para si própria e acudiu-nos sempre que foi chamada. Mas ela sonhava com um mundo sem esconderijos, sem reservas, sem medos, sem perseguições, sem intolerância, onde se ouvia o “Cântico Novo” que ela escreveu e que tão esquecido anda, apesar de tocado todos os dias mais duma vez.
Quando me dedicou o “Dilúvio e a Pomba” ela escreveu que se achava identificada comigo “nos ritmos que aprendi nesta nossa Ilha do Arcanjo” e subscreveu assim;” Com toda a Amizade e no Espírito Santo”.
Não é fácil separar estas palavras da época em que elas foram escritas pois o ambiente político social era arrebatador e não é possível descrever a eufórica alegria que nos enchia a todos nas manifestações colectivas, como foi o caso do encontro maravilhoso que tive a sorte de proporcionar entre ela e o grande Vitorino Nemésio, no Ilhéu da Vila, em que se falou de tudo menos de presidências que para mim já estavam definidas há muito tempo.
Mas vi-a, espantado, tratá-lo por Mestre e escutá-lo respeitosamente, postura que nunca teve com mais ninguém, fosse Príncipe ou Presidente.
Sei que o seu desaparecimento foi um dos golpes mais rudes e injustos que a nossa causa sofreu e de que dificilmente se recuperará pois os génios, como dizia Marcello Caetano, só surgem com intervalo de séculos. Mas a sua mensagem é imortal e crescerá de intensidade à medida que as pessoas se esqueçam da sua postura irreverente, iconoclasta e perturbadora e compreendam sem preconceitos a beleza sem par da sua poesia.
Sousa de Oliveira, que também participou no encontro do Ilhéu (que aliás estimulou), considerava-a a maior poetiza de língua portuguesa no século XX.
Quanto a mim que temo não conseguir alcançar a transparência da Poetiza, resta-me incensar o altar da deusa com os perfumes duma admiração que se esfuma dos turíbulos dos seus versos imortais.
Carlos Melo Bento
16 de Julho de 2004
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