domingo, 27 de janeiro de 2008

Manuel Alfredo da Silva Melo Bento

Nasceu meu irmão Manuel em 17 de Novembro de 1940, na cidade de Ponta Delgada, à Rua dos Manaias nº. 21, edifício que, à data pertencia a nosso avô materno, Carlos Augusto da Silva (nascido em 28 de Setembro de 1877 e falecido em 6 de Agosto de 1954), que a emprestara a nossos pais e que dele a herdaram.

Quer do lado de nosso Pai quer de nossa Mãe, descendemos dos primeiros povoadores da Ilha de S. Miguel. Do lado materno[1] seguramente de João Afonso Pimentel, o das Grotas Fundas, filho do terceiro Conde de Benavente, em Leão de Castela, cuja linhagem atira para a formosa Ribeirinha companheira de D. Sancho I de Portugal, que os poetas cantaram e o Rei amou apaixonadamente até morrer. Do lado paterno[2], pelo ramo Melo, descendemos de Pedro Vaz Pacheco, escudeiro da Casa Real, pai do 8º Memposteiro-mor dos cativos de S. Miguel, netos dos Marqueses de Fromista em Castela, vindos para S. Miguel, via Algarve, por causa das guerras das Comunidades, por volta de 1497-1502.

Ainda do lado paterno descende o meu biografado provavelmente de Pero da Ponte, o velho que veio para esta ilha no tempo do seu povoador Rui Gonçalves da Câmara (o filho do descobridor da Ilha da Madeira que governou S.Miguel de 1474 a 1497). Pero da Ponte era bisneto de Rodrigues Annes da Costa, o que fez a Torre da Raposeira no Algarve para acolher os senhores infantes.

Digo provavelmente, porquanto os documentos que o poderiam provar jazem nos escombros de Vila Franca do Campo que um terrível terramoto destruiu em Outubro de 1522. Apesar do nosso último nome ser Bento, a verdade é que o apelido da nossa Família foi durante 5 séculos pelo menos, da Ponte, e no século XIX, Bento da Ponte, até que nosso bisavô António José Bento da Ponte, decidiu que deixássemos de usar o Ponte para não sermos confundidos com um primo homónimo de quem não gostava. Até hoje, tal decisão só não foi acatada por nossa tia avó Maria da Glória Bento da Ponte Pires Coelho que era, como sua Mãe, professora, mas que desde que fugiu de casa para casar com o médico da Povoação, Dr. Tito Pires Coelho, tornou o seu relacionamento impossível.

Eram os Pontes mareantes, em Vila Franca do Campo, embora no século dezanove e princípios deste, ao menos o nosso ramo, dedicava-se com tanto sucesso à marcenaria que o nosso referido bisavô se vangloriava de ser um dos 40 maiores contribuintes da Vila; formou duas filhas professoras e um filho em engenharia electrotécnica, em Lisboa que deu boa conta de si em Portugal onde faleceu com descendência, na Serra da Estrela (Gouveia).

Nosso Avô Manuel foi destinado pelos pais para estudar para sacerdote católico. Em consequência dessa decisão que felizmente não acatou, saiu de casa muito novo, casou com a bonita filha dum rico “brasileiro” (Mariano Jacinto de Mello), montou e fez funcionar a primeira marcenaria eléctrica dos Açores e mandou nosso Pai, Alfredo de Melo Bento (1909-1994) estudar para Lisboa, onde, após longos e bem vividos dez anos, se graduou em engenharia de máquinas pelo Instituto Industrial de Lisboa.

Nosso Pai casou já de 30 anos feitos, com nossa Mãe, Natália Maria Augusta da Silva Melo Bento que tinha menos dez anos que ele e era filha dum dos mais opulentos comerciantes de fazendas de Ponta Delgada (Carlos Augusto da Silva).

Muito jovens ainda fomos os dois para a Escola Infantil das senhoras Mirandas que se situava ao canto em cima da nossa rua, na esquina nascente da Rua da Boavista e, quando ele ia fazer sete anos e eu seis, fomos os dois para a escola Normal de Ponta Delgada que nessa altura estava instalada num solar perto do mercado da Graça. Era ali professora a D. Mariana Bento (da Ponte) Carreiro, prima irmã de meu Pai. Fomos alunos dela durante 4 anos. Meu irmão foi o melhor aluno da classe e eu arrastei-me penosamente com muitas deficiências que a minha alta miopia só agravava, de parceria com a teimosia de meu Pai que só me deixou usar óculos na 4ª. classe, convencido que estava de que eu via muito bem!

Durante esses anos meu irmão foi uma espécie de protector, chegando até a entrar em brigas por minha causa, deixando o adversário de tal maneira maltratado, que houve necessidade de desculpas públicas e reconciliação oficial, diante de pais e parentes.

O destino porém, por vezes, prega-nos partidas cruéis. No exame de admissão aos liceus, nesse tempo obrigatório, meu irmão apanhou, em professor de ditado, o Dr. Armando Cortes Rodrigues que, escrevendo divinamente, falava um micaelense cerrado e nervoso, pouco mais que ininteligível. Chumbou meu irmão por erros no ditado, facto que o traumatizou de tal forma que jamais se recuperou da injustiça perturbadora de toda a sua vida académica.

Munido dum sentido de humor muito agudo, Mélito sobreviveu (tal foi o diminutivo que nossa Mãe lhe atribuiu, o meu foi Cálito). Mas sempre que lhe saía na rifa o Dr. Armando o caldo entornava-se, facto que lhe atrasou a formatura universitária. Desorientado por um ensino autocrático com o qual nunca fez as pazes, o seu percurso de adolescente iria levá-lo à América e Canadá, de onde o frio o expulsou rapidamente. Depois, vê-lo-emos trabalhar como apontador na ponte sobre o Tejo (a primeira, que foi baptizada com o nome de Salazar e depois crismada com o de 25 de Abril). Daí foi posto na rua pela Madrugada com quem nunca se deu bem. A venda de imóveis levou-o para França, e o Cadastro Geográfico para Coimbra e Lisboa onde, já casado, resolveu tirar um curso superior, o que fez em tempo surpreendentemente curto.

Ainda na Faculdade de Letras de Lisboa, apanha-o a Revolução dos Cravos cuja turbulência o arremessa para as plagas açorianas de S. Miguel, em plena convulsão independentista. O seu espírito inquieto onde porventura a minha prisão pelos pseudo revolucionários dos Açores gerou revolta, impele-o para acção directa em defesa da lavoura micaelense então completamente desorganizada e explorada, mas acaba por ser preso e julgado, liberto e amnistiado.

É neste período complexo de luta entre os autonomistas, centralistas e independentistas que a sua produção literária e artística se desenvolve com virulência.

Entre artigos para os jornais e os diálogos que tomam a direcção da comédia ou tragédia conforme a sua vontade criadora, ele usa a língua portuguesa com mestria e à vontade para obrigar o leitor a pensar criticamente o tema proposto embora lhe seja indiferente a opinião daquele, que despreza e ama simultaneamente.

A carga psicológica é porém indisfarçável. Partindo dum motor egocêntrico em que a introspecção chega a parecer violenta nos seus efeitos, ele descreve um mundo em que se de gladiam complexos, culturas, feitios, traumas, passado pessoal e político, formação académica e algum autodidatismo. Tenta a síntese. E, por vezes, atinge-a genialmente. Com ele abriu-se um novo capítulo na literatura escrita nos Açores. Desta vez sem a bênção dos poderes mas com a indiferença dum mundo oficial divorciado de valores reais e essenciais que ele cultiva com soberano desprezo pela opinião dos sábios da nomenclatura e da inteligentzia consagrada.

Do período que vai de 1975 a 2001 gostaria de destacar na sua obra literária os seguintes trabalhos. A Filoflá, No Reino dos Apedeutas, Os Esquerdistas e Os Memoráveis. Penso que são as suas obras primas, inspiradas pelo momento histórico da revolução abrilista, do fim do império português e a restauração da democracia que geraram no seu espírito os retratos geniais de figuras reais mas simbólicas de posicionamentos sociais e políticos diversificados. A universalidade desses tipos psicológicos, arvoram tal obra a uma altura até aqui inatingida na literatura açoriana.

Além destes trabalhos produzidos sob a forma de dramatologia, escreveu diversos diálogos em que aprofunda, à maneira socrática, temas que o atormentaram. Amargura, Caderno do Olhar, Desatino, Diálogo, Mente em Pó, Na Servidão do Desejo, O Biteísta.

Da pintura, só deve falar quem sabe. Por isso e bem vistas as coisas eu devia ficar mudo. Não sou nenhum Francisco de Holanda nem sequer vejo muito bem. Mas a verdade é que a pintura de meu irmão não me deixa indiferente.

Aliás, desde muito novo que ele mostrava queda para o desenho e trabalhos manuais. Julgo que eu tinha doze anos quando ele desenhou a minha cara a carvão, que nosso pai achou tão bem feita que decidiu logo que ele tinha que tirar o curso de dentista, devido à notória habilidade de mãos!

Penso, no entanto que a pintura de Mandala (um dos pseudónimos que adoptou já entrado nos entas) ainda se aproxima perigosamente da verdade quando ele pinta o retrato. Verdade psicológica e por vezes cruel como uma caricatura e que nossa irmã Maria da Graça vem salvando pacientemente da destruição. Licenciada em História, ela tem a noção do valor estético a preservar e observa a obra de nosso irmão pela verosimilhança e pela beleza.

Confesso que as primeiras obras que me ofereceu não me puseram eufórico, talvez porque nessa altura a pintura nada me dizia e nunca tinha visto na minha frente uma História de Arte.

Depois que ele atingiu a idade da sabedoria e à medida em que as pessoas que retractou se vêm tornando, com a idade, cada vez mais parecidas com a obra que inspiraram, esta torna-se profética e de alguma maneira denuncia o génio que estava oculto às mentes vulgares do nosso ainda mesquinho meio semi-medieval da cultura.

A paisagem e as flores, o nu e o abstracto são duma sofisticação e dum intimismo que denunciam uma alma tímida com a educação dum príncipe romântico. Sofisticação patente na harmonia das suas cores. Intimismo manifesto na solidão dos temas que se diriam concebidos numa torre de marfim onde os tumultos da plebe não sobem.

Possuo quatro estudos em que meu irmão tentou exprimir o mar, o homem e o domínio deste sobre aquele. Há diferenças subtis e quase imperceptíveis entre os quatro trabalhos mas que são suficientemente explícitos para demonstrar a busca sistemática e persistente dum objectivo quiçá não atingido.

Resta por fim o auto-retrato de que se já disse ser aquela obra onde o artista não se deixa iludir pelo modelo. Serenidade, perspicácia e perplexidade, eis o que me parece que o artista viu.


Ultimamente, resolveu ir para Lisboa, entediado com o marasmo local e ferido por memórias dolorosas, mas com o objectivo de tirar outro curso universitário. E já na antiga capital do Império, designou a sua pintura como “pincelismo”. Juntamente com os maravilhosos quadros que me mandou, dentro desse estilo, e de que se fará exposição oportunamente, enviou-me o seu pensamento sobre esse género de pintura que vos transcrevo:

“O Pincelismo tem por objectivo o limite da ideia. Como esta é fruto das maquinações do cérebro, aquele (limite) distende-se rebeldemente ao sabor da instabilidade. Talvez seja, em certa medida, o espelho dum universo que se digladia (interpretativamente, claro) nas diversas opções da Física Teórica, uma teoria da relatividade generalizada que não encontra resposta no mundo quântico. Mas será o “pincelismo” pintura? Eu penso que não! Pelo menos no sentido clássico, moderno, e mesmo contemporâneo. Não se procura agradar nem tão pouco organizar os pigmentos sistematicamente. Anarquismo, traumatismo pós nascimento das vítimas involuntárias que não pedem para sofrer”? É capaz! Como encarar a crítica? Mandando-a lamber sabão. O que procurei pintar? Quando entrava em casas da velha burguesia, sobretudo a comercial, encontrava em cima das mesas da sala de estar algumas fotos. Fiquei com elas na memória. É que a pose das personagens as tornava patéticas umas vezes, outras empertigadas. Mas sempre vazias e idiotas. Algumas, menos dotadas de fundos, a meu ver, representavam uma caricata hipocrisia no momento em que o fotógrafo os captava. Nem sempre é fácil pintá-los… sobretudo de memória. Pintar, leia-se pincelar! Este texto acompanha a pintura. As figuras têm por detrás um certo tipo de pintura impressionista. É o que eu chamo de incoerência do pincelismo. Nada a fazer…

É uma espécie de queda no abismo, à medida que nos aproximamos da morte vem à lembrança todo um passado de momentos. Esses momentos são parecidos como quando as queremos expressar através da pintura. Fica-se com a sensação de impotência perante eles e “retratá-los”, às vezes, é angustiante. Não temos os modelos presentes, não sabemos desenhar, tão pouco pintar, mas a vontade de os descrever através do pincel torna-nos “pincelistas”.

Terá isto a ver com a escrita pictórica dos primeiros tempos em que o homem a utilizava para contar histórias ou momentos?

Pincelismo ou seja “utilizar a pintura como expressão “escrita” do pensamento. Este até pode ser confuso ou muito confuso”; e isto porque a “caligrafia assim como a pintura têm que ter dono. Quando houver confusão em atribuir-lhes paternidade, a pintura mais que a grafia não singra”. “O pincelismo não respeita as regras dos pigmentos primários. Muitas vezes as pinturas rupestres são consideradas obras de mestres em relação àquele. Não é liberdade nem desvario, é expressão manipulada pelo subjectivismo de cooperação. Um tipo de colectivismo encapotado”.


São palavras de meu irmão Manuel que expressam esta nova maneira de encarar a pintura que parece merecerem meditação.

Guardo para o fim a sua faceta de professor, pedagogo e dirigente pedagógico, campo em que a minha capacidade de análise é ainda mais pobre. Foi o seu grande amigo, o Dr. José de Almeida, quem escreveu a mais acutilante imagem dele que transcrevo. Aliás, nosso Pai que era primo, sobrinho e neto de professores, também ensinou na velha Escola Industrial e Comercial de Ponta Delgada onde deixou rasto que ainda hoje se sente nos seus antigos alunos. Por isso, o ensino foi desde sempre uma opção para nós. Para meu irmão foi o pretexto para demonstrar uma coragem e competência invulgares. Ouçamos o que, neste capítulo diz José de Almeida de cujas Memórias ainda inéditas roubei o seguinte passo:

“Foi professor, director de turma e orientador pedagógico, na Escola Roberto Ivens, em Ponta Delgada e Director de Escola, na cidade da Ribeira Grande.

Envolvido na nova perspectiva de localizar a Escola centrada no aluno, acreditou, estudou e percebeu que esta Escola Nova exigia professores competentes e empenhados. Desenvolve técnicas e realiza actividades que o distinguem como professor e homem, no ensino, com projecto e empenho. Daí as responsabilidades que assumiu.

A sua figura de pedagogo e mestre na área do ensino criou uma corrente de ligações afectivas, culturais e sociais, hoje, ainda, de muito boa memória entre colegas e alunos, testemunhas vivas deste riquíssimo período da sua actividade no ensino”.

Personalidade complexa mas genial. Sensibilidade frágil como um cristal mas camuflada. Inteligência brilhante mas inaproveitada, não me fica bem dizer isto mas meu irmão é uma personalidade excepcional que uma cultura insaciável transforma num ser imprescindível para quem tem a ventura de o conhecer de perto.

Carlos Melo Bento
2008-01-10

[1] Ver, Genealogias Manuscritas de Carlos Machado, na Biblioteca Pública de Ponta Delgada, descendência de João Afonso, e Enciclopédia Luso Brasileira, com referência ao mesmo nome.
[2] Jorge Forjaz, Genealogias da Ilha Terceira, VI, p.783 e seguintes e Frutuoso, Saudades da Terra, IV, vol. 1º, p.191. Os Marqueses de Fromista, além de outros, usavam os apelidos Pacheco e Benavides que seus descendentes ainda hoje usam nesta ilha. Esta Casa é hoje representada em Espanha pela Duquesa de Plasencia, Elenco de Grandezas y Títulos Nobiliarios Españoles, Madrid, 2001.

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