PARA QUE ISTO JAMAIS SEJA POSSÍVEL!
Seis meses após ter proferido na Lagoa uma palestra subordinada ao tema: “Açores, autonomia, autodeterminação ou independência” (que está publicada noutro lugar deste blog), cumpri quinze dias de prisão na cadeia de Angra. Escrevi momento a momento a angústia dessas horas terríveis. Publico tais apontamentos na esperança de que jamais isso torne a acontecer, neste nosso País: serem açorianos presos, por estrangeiros na sua terra.
E, se por essa razão, for preso outra vez, então ao menos, os Açorianos terão a certeza de uma coisa: só poderemos ser verdadeiramente livres à força, expulsando do nosso seio o opressor.
Ponta Delgada 18 de Agosto de 1975
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Segundo dia – Entre o pequeno-almoço e o almoço. Chegaram-me neste momento às mãos vindos do andar debaixo da cadeia de Angra transformada em presídio militar, o bloco e a carga de esferográfica com que vou “usar” um pouco do tempo inútil que venho gastando nesta cela nº. 5.
Estou “só”, desde que para aqui vim. O quarto onde me meteram, tem 3 passos de largura por cinco de longo, húmido (a minha constipação e o defluxo aumentaram) recebe 30 cm de sol durante umas duas horas da parte da manhã. Sempre gostava de saber qual foi o sábio arquitecto que projectou esta prisão, bastante moderna aliás, pois nem deve ter sequer dez anos... As pessoas apodrecem aqui dentro lentamente.
Sente-se a humidade penetrar nos ossos. O chão é de mosaico fino; a janela deve ter um metro de largura por 1,25 de altura, tem uma parte central com duas filas de vidros fixos a meio e uma tira de vidros, superior e inferior, em basculante, única forma de arejamento palpável! No parapeito interno 5 barras grossas de ferro cruzadas por 5 réguas de ferro transversais.
A cama é de ferro (penso que como as de campanha) pintada de cinzento. Dois colchões duros, dois lençóis de limpeza e alvura desvirginadas, uma almofada cuja fronha não a cobre completamente o que a faz assemelhar-se ridiculamente, a alguém vestido por alma.
Duas cadeiras pesadas, uma mesinha tosca com o lado da frente escanicado por trabalhos de faca ou canivete e com vestígios ligeiros de ter sido, outrora, envernizada.
No canto superior direito da sela junto da janela, um armário triangular. Do mesmo lado, mas junto à porta cinzenta e remendada, uma bacia de porcelana que já deve ter sido branca, embutida em cimento e adornada com restos de sabão, molas, pregos, um copo cor de laranja escuro (que está virado para baixo desde que cheguei) e um resto de pasta «Colgate» deixado por milagre pelo meu antecessor, pois tinha-me esquecido da minha!
Como disse, a porta está remendada. Parece que o ocupante da cela antes de mim, tentou evadir-se rebentando com a faixa de madeira. Como eu percebo os seus sentimentos! Um pequeno cabide duplo niquelado, toscamente pregado à porta, tem-me servido para nele pendurar o meu sobretudo azul que muito me tem servido nesta fria encarceração injusta a que a cegueira política me condenou. Os seus serviços foram inestimáveis, principalmente na primeira noite. As paredes da cela n.º 5 são porém a parte mais folclórica de todo este bloco irrespirável de cimento armado. Como disse, esta cadeia foi transformada em presídio militar antes de para cá virmos. Ora, os pobres dos presos que nos antecederam foram transferidos à pressa para o comando militar pois que este, ao que dizem, não tinha condições para nos “receber”.
Na pressa da retirada, deixaram ficar atrás alguns dos seus pertences, entre eles, o bilhete de identidade, amarrotado e esquecido dentro de um livro de geometria. Diz o bilhete de identidade que o seu portador se chama José Gaspar Fernandes da Rocha, natural de S. Mateus da Calheta, Angra do Heroísmo e vai fazer 30 anos em 10-12-76. Eu tenho 33 e faço este ano em 17-12-76, 34. Espero não me esquecer quando sair daqui (e se sair) de lhe pagar a “Colgate” que tive de usar e pedir-lhe desculpa pelos incómodos que a minha incrível prisão veio provocar-lhe. Faço questão disso, pois quero que o rapaz não me odeie por facto a que sou alheio completamente.
Mas, para além desse plastificado meio de identificação, o José Gaspar havia coberto as paredes da cela com recortes mais ou menos pornográficos ou núdicos além de, para cúmulo da ironia, uma conhecida anedota ilustrada do Professor Marcelo Caetano e os seus companheiros de exílio, na Madeira, da autoria dum tal Baltazar.
Junto da porta e apontando para ela um cowboy a cavalo, disparando o seu colt, ao mesmo tempo que ostenta, ao peito, a estrela de sheriff.
Este turbilhão de motivos que José Gaspar contemplou diariamente no seu húmido cárcere (e eu agora) deixei-o intacto para não criar nele ideias torpes a meu respeito. Aliás trata-se da sua propriedade privada que não quero desrespeitar seja por que motivo for.
Apenas tapei com as toalhas que ontem me chegaram de casa (como deve andar preocupada a minha querida mulher) uma história em quadradinhos que culmina numa orgia e num pedido de divórcio da autoria de P. Dranley, por ofender absolutamente os meus conceitos éticos religiosos.
Na mesinha onde escrevo, encontrei dois livros de inglês (2.º e 3.º anos), um de geometria, um sobre a história do papel (ambos relativamente fracos e com citações de Salazar...), 2 livros de frei Boaventura, O.F.M. brasileiro intitulados “Livro Negro da Evocação dos Espíritos” e “Posição Católica Perante A UMBANDA”, ambos em terceira edição. Um da série Tio Patinhas e outro “O Comércio”.
Era Domingo à noite, deitara-me fatigado e contrariado pois o meu clube de futebol ( o Micaelense Futebol Clube) perdera por 3-0 na Lagoa, descendo assim um degrau mais para a 2.ª divisão. De resto, tinha que dar aulas na Escola Técnica às oito da manhã e tínhamos que ir cedo para a cama.
Havia chegado de Lisboa, neste dia, a minha afilhada Sandra que fôramos buscar ao aeroporto, entretanto completamente cercado de tropa, pois o nervosismo entre os militares era nesse dia indescritível e inexplicável. Os miúdos dormiam cedo.
Cerca das três da madrugada senti um batuque à porta, estranho e insistente. Levantei-me de pijamas, alertei minha querida mulher que julgo não ter percebido o que se passou e fui até à porta. Vislumbrei da janela da sala, de passagem, a silhueta até então agradável, de marinheiros e soldados de Portugal, em atitude bélica. Seriam talvez uns dez, ao que me pareceu, fortemente armados.
Abri a porta e vi entrar um furriel músico micaelense, acompanhado por dois soldados de espingardas engatilhadas. Os sentimentos de dor, a confusão de espírito, a angústia e a repulsa que tal gesto me provocou não os saberei jamais descrever.
Pedi que entrassem. Mostrou-me um papel dactilografado em que a minha comparência era pedida no Comando. Fui-me vestir. Eles subiram as escadas até ao meu quarto de cama. Só pedia a Deus que as crianças não acordassem para não verem o triste espectáculo da prisão de um pai que tanto os ama. Na minha vida de advogado tenho assistido a cenas de prisão mais ou menos trágicas. Nunca porém, vi entrar uma força de armas tão grande para prender um cidadão pacífico e só, rodeado da mulher e 4 crianças, das quais a mais velha tem 9 anos. Um simples telefonema, mesmo a essa hora, ter-me-ia levado ao mesmo lugar. Nunca desobedeci às autoridades do meu Pais e não era agora que ia começar.
Beijei minha mulher. O seu estado de espírito calculará qualquer esposa e mãe. As suas últimas palavras sangraram-me o coração: «Não quero ficar aqui sozinha». E eu sem poder valer-lhe. Trouxe a máquina de barbear a conselho do meu captor. Pu-la dentro do estojo com a escova de dentes e sabonete. Vesti o meu fato escuro e trouxe à, cautela, o sobretudo.
Meteram-me num jipão guardado por tropa e levaram-me para a doca.
A caminho, no cruzamento da Rua da Cruz com a do Marquês, vislumbrei uma cara amiga: Correia Bettencourt. O seu rosto perplexo jamais esquecerei. Ele não compreendia nem eu!
No porto artificial de Ponta Delgada, uma força armada da guarda-fiscal, tropa e marinha. Vozes, corridas, levantam a barreira. Ouvi dizer «o patrulha que sai às 4 horas». Tremi. Pensei nas crianças, nos meus pais e na minha querida mulher. Quando os verei?
Afinal não foi o patrulha: era um navio militar de fiscalização de portos e faróis. Fizeram-me entrar para a sala de jantar. Sentados, vi Bruno Tavares Carreiro. José Franco, Eng.º António Clemente Pereira da Costa Santos, João Manuel Furtado Rodrigues (de Ponta Garça), Victor do Carmo Cruz. Foram depois entrando vários: Luís dos Reis Índio e seus dois filhos, Luís Octávio dos Reis Índio e João Luís Soares dos Reis Índio, Luís Ricardo Vaz Monteiro de Vasconcelos Franco, Dr. Abel da Câmara Carreiro, Manuel Oliveira da Ponte (dono do Armazém Canadá), Regente Agrícola Valdemar de Lima Oliveira, Regente Agrícola Gualberto Borges Cabral, o jornalista Gustavo Manuel Soares Moura, o locutor do “Paralelo 38”, Aguinaldo da Silva Almeida Carneiro. Os irmãos Luís Manuel Duarte Domingues e José Manuel Duarte Domingues, Luís Maria Duarte Moreira e seu filho Álvaro Pereira Branco Moreira, António José de Amaral Dr. José Nuno de Almeida e Sousa; António (Toni) Nuno Alves da Câmara; António Brum de Sousa Dourado (de Vila Franca); o dono do restaurante das Caldeiras, da Ribeira Grande, Manuel da Ponte Tavares Brum; Armando Guilherme Goyanes Machado; João Gago da Câmara e o Eng.º António Manuel Gomes de Menezes.
Animaram-me com palavras boas aquelas santas almas. Onde iam eles buscar aquela calma é que não sei. Por mim, estava lívido e nunca odiei tanto na minha vida.
Riam. Conversavam animadamente. Contavam a sua ventura. Por mim achava incrível que no meu País fosse possível passar por cima da lei que proíbe as prisões em casa, após o pôr-do-sol. Uma prisão é triste. Mas quando é feita de noite toma o aspecto infernal e terrível duma catástrofe. É o sono. São os nervos. São os filhos e a mulher. Tudo junto torna impossível que um espírito verdadeiramente cristão possa ordenar ou executar semelhante monstruosidade!
Faziam-se conjecturas sobre o nosso destino. Uns que iríamos para Caxias. Outros que para outra ilha do Arquipélago.
O comandante do navio chegou entretanto. Acompanhavam-no mais de uma dezena de homens armados. Falou em que não criassem problemas que os já tinham de sobejo e que iríamos para a ilha Terceira por que a nossa integridade física estava em perigo. Quanto ao primeiro ponto não percebi, porque se alguém estava a criar problemas não éramos nos. Quanto ao segundo ninguém acreditou até àquele momento, pelo menos, que tal perigo existisse.
De qualquer dos modos, apercebi-me ali mesmo que o maior disparate político do século estava a ser cometido. Prendiam-se 30 pessoas sérias que eram arrancadas da cama de madrugada, num gesto digno do Marquês de Pombal, para lhes proteger a integridade física! Toda a gente percebeu que se atacavam açorianos por o serem e sem descriminação de culpas ou credos. Se até aquele momento o Açorianismo fora um pretexto para conversas de café, de ali em diante ficaria gravado a fogo nas almas dos 30 da Terceira, dos seus familiares (às centenas) e dos seus amigos (milhares).
Eis como dum disparate acorda um sentimento tão profundo na alma dos povos ou dum povo.
A viagem não podia ter sido pior. Dividiram-nos em três grupos. O nosso foi para a sala dos oficiais. Julgo que não ficou ninguém por vomitar. Por mim cumpri a minha obrigação também. Até a bílis se foi. E mais não era preciso para me transformar dum degredado num desenterrado.
O Sr. Reis Índio tinha pedido para ser transportado de avião pois sofria de doença que o impedia de viajar de barco. O médico de bordo, um rapaz novo, de pêra, magro, com olhar inexperiente e sendo-o pela certa, disse que ele podia viajar perfeitamente; o resultado foi que o Sr. Índio chegou à Terceira a soro e o médico, que segundo dizem enjoou também, não apareceu mais. Julgo que aquele ainda hoje se encontra internado no Hospital na companhia do filho mais novo.
Chegamos à Terceira e fomos entregues a novo “chefe” militar. O comandante do B.I.I. 17.
Tratava-se salvo erro dum Major que nos dirigiu a palavra pedindo que nos não admirássemos do “aparato” militar que nos aguardava, e que iríamos ficar nas instalações prisionais do Palácio da Justiça, quer dizer, na cadeia de Angra.
Já neste edifício pudemos verificar que da Terceira também nos faziam companhia quatro senhores, o Sr. José Silvério Bispo, da Praia da Vitória, um outro senhor da cidade de Angra que agora me não lembro o nome mas que personifica fisicamente a imagem mais generalizada de D. Quixote (tratava-se de Luís Guiod de Castro, com pêra e tudo) e mais dois jovens que não tinha tido a honra de conhecer, antes (tratava-se de Paulo Tadeu Mendes Brum Pacheco e José Manuel Rodrigues dos Santos, este estava ligado à FIAT).
À tarde do dia seguinte, chegaram, de avião, Tomaz Faria Caetano, Fernando Manuel Mont'Alverne de Sequeira e Eduardo José Pereira de Almeida Pavão, comandante da SATA. Pelo Fernando, velho amigo e cliente, neto do maior dos Açorianos, Dr. Gil Mont'Alverne de Sequeira, minha querida Mulher mandou-me uma pequena mala vermelha com roupas e uma fotografia nossa com os miúdos que costumo ter em cima da secretária de trabalho. Por causa dela tive pela primeira vez uma forte comoção que me deixou bastante abalado
O primeiro dia foi amargo como os restantes; estamos guardados de tropa por todos os lados. No cais, uma pequena multidão de curiosos era afastada por vulgar barreira em madeira. Alguns uivaram ao me verem assolar ao portaló; o que não terão dito àquela pobre gente ignorante para fazerem tal figura perante quem estava inocente de qualquer espécie de culpa.
Convidaram-me a entrar num camião militar com capota fechada. A tampa de ferro fechou-se com estridência e o motor roncou forte até às “instalações prisionais”.
Aí, novo ajuntamento. Julgo ter sido o primeiro a sair. Um homem dessa gente que aí se juntou gritou para o ar: “Malandros”. Magoou-me esta expressão. Pensei em Cristo. E apesar da chaga que ainda hoje a lembrança duma tal injúria sobre um farrapo humano que tanto já havia sido torturado física e moralmente, abre, perdoei-lhe do fundo do coração.
Em verdade, aquele pobre diabo não sabia o que fazia ou dizia. Deus pela certa, um dia que o chame a contas, há-de fazer-lhe sentir que são dignos de dó os que sofrem a crueldade duma perseguição odiosa e injusta. Os homens nunca aprendem. Mas, enfim, tratar-se-ia dum boçal. Que dizer então dos “ilustrados” que nos faziam passar por aquilo?
Entrei na prisão e o meu coração parou por segundos. Sempre é verdade que a voz do povo é a voz de Deus “na cadeia e no hospital, todos nós temos um lugar”.
Enfim, chegou a minha vez. Cabeça levantada mas com a alma sangrando. Os soldados, já se sabe, rapazes novos, olhavam-nos mais com curiosidade do que com qualquer outro sentimento. O que me trouxe à cela era de S. Miguel; mais precisamente de Vila Franca.
- O senhor não me conhece? Perguntou-me, sempre a fitar-me com os olhos muito pequenos e pretos. - Claro que te conheço, disse eu, sem mais uma palavra. Entrei; a porta fechou pesada sobre mim; os gonzos pesados, guincharam imenso e dentro da cela dir-se-ia que todos os ferros do mundo batiam uns nos outros. Depois, a fechadura pesada deu duas voltas sobre si, movida pela mão do carcereiro da prisão que, arrastando os pés, por lá ficara dando instrução, aos novos senhores do presídio civil agora “graduado” em prisão política militar!
A minha primeira acção foi, quando me vi só, ajoelhar-me e rezar. Rezei muito e depressa, tão depressa que penso que Deus pouco há-de ter ouvido de minhas preces…
De resto, ai de mim se não fora a oração. Rezei sempre esses dias de triste e infame cativeiro. As horas passei-as lendo e rezando. Dando voltas incontáveis nessa cela. Lembrei-me de el-rei D. Afonso VI que aqui viveu degredado. Comigo a diferença era não ser rei e não me chamar Afonso. De resto esse rei foi um louco e a minha única loucura tem sido amar a minha terra.
Nesse dia almoçámos muito tarde, no corredor do rés-do-chão onde se encontrava uma mesa com talheres e pratos com carne e batatas fritas. Tudo muito frio e dessaboroso. A carne intragável, as batatas sem tempero. Compará-las às da cervejaria Melo Abreu seria comparar uma escultura de Miguel Ângelo a outra de Picasso… do último período!
Comi muito pouco até porque o estômago com todo o esforço de vomitar a bordo encontrava-se em estado caótico. Um dos meus colegas de degredo e prisão aconselhou-me a comer mais pois provavelmente não comeríamos mais nesse dia.
De facto, isso ia acontecer comigo. Deitei-me cheio de frio, cobri-me com o sobretudo (o casaco já o tinha) e quando, com o habitual barulho de gonzos e fechadura, o oficial me foi chamar para o jantar, respondi-lhe que não jantaria.
Acordei na terça-feira, ontem, relativamente bem disposto. Lavei-me, fiz a cama: lavei o lenço (o único que até aí pudera utilizar apesar de constipado!) e aguardei o pequeno-almoço que foi servido na cela: uma taça metálica com um dedal de café com leite e um quarto de pão com manteiga. A porta fora aberta por soldados assustados, de largos olhos arregalados de espanto e metralhadoras aperradas.
O pão guardei-o na gaveta da mesinha para o caso do almoço não vir a horas, o que de facto aconteceu. E, nessa altura, até me pareceu massa amassada por anjos!
Ao almoço, soube-se com certo alvoroço que a comissão de inquérito estava já a funcionar, presidida pelo comandante naval do Arquipélago, em pessoa! O mesmo que meses atrás havia impedido a minha vinda à Terceira como Presidente do Micaelense Futebol Clube, publicando a notícia no Jornal Açores e cujo director (agora preso comigo) me informara previamente disso.
Foi ouvido em primeiro lugar o Eng.º Costa Santos. Ouviram-me em segundo. Fui levado ao comando por um aspirante que à saída da prisão houve por bem carregar ostensivamente a pistola talvez para me lembrar que a força das armas era a única que ele conhecia, já que fisicamente não seria propriamente um Hércules e da força da lei (que para mim é tudo) ele só deveria ter ouvido falar vagamente e de passagem. Não me recordo bem ao certo mas parece-me ter ouvido dizer que era estudante de engenharia (!) e do continente.
Cheguei ao Comando Militar, instalado no antigo palácio dos Governadores Generais dos Açores. Ao ser levado à presença da comissão, fui-me lembrando dos três presidentes que se reuniram nesse mesmo palácio alguns meses atrás.
Nixon renunciara, o senhor. Prof. Marcello Caetano deposto e Pompidou morto. Não era realmente um lugar de bom augúrio. Resta saber agora sobre quem recairá o enguiço, se sobre nós, se sobre a comissão de inquérito... Mandou-me o presidente sentar num velho maple onde me enterrei quanto pude saboreando esses 3 minutos que me deram de relativa liberdade.
À minha frente 5 oficiais: 2 da marinha, 2 do exército e 1 da aviação. O relator leu-me os pontos de acusação ou suspeita: ter escrito artigos a favor da independência dos Açores e ter participado numa manifestação no dia 8 (Domingo), de Junho do corrente 1975.
Quanto ao primeiro ponto neguei obviamente pois toda a gente sabe que até hoje apenas defendia a autonomia tradicional embora ampliada. De resto, não escrevendo eu há 8 meses estranhei a demora que tiveram em perceber os meus artigos.
Quanto ao segundo, unicamente no dia 7, Sábado, fui até ao quartel general, a convite dum cliente, ouvir a resposta do general à comissão de lavradores que este tinha recebido juntamente com um advogado, Dr. Abel Carreiro, hoje internado aqui connosco.
O resto das perguntas e respostas giraram à volta de assuntos fora do questionário ordenado, a que não me recusei a responder: a FLA, a minha antipatia por oficiais continentais e outros assuntos de igual interesse.
Numa das respostas que dei ao oficial de marinha tive de lhe chamar a atenção para a distinção que ele fazia entre o País e os Açores facto que não deixou a comissão bem disposta.
Regressei à cadeia pela mesma via e viatura, etc., à excepção do condutor e do aspirante que segundo julgo seriam outros.
Seguiu-se no interrogatório Victor Cruz (filho), funcionário do Consulado Americano. Quando voltou vinha branco. Pelos vistos fizeram-lhe as perguntas mais disparatadas possíveis e ele ficou desapontado.
Que se saiba já foram ouvidos, além desses, o Dr. Abel Carreiro e o Dr. José Nuno. Ao interrogatório do Dr. Abel não assistiu o Comandante Naval, que é sogro do filho. Segundo se diz fora chamado de urgência a S. Miguel...
Por outro lado, hoje, quarta-feira julgo eu (visto que não trouxe relógio nem calendário), o dia passou-se praticamente sem sobressaltos. Almoçámos cozido à portuguesa; desta feita já com um transparente guardanapo de papel; progressos.
Passámos poucos minutos ao sol por falta de pessoal. Esperança: no interrogatório do Dr. Abel foi posta a possibilidade de os já interrogados serem levados para S. Miguel com termo de residência. É, até hoje, a única réstia de esperança e luz que nos surge. Queira Deus em Sua infinita misericórdia conceder-nos essa graça. Em nome do Senhor Santo Cristo, o peço.
Acabei de telefonar aos meus. Falei com a minha mulher, os miúdos, a Sandra e a minha irmã Graça. Custou-me um tanto. Falei curto e rápido. Apesar disso, a chamada custou-me escudos 60$00, devo-os ao Luís Franco. O carcereiro, cara de pau vestido de barbas, nada disse. Ou deformação profissional ou extrema cautela do espírito terceirense ou ambas as coisas. Limitou-se a perguntar se eu tinha esses filhos todos.
Entretanto, o Luís e o José Franco receberam visitas. A mulher do José falou comigo. Pobre senhora, os seus olhos de angústia foram lâminas que me rasgaram o coração.
Em certa medida dou graças a Deus por minha Mulher não ter vindo. Ela não quis. Ver o José abraçado à esposa junto das grades do corredor foi uma triste cena que veio trazer mais dor a este injusto cativeiro.
A Ana Cristina disse-me pelo telefone que não tinha ido ao colégio. Bem bom; disseram-lhes que eu estava em serviço. O pior vai ser quando eles vierem a saber a verdade.
Regressado de telefonar, a porta da cela ficou aberta por instantes, enquanto o aspirante se não lembrou de a vir fechar. Entretanto um soldado que me fez lembrar alguém conhecido, veio até aqui brincar com a sua G-3, ao mesmo tempo que me perguntava com olhar brincalhão o que escrevia eu.
É bom moço; apenas trazidos para aqui à força, muitos deles não vão a casa desde que nós chegámos. Como os lamento.
O aspirante (com ar pálido, de bigode e pequena mosca à d'Artagnan, adolescente) ao fechar a porta, perguntou-me se precisava de mais alguma coisa. Respondi-lhe que queria ir para casa (como se isso dependesse dele!). Olhou-me, perguntou-me o nome, olhou uns papéis e depois fechou a porta sem dizer palavra.
Ouviu-o depois passar um raspanete ao rapaz por ter falado comigo. Pelos vistos estes pobres diabos estão proibidos de o fazer. Se soubessem quanto nos custa este isolamento, deixar-nos-iam falar com todos ao mesmo tempo, todo o dia. Isto é um inferno. Um inferno que dá que pensar. Tanto quanto eu saiba e em linha recta ascendente sou o único dos Bentos que chegou a advogado e...à cadeia. Boas perspectivas para a família, sem dúvida!
Foram-nos buscar a casa de madrugada por umas horas: “Traga apenas a máquina de barbear” (estamos aqui há dias); disseram-nos a bordo que seríamos entregues à força aérea. Meteram-nos na cadeia à conta do exército. Disseram que a comissão de inquérito viria no mesmo dia que nós. Veio só na 3.ª feira. Oxalá nos não digam mais nada.
Não sei como é que fazem quando prendem oficiais, mas estou certo que os não tratam tão mal como agora nos fazem a nós.
A vida interna na cadeia, com 30 e tal pessoas a fazerem necessidades quotidianas já fez entupir a canalização e a encher o edifício de mestres, pedreiros, canalizadores, etc.
Para chamar o guarda tem que se bater à porta. Vem a sentinela que geralmente se engana na cela. Nas horas de mais aperto, toda a gente bate ao mesmo tempo.
É uma sinfonia de batuques só comparável à entrada em cena circense de artista consumado. Podemos ir à casa de banho, telefonar à família, receber visitas, ontem deixaram-me ir barbear lá a abaixo pois não tenho ficha no meu cubículo e uso máquina eléctrica.
Espero que hoje me deixem fazer o mesmo pois já sinto picanços no pescoço.
O que me admira é ver colegas de infortúnio que ainda mantêm o sentido do bom humor. Onde irão eles buscar forças anímicas? Por mim confesso, estes têm sido os dias mais tristes da minha vida. Tristes e dolorosos.
No primeiro dia vieram pôr-me uma Iâmpada aqui. Fica ela situada por cima da porta. Perguntei à sentinela como se fechava. Resposta: é só subir para cima da bacia e desatarraxar a lâmpada. No sorriso daquela alma sã não havia, presumo, fumos de ironia. Irónica era a situação.
Vou interromper este diário por uns momentos. Lembrei-me agora que me esqueci de lavar os dentes. Até esse hábito inveterado me passou com o inóspito disto tudo. Depois irei fazer um pouco de exercício indo da porta á janela e vice-versa. Se conseguir fazer esses exercícios sem perturbações de maior dedicarei alguns minutos à leitura. Para evitar a monotonia, tenho lido vários livros ao mesmo tempo, sucessivamente, claro.
Ora me embrenho nos segredos de Iemanjá a mãe d' água ou de Exu, ora me delicio com a história do papel ou com alguma aventura do Pato Donald!
Hoje o Engº. Costa Santos emprestou-me dois livros novos: um é um policial «À espera do Assalto» de Wesley Sproude, que não tenciono ler a não ser «in extremis». E um exemplar da revista «História» com uma série de artigos sobre o movimento da mulher. Li Já um enredo histórico sobre a pretensa paternidade de Talleyrand sobre Delacroix. Interessante.
Vesti-me para o jantar pois ouço já o primeiro turno rir e falar lá em baixo. A minha janela dá para o pátio onde depois da refeição se descansa. Fui vê-los. Noto entre eles o meu cliente Tomaz Faria Caetano. O acaso do destino fez com que ele me empurrasse aqui para dentro e agora ele cá está. Não fora o seu convite para irmos ao quartel ouvir a resposta do Governador Militar e talvez não se tivessem lembrado de me impor este triste calvário (um dia explicarei convenientemente esta parte). Enfim coisas do destino que só neste nosso país seriam possíveis.
Fui jantar: depois de todos os outros grupos vamos nós, os que já fomos ouvidos, ou seja e por ordem: o Eng.º Costa Santos, eu, o Dr. Abel Carreiro, o Dr. Almeida e Sousa, o Sr. Bruno Carreiro e o jornalista Gustavo Moura, sendo que este último irá de novo amanhã.
Comemos sopa de feijão, fria e peixe duro, frio e dessaboroso. Conversámos depois do jantar. Ao que me diz o Gustavo Moura, no sábado dia 7 de Junho, os oficiais do Comando Militar haviam decidido deter todos os responsáveis pela Manifestação durante os 30 dias que, segundo eles, a lei dá para fazer a instrução do processo.
Se isto é verdade, trata-se da maior vilania e estupidez que o sol cobre. Trata-se de defraudar a lei que, se desse esse prazo, era para investigações e não para castigar pessoas sobre quem recai apenas uma suspeita e de que não existe o mínimo indício de culpa. Falo, evidentemente, por mim. Mas presumo que tipos sérios como Bruno Carreiro ou Abel Carreiro e Almeida e Sousa estarão no mesmo. Quanto ao Gustavo Moura, o seu jornal fala por si, e, praticamente, nem precisaria de investigação. Consta, por outro lado, que o Ministro Salgado Zenha nomeou o juiz adjunto do Procurador da República para representante do Ministério da Justiça junto da referida comissão de inquérito.
O Dr. Mesquita é um juiz sério e portanto a sua presença só nos poderá beneficiar, se tiver de facto alguns poderes ou se puder usá-los.
Trinta dias! Só de imaginar isto o que será durante todo este tempo, o meu cérebro revolta-se.
Depois do jantar, o oficial deu-nos um bom bocado no pátio. Já era noite. O Dr. José Nuno sentou-se com o Eng.º Santos num coxim de automóvel que serve de sofá. Os outros, mantivemo-nos de pé, em círculo, a conversar.
Já lhes disse que quando era director da cadeia da Ribeira Grande, a lei me obrigava a dar 2 horas de sol diárias aos presos. Mas eles escusam-se sempre com a falta de pessoal. Como é tão pouca a valia da pessoa humana quando se vê relegada para o plano dos sem liberdade.
O Victor Cruz contou uma anedota que os anarquistas pintaram, tipo slogan, nas paredes: “os índios também eram vermelhos e lixaram-se”. Rimo-nos dessa e doutras tolices que ali se disseram para aliviar a nossa dor.
O Gustavo Moura, debaixo dos óculos defumados de lentes impecavelmente limpas com aquele sorriso infantil que o caracteriza e disfarça a inteligência acutilante e sempre activa com que Deus o bafejou, diz-nos no seu falar característico de quem tem sempre a boca cheia que nunca pensou poder mudar tanto em tão pouco tempo. Compreendi-o. Afastado das lides forenses e sem se ter preocupado até agora com a politica interna dos outros países é natural que tudo isto o traumatize violentamente.
É natural que o ódio não seja um sentimento desconhecido para ele, agora!
Fala-se de diligências da França, da América e até do Vaticano por causa de nós.
Oxalá que elas tenham efeito. Se de facto existem…
E pronto, lá está de novo o aspirante d'Artagnan a chamar-nos.
O Eng.º Santos ofereceu-nos uma cerveja geladinha. Estou a bebê-la aos tragos curtos, tanto por causa da digestão como para a fazer render.
O Victor Cruz emprestou-me “O Cruzeiro”, de 8-1-75 onde se pode ler um artigo de Theófilo de Andrade, intitulado: “Em perigo a elite portuguesa” e em que se faz uma série de alusões a técnicas nazis e comunistas de eliminação de elites para domínio de certos países, o qual termina com esta frase de sabor trágico: “por Ia razon* ou “por Ia fuerza”,,, como dizem os chilenos. Oxalá que isto não se realize entre nós.
Lembro-me de novo do dia terrível em que fui preso.
O de Victor Cruz foi pior ainda. Seu pai assistiu a toda a cena. Dois corações destroçados no mesmo tronco familiar. Como castigará Deus tão grande pecado? Oiço um abrir e fechar de portas. Gonzos e fechaduras. Oiço uma voz de homem e outra de mulher. Falam docemente com os meus companheiros de cárcere. Que será?
Afinal era a ronda. Mulher não a vi, devia ter ficado atrás da porta. O aspirante d'Artagnam veio verificar “os animais” por uma lista. Dei-lhe o meu nome como me pediu; verificou, abateu e seguiu a viagem rotineira, como a mulher do fazendeiro que conta, cuidadosa, as galinhas ao pôr de sol não fosse o milhafre roubar-lhe alguma. Deitei-me depois das habituais orações a Deus e a Seu Filho. Pedi-lhe protecção e que iluminasse a mente dos homens.
Li um pouco de Frei Boaventura, depois de passar os olhos pelos “desenhos animados” de Walt Disney e dormi como um justo até às sete da manhã. Acordaram-me as badaladas da Sé de Angra. O dia está de novo bom com muito sol e céu azul, aliás como todos até aqui. Estamos em 5.ª feira, não sei quantos de Junho.
Fomos tomar um pequeno-almoço, desta vez mais demorado. Lembrei-me que o Borges Coutinho, culpado pela sua mediocridade lunática, desta ridicularia toda, foi meu cliente até ao dia 25 de Abril de 1974. Salvo erro ainda me deve escudos 635$00 de honorários. Disse na brincadeira, ao pequeno almoço que ia, daqui, mandar-lhe a conta dos meus serviços... Riram-se e foi tudo.
Por outro lado, discutimos a hipótese de apresentarmos queixa à Ordem dos Advogados e pedir-lhe um emissário para nos vir ouvir e defender os nossos pontos de vista.
(A constipação continua. Esta maldita cela e toda a sua humidade. Seja tudo em remissão dos meus pecados).
O Dr. Abel foi de opinião (com que concordei) de tentarmos contactar o Dr. Mesquita, juiz adjunto do Procurador da República, afim de tentar obter uma liberdade com termo de residência que nos permita lá fora, ir trabalhando juridicamente pelos que cá ficassem.
Embora julgue que uma diligência não anule a outra, vamos tentar saber, ao almoço, pelo Gustavo Moura, se o Dr. Mesquita faz parte da comissão e, caso afirmativo, fazer-lhe o pedido.
Entretanto, corre que Tomaz Caetano, cidadão canadiano, vai apresentar protesto junto da sua Embaixada e pedir a intervenção daquele país no seu caso. Parece que esteve detido 24 horas em Ponta Delgada sem comer nem beber.
Às vezes penso que é inútil escrever este diário, pois que se calhar acabam por mo roubar. Mas, enfim, é uma tarefa tão absorvente que nem sequer penso em abandoná-la.
Hoje, no pátio, assobiámos o hino do Senhor Santo Cristo e o do Senhor Espírito Santo. Este último é tido como o hino dos Açores tal é a sua generalização em todas as ilhas.
Muitas vezes, ao assistir às brincadeiras dos soldados, entre si, com as armas nas mãos, me ponho a considerar o perigo de poder haver algum acidente mortal que venha carregar de mais negro esta nossa tragédia.
Quando eles ficam, por momentos, sem oficial ou aspirante, tornam-se em autênticas crianças que são. Sempre gostava de saber qual a ideia que de nós faz o comandante do B.I.I. 17 que nem se dignou visitar o presídio militar e ouvir as reclamações que temos para apresentar. Julgo que era esse o seu dever, o qual, atentas as circunstâncias em que nos encontramos, devia tornar-se para ele, ponto de honra.
Por seu turno há uma coisa que me tem espantado. A atitude de afastamento da Santa Madre Igreja nesta terra do Heroísmo representada por 2 Bispos. Pois nenhum deles (e somos amigos de ambos) se dignou vir ou mandar um representante de Cristo junto de quem tanto apoio moral necessita. Esta, se calhar, é a tal Igreja não comprometida. Digo-o mais com amargura do que com ironia, pois agora poucas forças tenho para ironizar. Mas se Maomé não vai à Montanha esta vai a Maomé: E fica já jurado, vou mandar pedir a vinda aqui, do Senhor Bispo. Se ele não vier vou eu lá pedir-lhe á bênção. Apostólica! (1)
Eis o texto do telegrama que vou tentar fazer chegar Junto da Ordem dos Advogados:
Exmo. Bastonário Ordem dos Advogados
Largo S. Domingos
LISBOA
Abaixo assinados, advogados, detidos ordem militar cadeia comarca, sem culpa formada, ou possível visto terem agido exercício deveres profissionais, solicitam presença urgente Vexa esta Ilha Terceira fim apresentar-lhe pessoalmente suas razões. Respeitosamente, Abel Carreiro, Melo Bento, Almeida Sousa.
É claro que tudo isto teria sido dispensável se a nossa delegação da ordem em Ponta Delgada se tivesse mexido. Em boa verdade desconheço se assim aconteceu de facto. Mas pelo lado de que o vento sopra não me parece que aportemos a terra...
Operação bacio: O facto de estar fechado numa cela tem implicações higiénicas e sanitárias de certa gravidade.
Apesar de estar habituado a regular cronologicamente a satisfação das minhas necessidades fisiológicas, tem sido difícil fazê-lo agora dado o género de comidas que a tropa nos serve: ê muito pesada e provoca anomalias pouco agradáveis.
Deram-nos um bacio (ou penico) que nós devemos utilizar e... ir lá abaixo, pessoalmente, vazar. Por mim, só o uso para verter águas e quanto a ir lá baixo, recuso-me a dar-lhes o gosto desse deprimente espectáculo. Mas hoje, a situação tornava-se grave pois o dito receptáculo atingiu perigosamente o ponto de saturação.
(1) Viria a saber depois de semi-liberto que a Igreja esteve como lhe competia: não a deixaram entrar.
Pensei então em deitar o pestilento líquido pela bacia abaixo. Tal operação, porém, acarretava sérios riscos pois que, tratando-se do recipiente onde me lavo, teria de fazer tudo sem que sujasse a bacia.
Arames, garrafas de cerveja e tampas de frasco tudo conjuguei para a operação e, depois de encher a face exterior da bacia com muito sabonete, lá fiz sumir pelo encanamento a presença incómoda do referido elemento químico. A água corria da torneira durante a operação e ficou correndo quase meia hora após o seu término.
Devo dizer que a constipação que tenho foi extremamente útil. Há males que vêm por bem…
Já que falo em instalações sanitárias, deixem-me dizer que lá em baixo temos duas retretes, um chuveiro e dois urinóis, além duma inútil bacia.
As retretes são das que não têm sifão, são pois e apenas de rés de chão. Talvez que, por mor da força da tal lei dos vasos comunicantes, puseram o autoclismo junto do tecto.
Este, por fanática aversão à hermética, pinga desabaladamente sobre o utente, enquanto tal.
O chuveiro é mesmo isso. Um aguador de jardim automaticamente accionado por uma corda. É só puxar a corda e a água cai em catadupas sobre o lavando. Atentas as condições do aguador, a natureza barrenta do solo e as demais actuantes atmosféricas não sei se a pessoa estará mais limpa antes ou depois do duche.
De qualquer dos modos e enquanto durar esta constipação terei que evitar esse tipo de higienização, não aconteça que além da porcaria, venha o desmazelo e a minha fatal cama do Hospital tenha que ser compulsoriamente ocupada.
Por seu turno, os urinóis não são propriamente um modelo de limpeza. Bem vistas as coisas, posso até dizer que tenho fortes dúvidas se, alguma vez, foram limpos. Eles eram de esmalte branco, mas hoje, salvo honrosas excepções, fazem inveja a qualquer camisa nazi dos velhos tempos de Hitler. E o Toni Câmara a dizer que o Hospital Militar em que esteve, no seu tempo de tropa, era dez vezes pior que isto! Salvo seja!
Se quisermos saber porque motivo não deixam os soldados, de cá, falar connosco devemos raciocinar à base do facto de esses rapazes serem todos Açorianos.
Estou porém convencido que todo este arraial de gonzos e fechaduras, destinados a provocar o pânico, cai pela base, face à impecável disciplina que todos têm demonstrado, além dum fantástico e sobrenatural bom humor. Toda a gente ri, às vezes até alarvemente. Mas não é o riso nervoso do mártir, é o riso franco do homem livre.
De resto, livre é a nossa fantasia que voa arrebatada pelas asas da ilusão; nosso território são estas minúsculas pedras alagadas que nossos avós descobriram, quase por acaso no imenso oceano que ninguém queria povoar e de que nós agora não queremos afastar-nos.
Ora, toda a gente sabe que os que estão aqui presos em tão imundas circunstâncias, são pessoas sérias que têm como único pecado amarem de sobremaneira a sua Terra e os que nela vivem, defendendo os interesses de todos.
É portanto um perigo que eles descubram que nós não somos as feras que lhes pintaram mas afinal os seus aliados naturais.
Dor sem fim, imenso penar, grita alma desconcerto
Podes vir ilusão que te acompanho como um louco neste caminho
Mãe porque sorris assim?
Terra mãe porque me criaste e para que fim?
Ouço lá fora as visitas que vem quebrar a solidão da cadeia
O pio chilreante dum pássaro engaiolado como nós.
Pobre diabo não sabes talvez o que é a liberdade, por isso o cativeiro te seja porventura menos penoso.
Maldita sorte a nossa, triste a nossa condição.
Oh Deus! Liberta-nos.
Tu tudo podes.
Não nos faças expiar o que não é culpa nossa.
Os montes, os ventos, os vendavais tudo dominas.
Acode então e abre-me esta porta.
Deixa-me respirar o ar puro da liberdade.
Deixa-me abraçar a meus filhos, os mesmos que me destes a criar.
Que faço então?
Deixo-os como rebanho, sem pastor?
Qual é o meu fado?
Que caminho e ventura me estarão guardados pelo destino?
Antevejo a multidão ululante que grita hossanas!
Sobre a terra meu sonho acabou, deixa-me tormento infinito. Proscrito.
Vejo-me exilado do meu país, livre enfim, mas sempre preso.
Que corda me traz assim arrastando correntes imensas de desejo.
Mais pesadas que o Chumbo mole ou o aço duro?
Mas no exílio não existe liberdade.
Só tristeza, solidão, saudade.
E a vida não espera suspensa do tempo do exílio que regressemos.
Tudo morre e tudo muda.
Até a esperança é outra e, para o exilado, a Pátria morre por evolução.
Não. Antes na Pátria preso que lá fora à solta.
Quando regressa (se regressa) já não é a Pátria igual que ele vê.
É gente estranha.
Novos costumes.
Novos desejos.
Ele está deserdado da Pátria;
Apátrida e perdido.
Não sei porquê mas esta roupa que lavo seca depressa. Dois lenços que lavei, esta manhã, já aqui estão dobrados em minha secretária. Ao que eu havia de chegar!
Lembrei-me agora de repente dum pensamento que, de quando em vez, o meu espírito acalenta: se fosse necessário prender todos os micaelenses com a mesma culpa que nós, mais valia cercar a ilha com uma esquadra de guerra e considerar toda a sua população detida para averiguações. Isto no fundo é consolador...
O 1º turno acabou de almoçar e foi receber a esmola (!) de 15 minutos de sol no pátio para esticar as pernas. O António Amaral recebeu notícias de casa. Seu filho Miguel (miúdo que nem sequer ainda tem dez anos) tem ido ao Café Gil, por cima do qual mora, dizer alto e em bom som: “Meu Pai está preso” e parece que diz o mesmo da janela quando passa alguém. É deveras edificante...
Que não sentirá, meu Deus, aquele Pai? António José é um rapaz alto. É mais velho que eu uns 2 ou 3 anos. Fomos colegas no 2.º ano do Liceu. O 2.º D de trágica memória pois a deusa da ciência não era propriamente o oráculo preferido. António José e o Tapia eram os mais fortes de todos. O dia em que ambos brigaram (o confronto entre ambos, desde o início, tornara-se absolutamente inevitável) foi feriado nacional!
Hoje, António José continua alto, magro, com uma barba incomum, acompanhando, em estreita nesga, a linha do queixo. Teve porém um acidente de viação há um tempo e ficou cheio de mazelas, a mão esquerda e o rosto apresentam ainda partes deformadas resultantes dos ferimentos.
Pode ser que Deus o tenha feito sofrer assim para ele poder aguentar isto agora com mais vigor. Não dizem que Ele escreve direito por linhas tortas?
Acabou o almoço e os cinco minutos de sol durante os quais senti uma forte tontura. Ou é do sol ou da comida ou nervos.
Durante o almoço que hoje apesar do cozinheiro ser o mesmo, me soube bem, conversámos bastante. Sentei-me na mesa do Eng.º Santos, do Dr. Abel Carreiro e de Bruno Carreiro. Hoje descobrimos que tanto o pai do Bruno Carreiro, o grande José Bruno, como o do Eng.º Costa Santos, Capitão Aniceto dos Santos, estiveram também detidos por motivos políticos, há mais de 30 anos quando da revolta dos degredados em S. Miguel. Comentário seco de Bruno Carreiro: - “Enfim, somos duma família de cadastrados...”
Para mim trata-se todavia duma certa tendência hereditária...
Li-lhes a carta que vou mandar ao Bispo de Angra. Todos se riam por acharem que pedir a um Bispo, para nos confessar que é coisa do outro mundo!
Apesar do bom humor exteriorizado, o pessimismo ainda é o sentimento dominante em nossas almas. Todos pensamos em 30 dias pelo menos e, apesar dos sistemas nervosos terem aguentado tudo até agora, é bem natural que as resistências comecem a faltar. Preparamo-nos para o pior.
Entreguei ao Victor a exposição do Tomaz Caetano para apreciação e tradução.
Consta que a comissão começa a ouvir dois de cada vez; tenho que me preparar para mudar de cela pois, dentro de dias, eles vão precisar desta para alojar algum dos não ouvidos.
Pedi ao meu colega Dr. José Nuno para enviar ao Juiz Corregedor um pedido de adiamento dos julgamentos que porventura estejam marcados para agora. Como a mulher dele está cá e o visita, sempre tem esse contacto a mais que eu.
Hoje, a desculpa da hora de sol ser curta foi de que as visitas estavam lá fora à espera. Claro que se trata dum atropelo aos mais elementares direitos dos homens.
Pobre de quem é pequeno neste mundo. E quem é mais pequeno do que um homem sem liberdade?
Por outro lado, o oficial hoje de serviço é um alferes. Não é de cá, parece-me. E logo isso se começou a ver na rispidez das ordens e na vigilância apertada às entradas e saídas, idas á casa de banho, etc.. Meu Deus acaba-nos com este inferno!
O irmão de Gustavo Moura começou a trabalhar em Lisboa a favor deste. Segundo informações ultimamente chegadas, antes de 6.ª-feira ele não acha conveniente vir aos Açores. Claro que os partidos continentais, agora, resolvem todos os problemas que os autonomistas reivindicam a par do que se entretêm, num acto de abjecta cobardia, a lançar atoardas sobre os que estão presos na mais imunda das condições sem se poderem defender. São uns heróis... É quase tão heróico como dez homens fortemente armados entrarem de madrugada em casa de gente indefesa e arrancarem da cama um cidadão honesto para o fechar, guardadíssimo, numa prisão de cimento armado. Que coragem!...
Durante a hora de sol aconteceu um pequeno episódio que muito me fez rir. O nosso guardador de hoje que passaremos a designar por S.S., o qual substitui o aspirante d'Artagnan, proibiu conversas entre o nosso turno e os que ainda não tinham sido ouvidos.
Entretanto, o Eng.º Menezes chamou o Victor Cruz da sua cela gradada do 1.º andar, virada a poente (a minha vira a norte) e que também dá para o pátio; o Victor estava sentado no sofá de madeira que está ali a escangalhar-se pela inércia (julgo eu), mas este sem deixar de olhar para diante e para baixo, no uso dos seus vastíssimos recursos histriónicos respondeu-lhe como quem fala para diante: - «Quando falares comigo diz o que quiseres porque eu te responderei como um louco que fala sozinho”. Foi só isto, com ar muito sério e muito profissional, como quem faz um discurso importante! E foi o bastante para começarmos todos a rir alarvemente. Até o circunspecto Bruno Carreiro começou aos pulos e a “desabafar” no seu característico estilo egípcio e com largo recurso às armas de S. Francisco.
O sobrinho do Victor Cruz trouxe-lhe uma garrafa de uísque. S.S. proibiu ipso facto a sua introdução na cela. Regulamentos são regulamentos, em Dachau, Spandau ou em Angra! Heil Hitler!
Muitas vezes me ponho a pensar na enigmática figura do general Altino Pinto de Magalhães. Quando da minha proibição de sair de São Miguel, tive de pedir-lhe licença para me ausentar afim de acompanhar minha Mãe a Lisboa, pois se encontrava doente. Deu-ma imediatamente sem curar de razões. Achei-o, por isso, uma pessoa tão razoável que resolvi dizer quanto me havia custado a dita proibição que (tal como a detenção agora) não tinha o mais leve fundamento. Informei-o que tinha saído um comunicado anunciando publicamente a proibição que impendia sobre mim e, além disso, das desastrosas consequências que tal facto havia provocado na minha vida profissional. Como resposta disse-me que eu tinha direito a uma reparação. E, com efeito, pouco mais dum mês decorrido, mandou-me para a cadeia. Enigmático, realmente!
Nunca pensei tão a sério em emigrar para a América. Não sei como vou poder enfrentar as pessoas da minha terra depois duma tal provação. Em contrapartida, naquele país tenho tios, primos, cunhados. A maior parte da família. Só o amor à terra me prendia aqui. E agora? A terra é gente, não é pó. Eu amo a terra porque é gente. Amo essa gente em pé de igualdade: não suportarei jamais que me olhem com olhos de comiseração ou pena. Já que, os de troça (filha da inveja) esses já os suporto há longos anos...
Penso nos filhos. A Patrícia, a mais velha, está com 9 anos. Levá-los para uma terra estranha. Com língua diferente, vai ser um choque e um martírio que me não perdoarei jamais. Que fazer meu Deus? Iluminai-me.
Lá fora soam as campainhas. Desta vez é o Gualberto que está aflito. O ressoar das vozes dentro das outras celas faz-me, por vezes, pensar que estou num convento. E isto dá-me um certo alívio, faz com que o espírito abandone este lugar de punição, este purgatório maldito. São segundos de total abstracção e até de certo descanso espiritual.
Ouço na cela em frente, o Gustavo Moura bater furiosamente a sua máquina de escrever. Por certo que se tenta evadir por esse meio. Que tenha sorte.
Estar-se dentro duma cela pequena e húmida como esta e ouvir-se certos sons lá fora tentando interpretar o que significa, deve ser aproximadamente a tarefa diária dum pobre cego.
Neste momento, o Eng.º Menezes bateu à porta e entregou-me uma encomenda de meu Pai (escudos 1.000$00) que havia pedido à Maria de Fátima pelo telefone. Meu pobre Pai está apoquentado por minha causa. Vou ver se lhe telefono para sossegá-lo. E eu que nunca me quis meter em nada precisamente por causa da idade dele. E não obstante, cadeia. Oh fados cruéis!
Não sei se já teria dito isto; mas quando para aqui vim, junto do trinco da fechadura da porta, havia um esplêndido buraco de cerca de 5 centímetros de diâmetro (vestígios, possivelmente, de anteriores tentativas de fuga ou, menos romanticamente, azelhices do carcereiro no abrir da porta). Por esse buraco eu via as sentinelas com o seu ar adolescentemente despreocupado, segurando os seus engenhos bélicos ou algum colega de martírio, em ocasional saída ou entrada da cela.
Ontem, porém, um diligente aprendiz de pedreiro cegou-me completamente vedando a minha vigia com cimento grosso; pois alevá!
Acabo de chamar à campainha. Ainda não apareceu ninguém. Dá-me a impressão que eles têm este serviço da numeração das celas mal feito. Afinal enganei-me, o alferes S.S. apareceu. Pedi-lhe para telefonar, disse-me que só o poderia fazer até às 5 e já passava meia hora desse tempo limite. Falei-lhe na preocupação de meu Pai e ele prometeu ver o que fazia. Visto mais de perto não me pareceu tão S.S. como no princípio. Chamá-lo-ei, daqui por diante, de “gauleiter” que tem sempre um significado menos sinistro! E se ele me arranjar o telefonema ainda lhe darei um cognome mais moderado. É que, ao menos neste campo exerço um poder absoluto...incontestável!
Afinal não arranjou e estou mesmo a pensar em promovê-lo a gruppen-iuhrer S.S.
Acabou, por enquanto, a solitária. O S.S. mandou-me arrumar as bagagens para uma cela colectiva. Estamos agora, Victor Cruz, Bruno, Dr. Abel, Eng.º Santos e eu.
Fala-se até que nos roubarão visitas, telefone e sol. Mais uma vez os direitos são. Neste país, apenas uma palavra. Vã!
Hoje, sexta-feira 13. Somos mantidos em regime de tortura psíquica. Proibidos de falar uns com os outros. Vigiados de perto pelo S.S. Os soldados estão (ao que penso) rigorosamente proibidos de falar connosco, pois nem sequer nos respondem aos bons dias. Com a boca. Pois os olhos são os mesmos. São açorianos. Já aqui tenho os nomes dos nossos colegas de martírio da Terceira. Copio-os do jornal A União. São eles: Luís Pacheco Soares Guiod de Castro, José Manuel Rodrigues dos Santos, Paulo Tadeu Mendes Brum Pacheco e José Silvério Bispo. Por outro lado, o mesmo jornal dá os nomes dos oficiais que fazem parte da comissão de inquérito.
O primeiro incidente deu-se à hora do jantar. O encarregado da abertura da cela experimentou várias chaves sem êxito algum. Pediu ajuda interna que não lhe pudemos dar, visto que o buraco que também aqui havia, sofrera a mesma benéfica influência do ajudante de pedreiro já nosso conhecido. O pobre homem já desesperava quando resolveu chamar o carcereiro. Este quando chegou, porém, limitou-se a puxar a porta pois estava aberta há muito... Rimo-nos todos até chegarmos ao rés-do-chão onde um aspirante nos proibiu com uma brusquidão, desnecessária e antipática, de falarmos uns com os outros.
Agora que estou aqui na cela comum a dificuldade em escrever aumenta pois há dificuldade em concentrar-nos.
Ouvimos pela rádio que os partidos comunista, socialista, MES e CDE organizam na 2ª feira, 15, uma manifestação de desagravo contra a do dia 6. Estou a pensar cada vez com mais convicção em emigrar. O Victor Cruz leu-nos uma série de quadras em que encerrou esta nossa deplorável epopeia. Com o seu estilo chistoso, imbuído um tanto de palavreado menos púdico, foi uma boa válvula de escape. Faz bem vê-lo no seu porte atlético, demasiado jovem para os seus 41 anos, e com um vozeirão à Vargas, temperado pela doçura cantante que o profissionalismo da locução lhe emprestou. O seu optimismo é contagiante mesmo quando (em humor pouco branco) nos prevê o futuro. Quando fala, tem um gesto de mão esquerda muito significativo, que é difícil de descrever mas que deve assemelhar-se ao do grande banqueiro nova iorquino ao abrir com chave delicada as grandes portas automáticas de fabulosos tesouros.
Reina na prisão um silêncio mortal apenas interrompido pelo batuque dos mestres nos corredores. Um deles veio trabalhar para dentro da nossa cela, consertar o autoclismo cuja flutuadora se recusa a funcionar. Como resultado dos apurados esforços do diligente operário a flutuadora passou a funcionar eficientemente e, por consequência, o autoclismo deixou de fazer a sua útil descarga, por razões que ainda não conseguimos apurar.
Fomos almoçar, tarde como de costume. O aspirante gruppen-fuhrer estava de novo de serviço com os seus óculos de lentes em forma de ovo deitado. Mandou-nos calar mais uma vez proibindo quaisquer conversas entre nós. O tratamento é pouco humano e humilhante. Custa a ver um rapaz de poucos anos mandar calar homens, alguns com idade de serem seus avós.
Consta que ele se ofereceu como voluntário para este “nobilitante” serviço. Se assim é, gabo-lhe o gosto e o jeito. Ontem vieram com ele e estiveram à porta do corredor central, certos indivíduos. Um deles olhei-o de frente. Era alto, vestia um conjunto que me pareceu cor-de-rosa e usava barba. Estava com ar de quem observa bichos raros nalgum jardim zoológico.
Peço a Deus cada dia com mais fervor que me livre destas grades e destes esbirros: peço-lhe que me dê forças para lhes perdoar quando for altura disso.
A cunhada do Eng.º Santos falou numa possível libertação, amanhã, sábado 14. Ninguém quer acreditar nisso... Ou quer? Seja o que Deus quiser.
A casa de banho privativa desta cela colectiva, tem uma janela gradada que dá para o corredor. Há momentos passou o grupo de amigos que se encontra na outra cela colectiva ao lado da nossa. Vi o Menezes e o Dourado). Disseram-me que o João Manuel Furtado Rodrigues já tinha sido ouvido. Não percebo esta demora em ouvir 30 pessoas. Nos meus tempos de Delegado Procurador da República cheguei a ouvir outro tanto em dia e meio. Dá até a impressão que eles demoram de propósito.
Faço um esforço tremendo para não pensar nos meus. Quantas mentiras não terá sido necessário dizer aos miúdos para os manter isolados desta minha desgraçada situação. A Patrícia por certo já deve ter percebido tudo. Esperta e desconfiada como é...
Estou a lembrar-me agora do livro do Prof. Lorenz «A Agressão» que li há meses. Quanto de verdade há em toda aquela explicação do entusiasmo militante.
O gruppen-furer chama-se Vasco. Um nome inesquecível e memorável.
São 18 horas.
A cela ao lado vazou-se sem darmos por isso. Mais movimento nos corredores. Mais nervos. Com esta falta de notícias começo a sentir os nervos a darem sinal de si. Faço o possível para me distrair mas reconheço que isso vai ser difícil. Quanto maior for o isolamento e a ignorância do que se passa mais difícil será. Somos pois objecto duma tortura moral permanente e atroz.
Sensação na cela 19 (a nossa) o gruppen-thurer entrou suave como uma pena. Bateu e tudo (!) chamou pelo “Sr. Victor Cruz” e pediu livros para o “Sr. Dr. José de Almeida e Sousa”. O homem que até por «gajo» tratou o Dr. Abel, ontem desfez-se em cortesias.
Ficámos estupefactos! O Victor, por sua vez, ou porque o chamaram ou porque fosse recorreu à sanitária privada da cela, com efeitos odoríficos manifestos. Ele negou a relação de causalidade entre ambos os factos. No entanto regista-se a sequência que se deixa sem comentários ao Julgamento da posteridade.
Serviu-se o jantar. Peixe outra vez para desgraça do Victor Cruz que o detesta. O gruppen-fÜhrer virou seminarista de último ano. Doce. Sorridente. Amável. Complacente e... cerimonioso.
Estamos verdadeiramente intrigados com esta reviravolta no espírito daquele espécime do género humano. Têm-se aventado várias hipóteses entre as quais a do Victor, porventura a menos circunspecta, que põe em dúvida a integridade sexual do senhor. Apesar da hilariedade provocada não parece ser unânime a aprovação de tal hipótese.
Pode ter havido influências estranhas ou, como quem diz, superiores que tenham provocado este volte psíquico que nos vem trazendo perplexos.
Sábado, 14
Acordei cedo arrebatado aos braços de Orfeu pelas trombetas de Jericó. Estas trombetas são o Bruno Carreiro, à esquerda e o Eng.º Santos, à direita. O ronco nocturno que emitem ao dormir é semelhante a motores diesel de vária potência e idade.
A luz eléctrica esteve toda a noite acesa, depois de uma interrupção de 2 ou 3 horas. Quando reabriu, o Gustavo Moura apanhou um susto pois julgou que nos vinham buscar de madrugada.
Para passar o tempo, temos contado anedotas. Algumas ligadas à terra, contadas principalmente pelo Bruno com muita piada, pois ele lembra-se dos nomes e dos lugares com grande precisão.
Lembro aquela das duas patas que foram oferecidas ao Dr. João Bernardo, professor do Liceu, apesar das recomendações que em contrário tinha dado à criada, a qual não conseguira identificar o remetente. Dias depois, apareceu-lhe uma antiga serviçal da casa do pai daquele professor que se vinha lamentar de a filha ter perdido no exame de História, apesar das patas. O Dr. João Bernardo respondeu-lhe que tinha pena e a única coisa que podia fazer era devolver-lhe as patas. - Pois era o que eu vinha buscar, respondeu-lhe serenamente a pobre mulher!
O Dr. Abel também não ficou atrás e contou a do General americano que viveu em Ponta Delgada e que apenas conhecia 2 músicas. Uma era o hino americano a outra não era...
Claro que há outras histórias (que não a minoria) mas essas o pudor impede-me de as registar aqui.
Tenho pensado imenso nesta situação de proibir os detidos de falar mesmo entre si. Aos pobres que estão nas celas sós que se sentam depois à mesa com os colegas e com eles não podem falar. É um verdadeiro suplício de Tântalo!
Hoje de manhã o pequeno-almoço correu melhor. O oficial não apareceu. Nós falámos. Desabafámos. O Regente Gualberto hoje foi a nota mais alegre entre todos.
Este nosso amigo e companheiro é baixo e cheio, com a cabeça coberta de um cabelo obediente deitado para baixo e para a frente, saltando a testa como água em cachoeira e subitamente congelada.
Frente aos olhos, uns óculos verdes que quase não deixam ver aqueles. Queixo levantado e uma agilidade quase incrível para aquele corpo; expulsa o mau humor logo que chega. E até as sisudas sentinelas apertam os lábios e não se aguentam sem se rir com as suas diatribes e trejeitos cómicos.
Consta que hoje de manhã foram ouvidos o Armando Goyanes e outro colega cujo nome agora não lembro. Parece que já estarão ouvidos 16. Só metade! Isto nunca mais acaba.
Falámos muito. De política principalmente. Cada um tenta descobrir porque motivo está preso. Estou porém convencido que haveremos de sair daqui sem o saber.
E os mestres lá foram. Ouvimos agora as notícias de Ponta Delgada: um partido de S. Miguel indirectamente põe-se ao nosso lado. É a primeira vez que ouvimos palavras agradáveis. Deus os abençoe.
Almoçámos bacalhau à Brás. Bom e rápido, faltou foi o vinho, pois nos servem a cada refeição apenas um quarto de caneca, pequena! Durante o repasto o aspirante (terceirense) disse que as últimas restrições (visitas, telefonemas, silêncio e sombra) haviam resultado de terem tentado passar mensagens para fora em tapete. Ninguém acredita na desculpa.
E pronto, cá estamos de novo na cela. Estou, claro, a fartar-me disto. O ponto de saturação não deve tardar. Segundo o aspirante (que se queixou que em dias Santos /era ele que ficava de serviço, sempre!), os inquéritos seguem hoje até à noite e não são interrompidos, amanhã, Domingo. Já nem sei se hei-de ficar triste ou alegre com esse facto. Se eles quisessem nem nós já estávamos aqui. Tudo isto é ridículo e atroz. O homem é um ser estranho que a tudo se adapta. Até quando irá a nossa capacidade de adaptação?
Li agora na Vida Mundial uma reportagem sobre os acontecimentos de sexta-feira.
Um modelo de parcialidade e de mentira absurda. O entusiasmo militante levou o Dr. Borges Coutinho a uma paranóia galopante; seguindo tanto quanto possível os meus poucos conhecimentos de psiquiatria, não estranho nada que na base do seu comportamento estivesse qualquer complexo freudiano de base edipista.
Lembro-me dos meus queridos filhos. Que saudades sem fim de ouvir as brincadeiras do traquinas do Alfredo. O que será que o filósofo do meu Francisco pensará de seu pai naquela adorável cabecita do meu coração. E a Ana? As suas brincadeiras são todo o meu enlevo. A sua falta traz-me morte ao coração. Oh meu Deus! Isto custa tanto!
Na rádio uma moça canta: “Somos livres, somos livres” ; na verdade...
Temos estado a ouvir uma entrevista com 2 membros dos serviços executivos do Conselho da Revolução: Santos Coelho e Aspirante Lopes.
Entre outras inteligentes considerações, disseram suas excelências que o governo português está pronto para ajudar o povo açoriano e que uma vez destruídas as estruturas fascistas, se o povo quisesse a independência que por certo a teria.
Deixo sem comentários estes primores de futurismo político para anunciar ciclónica, imprevista e concomitantemente animadora e vice-versa a visita de Jorge Miguel irmão de Gustavo Moura, prenhe de notícias que talvez registe aqui depois de irmos ao pátio, pois parece que restabeleceram esta regalia. Pelo menos por hoje.
Ele conseguiu cá entrar contra as determinações comodoriais, por ter falado com o general e para tratar de assunto de negócios. Ficamos com a ideia de que a nossa situação (como Grupo) não era brilhante quanto ao tempo que vamos ficar nesta horrível prisão.
Por outro lado, as notícias que nos chegam pelos jornais, agora vindos, sempre parecem ser verdade a existência dum Governo dos Açores no exílio. Não sei em que medida a existência desse governo nos vai prejudicar, pois neste espírito de desconfiança que domina os acontecimentos aqui, são capazes de pensar que há ligação entre nós e esse Governo. Parece que ainda faltam para serem ouvidos: 13 dos Detidos. Se tudo correr bem, a comissão é capaz de ter o inquérito pronto na terça-feira. Depois, as conclusões. Meu Deus, meu Deus, quando acabará isto? Esta dúvida é insuportável.
O Victor Cruz lembra uma história do Badaró que chegara a S. Miguel depois de vir de St.ª Maria. Perguntaram-lhe então, como é que ele achara aquela pequena ilha. Resposta: “É uma prisão ao ar livre”! Muito a propósito.
Parece que o Conselho da Revolução confirmou o general no posto de comandante-chefe dos Açores e de que foi aprovada a proposta de Canto e Castro (moderado) para nomear um novo governador e satisfazer as reivindicações mais justas da população da ilha.
Oxalá que estas diligências resultem.
Domingo 15
Hoje por ser domingo e um pouco impiedosamente, as anedotas que se contaram foram todas ligadas a padres e freiras, que nos abandonaram, por acaso, neste dia. O Gustavo Moura faz hoje 18 anos de casado. Levantámo-nos todos para o cumprimentar. Foi uma cena engraçada que, por pouco, não desandou em tristeza
viva. Pobre Gustavo. Sua mulher é a minha prima mais velha, a Meneta (Maria Antonieta) que exerceu na minha infância a influência de todas as primas mais velhas.
Era uma espécie de madrinha que velava por todos, principalmente os mais novos e fraquitos, como eu era. Lembro-me como se hoje fosse, dum jogo de futebol entre rapazes, na Canada da Pedra, à Fajã de Baixo onde passávamos o Verão.
Nesse tempo, os carros eram muito raros e a Canada era um campo de futebol quase ideal. Os irmãos dela, mais velhos, alinharam pela equipe A e nós os mais novos pela B. Pois a Meneta “torceu” por nós com grande calor, incutindo-nos muito entusiasmo e, ao ser chamada pela Tia Mariana para um serviço qualquer, deixou alguém no seu lugar com a recomendação de defender os “pequeninos”.
É essa a ideia que faço dela. Era uma rapariga bonita que sempre e só namorou o Gustavo. Se não me engano este aniversário nestas circunstâncias deve ter sido um dos grandes desgostos da sua vida. Para ele não deve ter sido menos. Eles são tão amigos como se fossem uma pessoa só!
Fui chamado ao comodoro. Fiz várias conjecturas apressadas sobre este singular chamado. Pensei rápido sobre o meu depoimento, a ver se haveria alguma incongruência. Meteram-me num jipe com a capota muito baixa, juntamente com o João Gago da Câmara e o António José Amaral. Quando chegámos, subimos ao 1.º andar do palácio. Um largo corredor. Uma pintura linda do mar a bater na praia. Um longo tapete. Um oficial da marinha em pé. No fundo, o comandante naval ao telefone. Quer falar comigo.
Entrega-me um grande envelope que me vem do escritório com papel selado em branco para assinar e 2 contos num envelope.
Cumprimentei o Dr. Mesquita. Perguntou-me como estava. Não lhe respondi. Espero que tenha compreendido. Saí sem ter percebido a manobra. Os meus colegas de cela ficaram bastante preocupados e fazendo imensas perguntas a si próprios. Quando cheguei e expliquei o alívio foi geral.
Ouvimos na rádio as declarações de Saraiva de Carvalho sobre o Campo Pequeno. Uma tourada à portuguesa, extremamente elucidativa e preocupante.
Mais política. Mais notícias. O Bruno pensa que o perigo que corremos é que depois de libertos, seremos espalhados com residência fixa pelas várias ilhas. O dr. Abel contrapõe que isso iria espalhar o ideal por todas as ilhas apenas com a nossa presença.
Parece não valer a pena pensarmos nisto. Apenas nos agrava o sofrimento. O pior de tudo isto é a incerteza quanto ao futuro.
Falámos do Eng.º Magalhães que foi politicamente escalpelizado. A sua participação no “grupo dos 11” foi comentada e chegámos à conclusão de que os seus métodos de trabalho passaram incólumes pelo 25 de Abril e sucessos subsequentes.
O Dr. Abel foi chamado lá abaixo provavelmente para receber a esposa. Estamos à espera do seu regresso e, entretanto, ouvimos na rádio a adesão do P.P.D. à manifestação contra nós, na segunda-feira. Foi pena que a miopia dos dirigentes daquele partido o tenha levado a um tal erro que por certo fará com que muitos militantes abandonem as suas fileiras e ingressem no C.D.S.
De facto, não acredito que a estúpida prisão de 31 indivíduos de bem, não deixe marcas, multiplicadas por numeroso grupo de familiares e a multidão dos amigos, fiquem indiferentes perante tal disparate.
Voltou o Dr. Abel com a notícia de que Saraiva de Carvalho nos queria mandar para o continente e que o general Magalhães havia-se oposto à decisão. Que as pessoas da Terceira têm criado bom ambiente às senhoras dos nossos colegas que cá estão.
O Eng.º Santos também lá foi abaixo ver a sogra. As notícias não foram das melhores. E nós não ficámos muito contentes. O optimismo do Dr. Abel é que é indestrutível. Enfim, deformação profissional...
O Gustavo Moura está muito abatido. Lamúrias ouvem-se de quando em vez da sua boca. Cada um faz as suas macaquices para o distrair e levantar-lhe o moral.
Mas as apreensões são grandes. Por mim, os problemas só começarão depois de estarem todos ouvidos. O que será que aqueles senhores vão decidir a nosso respeito?
Viemos do almoço com largo espaço de pátio. Hoje é Domingo! Aqui o optimismo é generalizado. Mesmo que seja tudo mentira. Contei 24. Faltam poucos para ouvir.
Consta que o comandante da guarda-fiscal falou em quarta-feira como o dia da saída.
Será mais uma das suas mentiras? Se calhar...
Chegam notícias de S. Miguel. Eufóricas, contraditórias, de esperança, de desalento. Tudo.
Povo de escravos: libertai-vos das grilhetas do passado.
Sigam o seu Spartakus, uma vez vitorioso.
Porque hei-de ser sempre o palhaço que ri de si mesmo?
Porque hei-de ser sempre o cobarde que emigra voltando as costas a si mesmo?
Porque deixas tirar da boca do teu filho faminto a magra fatia que levam da tua casa?
Porque ficas indiferente à tragédia da tua casa?
Porque hei-de ser marioneta do destino dos outros?
Rasga o velo do templo da escravidão.
Arquiva no chiqueiro do passado as grilhetas da tua miséria.
Ergue a cabeça.
Faz-te Homem. Nasce.
Fizeram de mim um revoltado, contra a minha cobardia.
Fizeram de mim um ódio vivo contra o que sempre amei!
Pobres medíocres. Fogos-fátuos de importância.
Bilingues da moral! Desertos de inteligência.
Arcazes de cobardia. Poços de iniquidade.
Sementes da Pátria. Adubos de Liberdade.
Rasga o velo do templo da escravidão.
Arquiva no chiqueiro do passado as grilhetas da tua miséria.
Ergue a cabeça, faz-te Homem. Nasce.
Fizeram de mim um revoltado contra a minha cobardia.
Fizeram de mim um ódio vivo contra o que sempre amei!
Saíram agora o Dr. Abel e Bruno Carreiro para receber visitas. Voltou Bruno com um livro. A Bíblia deu entrada nesta cela pela primeira vez. O Dr. Abel voltou com bolachas e com notícias de que a mulher do governador de Angra visitou a esposa no hotel. A entrevista que podia ter sido de conforto pela situação do marido foi transformada num autêntico inquérito sobre a actividade do Dr. Abel. Ao que esta gente desce.
Recebemos agora (o Dr. Abel e eu) uma visita. Para mim a primeira. O Sr. escrivão Jacinto Furtado, do tribunal de Angra. Não foi ninguém mandado pela Ordem dos Advogados. Um colega. Bolas, estão 3 (três) advogados presos (ou raptados como preferem dizer os meus colegas). Foi um escrivão de Direito. A estatura moral desse Homem aumentou. Foram 2 ou 3 minutos que para mim durarão até morrer.
Jacinto Furtado é o mais elegante dos escrivães de direito. A sua gravata às riscas, emoldurada por um impecável e sempre novo casaco com calças de igual cor. Os seus óculos escuros escondem olhos vivos sob uma testa alta a que vai desaguar uma cabeleira ondulada e já com algumas cãs. A rematar essa figura de gentleman londrino uns sapatos brilhantes e pretos.
Estava nervoso. E não era para menos com o espectáculo de metralhadoras, pistolas, grades, etc.
Disse-nos apenas palavras de conforto. Para mim porém valeram mais que o melhor dos discursos de Cícero em defesa dos seus constituintes. Não o esquecerei jamais.
Bruno e Victor fazem agora um repique de anedotas: é a do papel higiénico a da
portuguesa. Um número sem fim e sem registo possível.
Estão praticamente todos interrogados. Hoje o tenente da guarda-fiscal esteve no pátio depois do nosso jantar. Está deixando crescer a barba e veio vestido à civil. Fez um cumprimento generalizado aos reclusos que teve como resposta um olhar frio também generalizado.
O Gustavo Moura foi de novo chamado ao Comando. Desta feita veio transtornadíssimo. O pulha do director do Emissor Regional dos Açores fez um ofício à Comissão de Inquérito a denunciar o comandante Pavão de querer destruir os emissores daquele.
Uma pessoa que se dizia amiga e acamaradava com todos, sabendo preso um pobre homem objecto de suspeitas vem agravar, sabe Deus com que efeitos e intuitos, a sua situação e, se calhar, a de todos nós. Enfim, mais vale um pulha descoberto do que encoberto. Do mal, o menos.
A rádio deu agora a notícia de que havia sido assaltado um quartel no continente. Mais uma porcaria para nos prejudicar. Quanto mais complicações acontecerem lá fora mais sofreremos nós cá dentro. O Dr. Abel diz que não.
Hoje, Domingo, não nos permitiram assistência religiosa. Ouvimos missa pelo rádio. Até nisso foram desapiedados. Privar tanto católico dum conforto espiritual que faz tanta falta como o oxigénio do ar e que poderia ter-nos ajudado a passar este “cálix” com menos amargura do que aquela que sentimos, é falta de piedade que se insere na mesma moral que permitiu o nosso rapto de madrugada por patrulhas super-armadas. Que Deus lhes perdoe que eu não posso.
Aliás, devo dizer que não percebo a Igreja em Angra. Sede da diocese, prenhe de Sacerdotes e nem um veio ou tentou vir (que se saiba) até nós. A coragem dos discípulos de Cristo está de facto um tanto aquém da do seu divino Mestre. Nisto a
esquerda tem razão: a nossa Igreja está necessitando duma profundíssima reforma que incuta mais cristianismo nos que dizem servir o Filho do Homem.
Segunda Feira, 16.
Acordámos às 6 horas e um quarto. Reina entre nós um misto de esperança e de incredulidade. Será hoje, não será?
Já se contaram algumas anedotas. Ouvimos rádio; ouviram-se as notícias de Lisboa e açorianas. Após isso, começámos a pensar no significado da dupla visita que nos fez o aspirante d'Artagnan (de novo ao serviço) outro dia à noite quando já estava a dormir.
Consta que ontem houve uma reunião das forças armadas. Ignoramos em absoluto o porquês e para quês. Talvez hoje já se saiba.
Os mestres fazem um barulho colossal. Depois das 7 horas foi positivamente impossível dormir.
Ontem, caso curioso, serviram-nos o almoço à hora habitual mas o jantar foi servido às 18 horas, muito antes de termos fome. O almoço fora um bom bife com batatas fritas. Outros dias o almoço é cedo e o jantar perto das 21 horas quando já estamos com muita fome. Será isto uma forma maquiavélica de tortura?
Ouve-se aqui perfeitamente o ronco dos camiões diesel da tropa. Todas as vezes que esse barulho se faz ouvir o nosso coração dá um nó.
Tivemos pequeno-almoço: pão, manteiga e café com leite. Fomos todos para o pátio. Falta ouvir apenas o José Franco, Tomaz Caetano e os da Terceira.
A hora de pátio foi prolongada relativamente à dos outros dias, embora não tenha chegado em dia algum ao tempo legal.
Como estamos todos ouvidos e já não há mais ninguém incomunicável não percebo porque nos fecham nas celas. Houve quem dissesse que era para nos amesquinhar. Não duvido!
O estribilho do Gustavo é: “que chatice!”. Diz isso mais de uma dezena de vezes por dia. Compreendo perfeitamente a sua irritação porque sinto vontade de dizer o
mesmo.
Faz hoje 8 dias que aqui estamos nesta posição. Os lençóis da minha cama são os mesmos que o meu ilustre antecessor usava quando daqui saiu. Estavam sujos quando cá cheguei e, obviamente não estarão mais limpos. Bruno farta-se de se meter comigo criticando a pouca “alvura” da minha cama.
Pedi ao furriel de serviço que me arranjasse os lençóis. Estou pois a espera que eles venham mas a minha esperança é nula. O Gustavo reiniciou a sua actividade de escrever à máquina. É uma forma de desabafo como outra qualquer.
Das vezes que daqui saí para ir ao Palácio dos Capitães Generais, circulámos na cidade pelas ruas do trajecto que separava a cadeia do histórico edifício.
Nessa altura, vejo as pessoas e as ruas de outra forma que o comum das gentes e eu próprio quando me encontrava livre. O azul é mais azul e o ar é mais espesso. As pessoas não riem e o branco não existe. O som é mórbido e tudo é irreal. E Angra, a bela cidade de que eu tinha apenas as boas recordações de anteriores visitas sempre alegres, a última com a minha querida filha Ana Cristina, a luz dos meus olhos e alegria do meu coração cuja ausência me transforma num farrapo humano.
Cá estou eu a ceder à nostalgia e à tristeza. Não posso. Tenho que ser forte e impermeável, ao menos quando estiver aqui dentro.
Tomaz Caetano no pátio disse-me que explicou aos inquiridores a cena da minha ida ao quartel-general, convidado por ele. Dou graças a Deus por ele ter-se recordado das coisas como se passaram. Foi um acaso tão banal que podia ser até que dele não se lembrasse. Deus ajudou-me.
Embora os lençóis não tivessem chegado, fiz uma africanada: consegui meter a minha cabeceira dentro da fronha entretanto virada. Parece agora uma bola em aflições.
Ouvimos o noticiário. O Conselho da Revolução está no Alfeite. O COPCON enviou-lhe conselhos-tipo, pontos a ponderar. Ponderemos.
Tenho lido pouco por falta de tempo. Escrevo, converso e vou ali à casa de banho
lavar 3 lenços (a minha constipação continua teimosa), umas cuecas e um par de peúgas. Estão a secar.
A porta abre-se, Eng.º Santos, visita. Traz uma mala. A esposa está doente dos nervos, veio muito aborrecido como é natural. Estamos a confortá-lo de toda a maneira. O irmão do Gustavo foi para Lisboa, via S. Miguel. Parece que talvez se possa telefonar para casa esta tarde. Oxalá.
Nas coisas que a mulher do Santos lhe mandou vem um grande corta-unhas que Bruno Carreiro muito admirou pelo tamanho e atribuiu usos inconvenientes e menos decentes. Rimos muito.
E também rimos da reportagem do Pico sobre a manifestação de ontem. Nessa ilha onde, segundo o locutor, estiveram “centenas de pessoas” que protestaram contra os de S. Miguel que queriam levar o povo à escravidão. À miséria. Mas acrescentou que o povo tinha aproveitado para reivindicar caminhos, medicamentos, água, etc. etc. Tudo o que demonstra a fartura em que vive! Falou-se da Vila das Velas. Informáramo-nos de que apareceu escrito nas paredes F.L.A. /independência. Sem comentários mas com apreensão da nossa parte.
Aguardamos a hora do almoço. Já se ouvem os talheres e vozes lá em baixo. Que novas nos trarão? Tomaz e José Franco já estão no pátio.
Vim do almoço zangadíssimo! Os papéis selados que ontem assinei. Pois estes indivíduos deixaram os papéis em cima duma mesa do corredor central. Zanguei-me com o aspirante e com razão. Ele aliás deu-ma! Hoje é o último dia para contestar a acção do Tomaz Caetano, na Povoação e a falta da contestação faz-nos um mal tremendo.
Não sei, mas se estivesse nas mesmas circunstâncias, um pedido duma pessoa em más condições, faria tudo para que não houvesse mais agravos à sua situação. Tanto mais tratando-se de presos políticos cujas culpas se não são inexistentes são, pelo menos, mais que duvidosas.
A tarde cai calma e cinzenta e a nossa esperança não tem algum alento.
Os dias seguem-se chatos, iguais, monótonos e inúteis. Não disse o Furtado Rodrigues que nunca havia descansado tanto na sua vida?!
Mais noticias. Costa Gomes de volta da Roménia. A Assembleia Nacional. Sotto Mayor Cardia contra ataca os comunistas e o M.D.P.
Veio o “Açores” de 13, o Sebag diz que há telefonemas anónimos no sentido de serem executados dois continentais por cada um de nós presos.
Por outro lado eu compreendo a ânsia dessa gente. O micaelense é pouco diplomata e oxalá que isso não jogue contra nós, com essas brincadeiras de mau gosto.
Bruno Carreiro foi lá abaixo: uma visita. Quem será?... Já chegou era a família. Veio com uma mala vazia para encher com mil e uma coisa que têm vindo sendo trazidas para aqui; mais manteiga (Bruno morre e acaba por esse derivado de vaca ...) e bolachas.
Victor Cruz foi chamado a uma visita. Entretanto recordo-me que o Luís Moreira o da Padaria Branco, esteve esta madrugada vestido e de mala pronta julgando que a saída seria então. Tenho pena dele, que é continental e acredita nos seus conterrâneos.
Regressou Victor Cruz, era a Deolinda Rodrigues, irmã da Amália (a grande).
Mais uma sessão de anedotas. Lembrando-nos do C. Couto e do M. Oliveira e vários episódios já conhecidos ou novos para mim.
Mais notícias. Canto e Castro já está em Lisboa e com Melo Antunes farão parte do Conselho da Revolução, reunido em Alfeite.
Hoje choveu (fraco) pela primeira vez durante esta nossa “estadia forçada” neste paraíso luso.
E não vieram os lençóis; não ligam nenhuma. Estou a pensar em todos, todos, todos!
“Com razão ou à força” eis um princípio que a esquerda usou no Chile e que jogou contra ela. Julgo que é a única fórmula certa é: “com razão e à força” se bem que isto só deva ser empregue quando o absurdo estiver no poder.
O aspirante veio dizer que já podíamos telefonar. Hoje talvez não possa ser mas amanhã de manhã... Chove mais. Vieram jornais. Todos lêem. Rádio: Borges Coutinho chegou a Ponta Delgada.
Regressámos do jantar e do pátio. Foi até hoje a hora de pátio mais longa.
Tolerância absoluta; são 23 horas e 10 minutos. Estamos todos desnorteados. Ninguém percebe esta mudança de atitude. Atónitos estamos todos, pelo menos os que levam mais tempo a pensar do que a viver.
Na cela ao lado, Mont'Alverne montou um jogo de Bridge onde estão todos com ares profissionais... Vieram-nos fechar a cela. A manifestação em Ponta Delgada parece ter decorrido sem incidentes. Pode ser que isto nos venha a beneficiar pois que estou convencido que os motivos desta abjecta detenção são precisamente causar traumatismo psicológico na população, de molde a criar uma acalmia por ameaça a possíveis líderes de opinião e reduzi-los ao silêncio. Obtidos os objectivos, deve cessar a medida tomada, a não ser que venha a apurar-se qualquer responsabilidade em actividades criminosas, caso em que seguiria contra os indiciados a competente acção judicial, justificando-se assim a presença do Ministério Público na comissão em representação do Ministério da Justiça.
Entretanto, aguarda-se um comunicado do Alfeite onde está reunido o Conselho da Revolução na reunião mais longa desde a sua criação. A situação no continente é que não me parece nada brilhante e a teimosia em estabelecer grandes paralelos entre a reacção do continente e a Manifestação de S. Miguel é que é tola e me parece realmente prejudicial à nossa posição vista globalmente.
Segundo o aspirante de serviço, o comodoro vem cá amanhã de manhã e parece que por tal razão, os telefonemas que deveriam ter sido hoje e tinham sido transferidos para amanhã, ficam para a tarde. Eu gostava de telefonar para casa para sossegar o meu Pai que deve andar nervoso mas, infelizmente, não vejo grandes perspectivas.
É noite. Passos no corredor a esta hora! Gustavo Moura diminui o volume do rádio. Há qualquer coisa de estranho no ar. Angústia nos corações. Não. Parece ser a ronda.
Convencemo-nos disso e mesmo que não seja verdade ouvimos telefonia.
Vasco Lourenço ao Rádio Clube: muita (mas escusada) especulação sobre esta reunião; reunião de trabalho. Sairá comunicado? Não está previsto. Está a analisar-se. na generalidade, a situação interna; qual o papel do M.F.A. nos sectores económico-social. Não haverá governo militar!!!
Terça-Feira, 17.
Acordámos sem ter dormido quase nada, pois as lâmpadas mantêm-se acesas ainda.
Victor Cruz fala: refere-se ao nosso colega de prisão o Dourado de Vila Franca. Ele está sempre aos segredos. Não consegue falar com ninguém sem primeiramente chamá-lo à parte. E aqui neste presídio, mantém o método de «trabalho» que o Victor recorda vir dos tempos do Royal em que, diante de todos. o chamava por mímica, à parte; mímica essa que toda a gente, claro, percebia pondo em dúvida evidentemente a parte secreta da comunicação.
Ontem, Dourado chamou Victor à parte, no seu conhecido estilo secreto. Victor diz-lhe em voz alta: Dourado! Nós já estamos presos!
O Luís Índio (pai) continua com o filho mais novo no Hospital. Safou-se, por doença, do inferno da prisão.
Hoje, a manhã foi preenchida por Abel e Bruno Carreiro num «serão à micaelense». Não houve enredo que escapasse sobre separados, divorciados, e ... casos de longevidade. Até se falou de tremores de terra.
Subitamente depois do pequeno-almoço meteram-se todos nas celas. De repente, também, os aspirantes de serviço vieram chamar o Gustavo, Santos e Bruno para prepararem as malas e seguirem.
Destino: desconhecido! A mesma deselegância moral desde o princípio. O furriel porém (terceirense) diz-nos que lhe parece ser S. Miguel. Rezo a Deus, Nosso Senhor, que os leve até lá sãos e salvos.
O Santos está comovido ao despedir-se. Eu tive que lhe dizer qualquer coisa para o animar: - «Foi um prazer ressonar contigo». A tensão nervosa subiu perigosamente dentro de mim. Libertar-me-ão também? Estamos no pátio aberto desde manhã.
Saíram também Tomaz, Moreira, Dourado, Mont’Alverne e Menezes. Os terceirenses parece estarem incomunicáveis ainda.
Reina entre os militares uma descontracção inusitada; mantêm-se porém armados. Um soldado no 1º andar está sentando de cadeira perigosamente abraçado à sua G-3. Dei-lhe um chocolate. É um rapaz muito novo, deve estar altamente aborrecido com este plantão inútil. Estamos aqui há 9 dias e não houve da parte dos detidos, a mínima atitude de indisciplina.
Graças a Deus! Chegou a notícia de que António Manuel Amaral chegou a sua casa.
Almoçámos bacalhau outra vez. As celas estão abertas. Os soldados dizem que foi encomendado o jantar. O mais certo é ficarmos um dia ou mais neste suplício.
A ansiedade aumenta, a perplexidade também. Deus nos ajude.
Chegam-nos notícias de S. Miguel: A manifestação contra nós foi um fiasco, apareceu escrito FLA nas paredes e outras coisas do género. Aqui na Terceira idem, ao que dizem.
Os meus papeis ainda aí estão. Parece impossível!
Dr Abel veio da visita da esposa: notícias de S. Miguel: os que já saíram estão de residência fixa.
Estamos agora todos na nossa cela com as portas abertas. Tony, Câmara, Aguinaldo Almeida, Furtado Rodrigues, Domingues mais novo, Tavares Brum, João Gago da Câmara, Luís Índio, Oliveira, Gualberto, Dr. Abel e Pavão. Saem e entram e bebe-se cerveja (eu não, porque ainda não tinha feito a digestão). Aborrecido e muito British (com uma fleuma muito sua) estirado na sua cama e perante o vai e vem que as celas abertas proporcionam, o Luís Domingues diz que «esta cadeia perdeu todo o interesse…».
- Vi o João Gago e a esposa lá em baixo. Fez-me um cumprimento muito afectuoso. Tenho a certeza que esta nossa situação cimentou amizades indestrutíveis.
O optimismo do Dr. Abel é verdadeiramente espantoso. Continua a dizer que Manifestação foi a «a coisa mais linda. Palavra d’honra!» Lembra a cena em que Borges Coutinho pediu a demissão, depois do general ter dito, quando regressou da varanda: “Senhor Dr., Depois do que eu vi, a sua situação é /insustentável”. Foi a coisa mais linda, palavra de honra!”
Perguntaram ao Borges Coutinho se precisava de tropa. Este disse que não precisava da tropa para nada. Diz-se que um oficial que estava presente saiu, batendo com a porta ruidosamente.
Um dos terceirenses que esteve cá connosco saiu, ao que consta porque estava a deitar sangue pela boca. Ele é pequeno, a cara tem largos vestígios de bexigas. Anda sempre com um robe de chambre muito comprido e vermelho vivo, com o cinto dobrado em frente com dois atilhos compridos. Parece um frade psicadélico... Dá ares de um rapaz muito corajoso e além de ter a vantagem (ou desvantagem) de estar na sua terra tem aguentado bem incomunicável todos estes dias.
Mais noticias: o campo de jogos de Angra apareceu escrito de F.L.A. Hoje há um jogo importante com um grupo do continente; já estão a apagar. De qualquer dos modos prova-se ou começa a provar-se que esta detenção foi o erro político mais estúpido que se praticou nestas ilhas desde o liberalismo. Miopia histórica. Ignorância ímpar. Cretinice exemplar!
As notícias de S. Miguel são boas e más, ao mesmo tempo. Boas porque chegaram, a casa, os que daqui saíram e isso é o primeiro objectivo; e más, porque a chegada ao aeroporto é guardada por soldados armados: depois, são levados para o quartel-general, guardados e só então é que voltam para casa. É como digo: caminha-se de deselegância moral em deselegância moral. O que mal começa, tarde ou nunca se endireita. Por cima ainda lhes ferram com residência fixa! É o cúmulo!
Continuamos na cela, desta feita a ouvir o Pavão (comandante da SATA mas muito mais novo que eu) a falar das suas aventuras na Guiné. Parece-me que há aqui muita gente que andou na guerra da Guiné e portanto cimentou amizades indestrutíveis que são aquelas nascidas na adversidade ou no perigo.
Estou a compreender agora um pouco de tudo isto. Só o que me escapa continuamente é aquela mentalidade cega que não percebe e teima em não perceber.
Que os levem todos os diabos do inferno.
Na manifestação de Ponta Delgada pela rádio contra nós, ouvimos falar um operário da fábrica do tabaco que é conhecido por “engenheiro” e é árbitro de futebol.
O João Gago da Câmara lembrou-se de que esse indivíduo que tem 10 filhos, esteve na América e Canadá onde gastou tudo o que tinha por causa da sua má cabeça até perder casa e emprego, falou em 1969 depreciativamente do MDP/CDE, deu vivas ao Professor Marcello Caetano quando ele cá esteve. É preciso procurar fotografias no Nóbrega para desmascarar o tipo e as pessoas que nele buscam apoio. São mais uma vez os ignorantes e oportunistas. É preciso afastar duma vez por todas essa cáfila que só serve para desequilibrar a máquina governativa e o juízo dos homens. Deve ter sido ele quem denunciou falsamente o Eng.º Santos e o António Manuel.
Tenho estado a pensar que a única pessoa capaz de ocupar o Governo Civil de modo a acalmar todos e fazer a máquina funcionar com certo equilíbrio é o Costa Matos; só tem um contra: é que não aceita, porque não é tolo.
Segundo informação que conseguiram passar ao Pavão, não está previsto qualquer plano de voo hoje para S. Miguel. De dia, noite ou madrugada. Portanto não sairemos daqui tão cedo. Espero tudo. Tenho pena é dos meus. O meu vizinho Moreira que mora ao lado de meu Pai na Rua dos Manaias há-de ter-lhe levado notícias; oxalá que elas acalmem aquela gente.
Hoje resolvi não jantar. Comi maçãs, bebi um sumo, banana e bolacha deixadas pelo Eng.º Santos. Vou tentar dormir alguma coisa mas não tenho muitas esperanças pois eles deixam as malditas das lâmpadas acesas toda a noite e parte do dia.
Aliás, outros companheiros devem vir para esta cela colectiva para o lugar dos três primeiros que saíram. Calculo que o José Franco, o Luís Franco e o meu colega José Nuno. Vamos a ver o ambiente que se pode criar com eles.
Repentinamente somos chamados para as celas - são 19horas e 25 minutos. Pergunta-se, não respondem nada. Parece que é dia de festa e que os soldados querem lá ir.
Por outro lado, o José Franco, ocupando agora a cama que foi do Eng.º Santos, diz-nos que afinal em Ponta Delgada, sua filha levou o Dourado para casa pelo que não deve ser verdadeira a notícia de terem ido para o quartel general.
A porta da cela está fechada. Fala-se de Agar-Agar. Tento recordar-me da “Carta para longe” de Armando Côrtes-Rodrigues; faltam-me 3 quadras, tenho que rever o Poema de novo.
Já não posso mais ouvir falar nos relatos do inquérito.
Dormi outra vez de luz acesa. É um tipo de tortura de nos deixar a cabeça em molho e os olhos doridos.
4.ª Feira, 18.
Mais um dia. Discute-se economia, como se tornava inevitável dada a presença do José Franco na cela. José Franco é um indivíduo alto, de porte fidalgo, cabeça erguida com uma barba grisalha, olhos negros e muito vivos, nariz aquilino, portador duma voz sincera, com uma ressonância de quem fala apenas quando tem razão e sabe disso. Quando José Franco fala todo ele fala, mãos e tudo.
Luís Franco dorme e ressona. Apesar das lâmpadas e do sol que entra filtrado pelas grades. Mais um dia se vai arrastar na angústia da dúvida.
Fala-se em copiar a Suíça. Sonha-se. Penso nos meus. Penso em Deus. Peço-lhe que me liberte. Já.
Pequeno-almoço: café com leite com um bolo de passas que foi gentilmente cedido pelo Gualberto que aliás o ofereceu aos soldados e cabos (pelo menos) que o saboreiam gostosamente.
Já foi solto um dos rapazes da Terceira, o Paulo, com olhos muito claros. Que disse ter sido informado por um dos membros da comissão que antes de domingo estaria lá fora.
Mandaram-me para a cela como de resto aconteceu ontem antes da libertação dos primeiros nove. Oxalá que seja um bom augúrio. Deus o queira.
O tempo passa e nós na cela! Nada. É arrasante esta espera. Os minutos passam lentos e intermináveis.
O Paulo diz-nos agora que o comodoro que chega esta tarde levou para S. Miguel uma proposta para libertar mais uma leva. De modo que antes da tarde ninguém (se alguém) sairá daqui.
Como estará o meu escritório? O João Saraiva (meu chefe de escritório) deve estar a conduzir o barco. Mas, chegando ao dia 30, tenho que pagar os ordenados. Se pagar!
Diz-se agora que a lista inicial de pessoas a deter seria de 10. Mas que, não se sabe como, foram presos 30. Suspeita-se do Borges Coutinho ou da mulher que teria organizado em casa essa lista. Mas não é nada disso. Eu sei mas não o digo por não ser oportuno. Diz-se que estão a interrogar pessoas em S. Miguel. É natural. Não percebo, por isso, qual o critério que presidiu à primeira libertação.
Consta que dos presos que estavam aqui antes de nós e foram transferidos para o B.I.I. 17, um fugiu. Telefonou de Lisboa e parece que está na América agora. Que Deus o ajude. Seria falsificador de passaportes e documentos vários. Enfim, liberdade.
Novo aspirante. De cá. É muito popular entre os nossos colegas de presídio. Foi ele que levou ontem os libertos para S. Miguel. Diz que não há notícia quanto a nós. Estou a ficar com dores de cabeça. Isto não me está a agradar nada.
Dormi. O Conselho da Revolução continua reunido no Alfeite. Otelo e Fabião reúnem-se em Queluz. Mas segundo a E.N. não há divisão...
Discute-se política de novo. O Luís Franco tem uma tese interessante.
Almoço: Carne com arroz, uma hora de recreio. O aspirante (que continua a proibir
os telefonemas) mandou-nos regressar às “suites” numa ironia fina mas de muito mau gosto. O Pavão diz que amanhã há um avião militar que vem de Lisboa e regressa depois de amanhã.
Hoje o vento em S. Miguel é superior à capacidade do avião militar que faz a ligação com a Terceira. Portanto, a eventual vinda do comodoro deve estar prejudicada.
Caxias continua a ser o pesadelo, principalmente dos rapazes mais novos por cujo ânimo estou um pouco preocupado. Disse por isso uns disparates e fiz umas macaquices. Mas o efeito foi limitado...
São quase dezasseis horas. Tivemos que regressar à cela. Cá estamos, todos já deitados na cama. O José Franco não conseguiu dormir esta noite. O Victor também não, mas por causa da grande azia que sentiu.
Ouve-se o roncar do camion ou jipe da tropa. Ou será a camioneta da carreira? Mais vaie não pensar. Não tenho dito nada mas vou ler agora um Pato Donald qualquer, a ver se as dores de cabeça passam.
Visitas: José Franco e Dr. Abel vão receber as suas respectivas consortes. Às vezes ponho-me a pensar se não seria melhor a Maria de Fátima vir mas não; não quero que me vejam aqui. Peço ao Dr. Abel que diga à esposa para telefonar lá para casa. Oxalá assim lhes cheguem notícias. Pergunto ao aspirante (que afinal é de Chaves) se há novidades; ele responde: - “Sei tanto como os senhores”.
As dores de cabeça permanecem. E os mestres também; agora caiando os corredores da cadeia. Pobre gente, já se ri disto tudo. A um deles, que tinha um ferimento numa perna, já o Dr. Abel (apesar de advogado) lhe receitou uma pomada... Enfim exercício ilegal de profissão. Oxalá eles venham das visitas cheios de notícias. Mas acho pouco provável pois falam mais do que escutam...
Regressaram. Dr. Abel: saímos amanhã ao meio-dia. Já não acredito em nada.
Paulo Pacheco, da Terceira, confirma a notícia através do N. Barcelos do Rádio Club de Angra. A dúvida aumenta.
Joga-se às cartas na cela. Gualberto e José Franco perdem à Sueca com Manuel Oliveira (o “inocente”) e Tavares Brum... Esta situação provoca um silêncio sui generis.
Houve uma súbita explosão de alegria. Fala-se de lagostas. Cotizam-se. Aguarda-se.
Recordamo-nos de Armando Cortes-Rodrigues e Armando Goyanes lembra as seguintes quadras do grande poeta quando era seu aluno:
Armando toma juízo
Armando toma cuidado
Não troques o gerúndio
Pelo particípio passado;
Armando toma juízo
Armando toma cuidado
Armando se não estudas
Armando ficas chumbado.
A seguir invoca-se o coronel Soromenho e o coronel Joaquim de Sousa.
Contou o Gualberto uma cena passada a bordo do barco que nos trouxe. De facto, lembro-me que ele esteve em camarote à parte, durante algum tempo.
Pois um capitão de cor, depois de o fazer esperar mais de uma hora disse-lhe que estava encarregado pelo general de o interrogar:
- “O que eu souber, dir-lhe-ei, propôs Gualberto.
- Pois então diga-me, onde estão as lagostas? Inquiriu o capitão.
- Eh. o senhor está enganado. Eu sou regente agrícola, não sou pescador!
- O senhor quer falar de armas, não é? Não, não há nada disso”. E acabou o inquérito.
Mais um episódio anedótico que se regista.
Fala-se já no jantar. Cheira a comida. A fome é pouca. Portas abertas e música, cartas e sonho.
Deitei-me muito cedo, aproveitando a escuridão da cela, de modo que quando chegaram as santolas, com cerveja, música e padre, já eu tinha dormido profundamente umas 3 horas. Sonhei com os meus queridos filhos e minha mulher. Sonho como se fosse realidade.
Quando o aspirante Chaves veio fechar a cela “por motivos de segurança”, disse que amanhã seriam ouvidos mais 3 de S. Miguel, pelo que as perspectivas de libertação passam a ser um tanto remotas, pelo menos para os que lá forem ...
Quinta-feira 19.
Acordei às 6 horas. Tempo chuvoso. Céu cinzento. Os mestres começaram a falar às 6.30. Fui à casa de banho, lavei-me. Rezei muito; sonhei toda a noite com os miúdos e com minha mulher. As saudades são imensas. Estou à beira da loucura.
Ligo para o E.R.A. às 7 horas. Ouve-se música suave. Aguardo as notícias sem esperança e com um mínimo de curiosidade.
Estou a ficar desleixado. Ontem nem fiz a cama. Não tenho lavado a roupa. Tudo comandado, ao que julgo, pelo subconsciente que anseia e prevê uma saída. Tenho que passar a ter mais método porque o desleixo leva à loucura. O desmazelo desorienta e rouba a paz interior.
Dormem ainda o Luís e o José Nuno. Ouvem-se as notícias de Lisboa. Nada de novo. Mudo para o R.C.A., música outra vez. A minha constipação melhora.
Depois de um duche frio, José Nuno enrolou uma toalha no ventre e deitou-se na cama. Victor chamou-lhe “ Mahatma Ghandi”.
Fui lá abaixo fazer a barba, num ritual que se repete chato e monótono.
O Luís Franco tem 32 anos. Nunca pensei que fosse tão velho. Dava-lhe uns 27 anos. 8horas e 30minutos: notícias rio R.C.A. o sol começou a brilhar... lá fora.
Pequeno-almoço, o costume. Sol, 30 minutos. Álvaro Moreira, foi chamado a depor de manhã (às 9 horas). O aspirante veio chamar os irmãos Domingues para receberem visita da Mãe. Fala-se, de novo, em negócios nesta cela. Porcos, vacas, casas e mulheres. Que gente!
Recordo o Eng.º Vasconcelos Franco, pai do Luís e do José, que cá estão connosco.
Um homem muito interessante que conheci relativamente bem. Com sentido de humor muito vivo, apesar da idade. Um micaelense ferrenho.
Victor Cruz regressou dar visitas que esteve animando, como é moda aqui entre nós, pois eles vêm tão caídos que não há outro remédio. Ainda não regressou o Moreira. Já está de serviço o aspirante d'Artagnan. Estou farto, vou tentar ouvir notícias, são quase 11 horas.
Visita: recebi a visita do Dr. Álvaro Monjardino que, segundo ele, já cá esteve quatro vezes para tentar falar comigo. Ofereceu-se para telefonar para o meu escritório a saber se havia alguma necessidade e depois transmitir-me.
O preso que fugiu do 17 era cliente dele e telefonou-lhe de Lisboa a pedir-lhe a conta dos honorários…
Falei com a mãe dos Domingues que prometeu ir lá a casa. Também falei com a esposa do Dr. Abel que me prometeu telefonar. Lá fora, a mãe do Tony Câmara, a mulher e filha do José Nuno, a mulher do Oliveira. Mulher e a Mãe do João Gago (Baronesa da Fonte Bela), a mulher do José Franco.
Os três da Terceira (fora o Silvério Bispo) foram ao comando para serem reinquiridos.
Depois destes serão reinquiridos alguns de S. Miguel.
Vi da nesga da porta da rua, o mar azul do Atlântico, vi a histórica Angra do Heroísmo e o Monte Brasil. Meus olhos encheram-se de cor e saudade. O azul do céu rivaliza com o do mar e, se tirarmos o veludo daquele, ficam iguais.
Segundo o Álvaro, ele esteve na doca e no tribunal a ver-nos chegar: viu o Manuel
António (Padre, ao que se diz) e que foram os comunistas que fizeram barulho quando desembarquei... quando o encontrou à porta do tribunal, perguntou se ele andava a fazer piquetes. Disse que não, que estava a ver se conseguia, falar com o Gustavo Moura, de quem é amigo.
Regressou o Moreira filho, fizeram-lhe as mesmas perguntas que já das outras duas vezes lhe haviam feito. Ameaçaram-no com Lisboa. Parece, todavia, que o rapaz não fez nada e eu que o conheço desde criança, acredito!
Já passa do meio-dia, mais um perdido para a vida. O pessimismo invade-me com as dores de cabeça que não me largam desde que saiu a primeira leva.
O Gualberto soube que na sua ausência, a tropa e civis lhe revistaram o aviário em busca de armas!!!
Parece incrível, esta, gente enlouqueceu completamente. Foi de facto uma brincadeira de mau gosto falarem em armas, mas qualquer criança percebe que foi um bluff monstro e idiota. Querem ver que é por causa disto que nós estamos aqui! Parece impossível!!!
Fala-se de Dinis Afonso Miranda que não conheci mas que esteve na origem de fábricas de sabões, velas, máquinas de descascar amêndoa, pastas de dentes. Parece ter sido um génio. Sempre muito bem vestido. Com um raciocínio brilhante para sair das situações mais difíceis. Morreu sem pernas, que teve de cortar, por doença.
Tony Câmara entrou na nossa cela onde estão agora quase todos. Rapou a incipiente e jovem pêra, deixando apenas o bigode. Diz ele que por razões de alcofa. Acredito.
13 horas - Devemos estar prestes a almoçar. Os reinquiridos ainda não regressaram do comando. Aguardemos. Gualberto lavou a sala de jantar. Este homem é de facto inacreditável.
Ouve-se um rádio ao longe. Carpinteiro, comandante da SATA, na ordem do dia: - E ele diz coisas horrorosas a um dos colegas. E como este não responde diz-lhe: “Oh F... eu até tenho vergonha das coisas que lhe digo”.
O Victor Cruz diz que têm que o libertar antes de sábado porque ele precisa de ir à praça no Sábado, fazer compras...
Chegaram dois soldados. Fala-se no 17 que nós vamos embora hoje. Será verdade? Não quero acreditar. Mas peço a Deus que o seja. Oh meus queridos filhos.
Estou admiradíssimo com o comandante Pavão, ainda não falou na Guiné. De quando em vez tenho que pedir circunspecção porque a linguagem se aproxima perigosamente (se não ultrapassa) a de caserna.
O Dr. Abel diz que temos que nos ir embora por questões de higiene (os lençóis desde que a gente chegou ainda não foram lavados ou mudados).
Almoçámos frango assado. Estava bom. Diz-se para aí que o avião militar segue hoje para Lisboa. Oxalá não nos leve!
Vim para a cela, não porque me mandassem mas para escrever qualquer coisa. O quê não sei. Ouço rádio e o José Nuno.
O Aguinaldo foi telefonar ao Pai. Diz que no Canadá reina grande indignação pela nossa prisão! Não é para menos. Aguinaldo é um rapaz novo (23 anos) muito forte, pelo menos na aparência. Muito triste. Muito inteligente e muito calado. Diz-se que tem talento. Eu acredito.
Na porta da cela 19, onde está Waldemar Oliveira, está escrito pelos respectivos ocupantes: "Escola de insultos, entre e confirme!”
Dores de cabeça, angústia. Se ao menos eu fosse culpado de algum crime a minha consciência, virada remorso, haveria de justificar ao meu cérebro esta triste e incrível situação. O rádio dá música. Uma sonata. O piano chora; lembro-me do meu sogro.[1] Como eu faria tudo para o estar a ouvir agora mesmo que estivesse três horas com Chopin ou Beethoven, seguidas.
Eles em S, Miguel. ao que se soube, têm ido a casa das pessoas às tantas da manhã fazer buscas. Devem estar há procura de armas.
A rádio dá um minuete que o meu sogro costuma tocar no piano a meu pedido, quando em festas de anos queremos dançar à antiga. É bom imaginá-lo. Ele deve estar fulo!
Victor Cruz teve um ataque de método agudo e endireitou as duas mesinhas que temos. Por cima forrou-as e dividiu o tampo em seis partes com os nomes de cada um de nós.
Numa das janelas da prisão do 1º andar, no corredor da nossa cela, está um vidro partido e no vão da janela um ninho com 2 ovos de pomba. São quase tão grandes como os de galinha. Pobre pomba, vieste fazer ninho à criação mais lúgubre do género humano, aquela em que o homem rouba dias à vida do seu semelhante.
Lembro-me dos meus tempos de estudante de direito penal. Há um princípio geral que nos diz: mais vale mil criminosos à solta do que um inocente preso. Na verdade, como em tanta coisa, isso é um princípio que de nada vale. Estou para aqui a apodrecer sem ter violado uma única lei (e estou a referir-me à legislação revolucionária); talvez esteja a ser castigado pelo meu amor exagerado ao torrão Natal. Amei mais a terra que os meus filhos. Devia ter pegado neles e fugido como fazem os cobardes e talvez me dessem então valor. Mas Deus é bom. Infinitamente. Há-de ajudar-me como sempre o fez.
Ouve-se ao fundo o martelar impiedoso dos mestres. Algum cano que vasa. O lixo no pátio amontoa-se desde que para aqui viemos. A mosca já entra pelas janelas. Se as fechamos, abafamos. Se as abrirmos, moscas. É tudo assim.
A cela colectiva, aqui ao lado, a “Escola de Insultos”, era ao que julgo escola da prisão, tem quadro preto, carteiras, mapas etc.. Tudo eles puseram no corredor para poder estender as camas onde se deitam.
A minha carta para o Sr. Bispo d'Angra não seguiu. Fartei-me de pedir aos aspirantes que a mandassem. O meu telegrama para a Ordem também não. Os meus colegas não foram de opinião. Eu não insisto, que nestas coisas da classe manda a maioria.
Desde que o Gustavo Moura saiu, deixámos de ter informações. Pouco ou nada se sabe. Ele também não quis (ou não pôde) mandar-nos o “Açores” para aqui enquanto estivermos nesta situação.
Quando lá chegar, corto-me do Diário dos Açores que achou por bem dar alarde à notícia da nossa detenção. Parece impossível que gente a quem eu dei tanto trabalho tivesse estômago para tanto. Falta de coragem é que é. Por isso terão pelo menos uma assinatura: a minha. O Dr. Abel diz que se não corta porque o pessoal do Diário está seguro na sua companhia... É o velho e arcaico sistema económico-social de S. Miguel, contra o qual as gerações mais novas se rebelam com toda a razão.
O Dr. Abel continua a ser um optimista sistemático. Eu por mim já estou insuportável para mim mesmo. Mas não sou feito de palha. E uma injustiça custa muito a sofrer, principalmente se ignoramos as razões que estão por detrás dela.
Aliás, quanto mais penso nisso parece que enlouqueço. Mas não, jamais farão de mim um oportunista qualquer que seja a opinião que tenham de mim. Quero ter confiança nos homens. Oh Deus. Eles são todos Teus filhos. Mas... nem quero pensar.
Começa agora o tormento das moscas.
O José Nuno traz a notícia de que saímos amanhã. Já não acredito em nada! É tudo mentira. Tudo. Lembro-me agora da peça “O Rinoceronte” dum autor famoso cujo nome agora me não recorda. Calcula-se como está a minha cabeça. Também não quero ser Rinoceronte. Recuso-me a ser o que olha só numa direcção. Jamais! Oh Deus que me deste a liberdade, não permitas que ma roubem.
O Aguinaldo veio sentar-se um pouco ao pé de mim para ouvir as notícias do ERA. Nada de novo! Levantou-se e saiu. Quantos sonhos albergarão aquela cabeça?
Casado de tão novo, afastado à força da mulher que está a espera de bebé para estes dias. Esforço-me por lhe dar, em catadupas, conceitos de justiça. É que uma injustiça é fonte permanente de injustiças, se a vítima não está bem preparada. Esta gente esteve na guerra colonial à força. Prendê-los agora é vitupério.
José Nuno lembra a Universidade. Cenas engraçadas. As alemãs. A Madame De Gaulle. Bons tempos! Lembro-me do pistoleiro, um condiscípulo nosso da Faculdade de Medicina, com mais de 50 anos, de aspecto sebento e com uma horrorosa pasta de cabedal que além de comida levava duas lendárias pistolas. José Nuno costumava esconder-se numa esquina de dedo estendido, gritava-lhe:“bang, bang!”. Um louco. Bons tempos!
Quantos colegas meus desse tempo (Jorge Sampaio e Macaista Malheiros) não estarão no poder? E que nunca foram presos na outra situação, apesar de tudo.
Lembro-me de Medeiros Ferreira hoje deputado e que foi meu colega no Liceu e condiscípulo (em letras) na Universidade que porém esteve preso. Mas ele era solteiro. Sou muito amigo do pai, sargento guarda-fiscal reformado, nadador, membro do grupo que vai a piscina de Verão e de Inverno. Trabalha na Estação de Serviço da Mobil atrás do Teatro (Nicolau de Sousa Lima), um homem sério sempre detestou Salazar e com uma cultura invulgar para a sua situação. O filho disse-me um dia que apesar do fosso ideológico que nos separa, me estimava; sempre lhe paguei na mesma moeda. Tinha rasgos de génio. Lembro-me dum discurso feito por ele no Estádio Universitário de Lisboa, na qualidade de Secretário-geral das R.I.A., em que pôs em cheque a filosofia do Ministro de Estado Correia de Oliveira, achando-a “estranha" num acto de coragem que havia de valer-lhe a prisão de que falei.
O regime de Salazar tinha arestas e agudas, mães das injustiças sociais que germinam sob qualquer ditadura. A daquele não faz excepção a isso. E a sua miopia quanto ao futuro é que foi a culpada da actual crise profunda que o país atravessa. Se em vez de ter atrasado a marcha da história, a tivesse deixado seguir o seu curso natural, o dique não tinha rebentado com a força que se está vendo, para mal dos que serão levados pela correnteza de ódios e quimeras incontidos.
A mulher do Aguinaldo está à espera de bebé como disse. Ele quer ajudá-la, estar ao pé dela quando nascer a criança. Falou-lhe ao telefone. Choraram. A mãe está em risco de ser internada por causa da situação dele. Um inferno em vida. Que penar tão absurdo e inútil. Vê-lo, gigante, e quedo como um soldado indisciplinado que pertenceu ao mesmo exército que o prendeu agora, faz dilacerar o coração .. Aos 23 anos, cheios de ideais (os seus olhos muito escuros não fixam o perto), vêem longe o dia da sua realização.
Entrou Victor Cruz na cela com uma lufada de ar fresco. Palpita-lhe que saímos todos (ou alguns) amanhã! É sempre a mesma coisa mas soa como música celestial.
Sousa de Oliveira o homem que sendo cientista, idealista da extrema esquerda que antes me parecia um romântico, agora surge-me como uma figura quase «sinistra».
Magro, alto, homem de gadanho, homem dos Arrifes nascido na América, nutria por este país um incompreensível ódio sobre humano. O seu marxismo era feroz e incontrolável. Entrava em transe quando discorria sobre a revolução. Tempo houve em que o adorei como cientista (quase insuportável) rigoroso e profundo. A arqueologia surgia nele natural, científica, linda. Hoje que a revolução dele está a acontecer e que os meus ideais são triturados por ela, espezinhados sem contemplações, sinto por ele a indiferença dos mártires perante os leões que os devoram. Canto. O martírio é sementeira de heroicidade. Hoje somos os mártires. Amanhã virão os heróis...
A loucura dele tinha algo de paralelo com a de Borges Coutinho. Com uma diferença: Sousa é um puro. Ou melhor: era. Hoje não sei!
Contava-me ele que tinha oferecido à sua Mãe o livro intitulado «Mãe» de um famoso teórico do marxismo que julgo ser Gorki. Aquela que o sabia em Coimbra, volvido ateu, e revolucionário, desabafou com ele dizendo-lhe que gostaria tanto de lhe queimar os livros, fonte do ateísmo que a matava aos poucos: Sousa ordenou-lhe que lhe devolvesse o livro pois “ela não era digna de o ler”. A boa senhora fê-lo entre choros e lágrimas que não tiveram o condão de quebrar a rigidez de pedra do coração do então jovem revolucionário. Sousa porém adorava os pais. E hoje, as suas sepulturas são religiosamente mantidas com o seu magro vencimento de professor de ensino secundário. A casa deles está intacta com tudo o que existia no tempo em que vivos eram.
Nunca compreendi o Sousa dos Arrifes (como ele gostava de ser tratado por meus filhos que o adoravam). Ainda hoje para mim é um enigma indecifrável.
18 horas: notícias. Aguarda-se o comunicado do Conselho da Revolução que está a ser elaborado por uma comissão especial. Assaltaram um banco em Aveiro. 700 contos ao que parece. Depois notícias sem interesse de maior.
A esposa do Dr. Abel falou com a Maria de Fátima. Estão todos bem. Os miúdos já sabem. Patrícia (julgo eu) deve ter lido nos jornais. A minha angústia aumentou. Só Deus é que sabe. Só Deus e eu. Não choro por vergonha. A minha tristeza não tem limites. Peço a Deus que faça passar pelo mesmo todos os culpados por isto. Que sofram como eu sofro! O meu Deus! Ó meu Deus!
Acabaram as notícias. Ouve-se lá em baixo o barulho dos arrumos para a refeição. E os minutos passam lentos e eternos. E as horas, e os dias!
O apetite falta-me. Jantarei porque me faz falta. Sinto-me aqui por não trabalhar, pouco merecedor da comida. Até hoje, desde que me formei nunca tomei uma refeição que não fosse compensada com trabalho.
Na cela ao lado, José Franco fala de vacas. Escreveram por isso no quadro da escola a que me já referi, o seguinte:
O Zé Franco pr’a cá estar
Tem que falar de lavoura.
Quando tiver que se calar
Não cala, estoura!
Não sei se a métrica está certa. Mas o conteúdo está.
Bruno Carreiro fez-nos falta aqui com os desabafos! E histórias. E bom humor. Chego a pensar que foi pena ele ter sido libertado. O bicho que saiu esta semana foi o “cavalo”, o 43. Com efeito.
Como estará o meu escritório? Como estarão os meus clientes principalmente os de processos-crime? Que fé podem ter eles num advogado que foi parar à cadeia? E eu que tinha sido chamado à Cadeia de Ponta Delgada por um pobre recluso que precisava de assistência.
Calculo a perplexidade e risota que aquele espírito terá sentido com a notícia da minha prisão.
O dr. Abel faz recordações. Hoje acho-o muito triste, oxalá que ele não tenha recebido más notícias...
Armando Goyanes parece uma fera enjaulada. Suas mãos enfiadas nos bolsos horizontais com os polegares de fora. Anda de um lado para o outro com o seu fácies flamengo, cabeça abatida e balanceando. Pensa. Sua mãe parece que está doente. Chamaram 16 para o jantar. Victor aproveita pois a sala fica muito porca depois da refeição.
Jantámos: peixe e sopa de feijão habitual. Depois do jantar o regime foi libérrimo. Pátio à descrição. Celas abertas, até ás tantas.
O aspirante fala numa possível libertação amanhã. Notícias de S. Miguel dizem que o comodoro referiu a libertação de todos amanhã. Acho muito queijo por um escudo. Aguardemos. Pois mesmo assim não há nada a fazer.
O corredor interior está cheio de visitas. Guiod de Castro e esposa. Todos os outros têm as esposas e um deles, os filhos do tamanho dos meus. Parte-se-me o coração ao vê-los.
Um grupo sentou-se frente a frente no sofá e no coxim do pátio. Falou-se de tanta coisa. Victor Cruz estava com frio. Gualberto sentou-se junto dele. Segundo aquele, sentiu-se como se estivesse a ser “chocado”. Convém esclarecer que Gualberto tem criação industrial de pintos...
Depois viajámos pelos Estados Unidos, Canadá, Suíça até que, quando falámos de Genéve, o Pavão entrou a matar com Bissau e a Guiné adjacente e esmagou a conversa com aviões durante quase meia hora.
Vim deitar-me, ou melhor, encostar-me, e cá estou a escrever no que espero seja um dos últimos horríveis pesadelos neste inferno.
Segundo José Franco, eu, ele e mais dois ficamos cá. Não percebo o critério dele. Diz que o Borges Coutinho não pode comigo. Não percebo. Aliás não percebo nada disto, desde o princípio. Maldita a hora em que os continentais se lembraram de mim. Se cá estivessem pensariam da mesma maneira que eu. São andorinhas que vêm na Primavera para sujar os beirais. Nos Açores não há andorinhas de verdade. Há destas!
Na cela 19 ouvem-se as gargalhadas sonoras de João Gago e Tavares Brum a espaços de 5 a 5 minutos, adivinhando-se que alguém (Oliveira, o inocente, talvez) conte anedotas frescas.
O avião militar seguiu para Lisboa hoje sem nós!
A conversa do José Franco faz-me pensar (e depressa) em que espécie de barco o destino me terá colocado. Herói à força é coisa que nunca quis ser. Nem herói nem mártir. Mas o que está escrito na sina há-de ser cumprido mesmo que se não queira. Terei preenchido algum vazio nesta terra? Não parece que eu tenha qualquer espécie de importância que permita tal conclusão.
Sexta-feira, 20
Perto das sete, alguém abriu devagar a tranca da porta. A noite foi passada razoavelmente. Dormi bem. Apaguei as lâmpadas como ontem (desatarraxando-as). A euforia é geral. Todos estão convencidos de que se vão embora hoje. Oxalá que a desilusão não seja, por isso, maior ainda.
Estão as celas todas abertas.
Mas as notícias são contraditórias. Hoje diz o Silvério Bispo que a viagem do avião de Lisboa foi adiado. Será para nos pôr em S. Miguel ou Lisboa?
A dúvida mantém-se de qualquer modo. O arsenal de granadas ofensivas e lacrimogéneas, etc. que estava na cozinha terá partido hoje. É bom sinal… No pátio, alguns conversam. O cheiro do lixo torna-se insuportável pois apodreceu já completamente sem que ninguém pareça preocupado com isso. Conta o Gualberto que o Gruppen Fuhrer o fechou na cela, de castigo, por ele ter feito uma reclamação e que pintou as grades duma cela para ver se o nosso companheiro tocava na janela. E como isso aconteceu, castigou-o, mandando-o para uma cela isolada.
Notícia do Emissor Regional dos Açores (E.R.A.), um comunicado do general em que se anuncia a satisfação das reivindicações da lavoura, agricultura e pescas. A Manifestação foi ilegal; os que eles julgaram ser os seus organizadores, estão presos ou de residência fixa... mas fazem-lhes a vontade. Pudera...
Ontem à noite ouvimos a BBC e a Deutschewelle, que consideraram a situação, em Lisboa, anárquica e em perigoso equilíbrio.
O Dr. Abel propôs que todos nos tratássemos por “compadres”. Estão todos, compadre, para aqui, e compadre para ali. O Victor diz que: - “Só existem duas pessoas inteligentes, nesta terra, uma é “mê” compadre e a outra é quem “mê” compadre disser”.
Voltam as dores de cabeça. A desorientação em minha cabeça é total. Esta gente mesmo não vê o mal que nos está fazendo e o fosso que está cavando?
O homem nunca aprende, a sua falta de conhecimento é a causa da maior parte dos males. Por isso, o povo há-de ser bombardeado com livros e ensino até à saturação. Sem conhecimentos grandes, generalizados, não temos hipóteses de progredir. Guerra absoluta, total e absolutamente prioritária ao analfabetismo. Que ninguém ignore uma vírgula da História desta terra e deste povo, das suas potencialidades económicas e sociais. Só quando tivermos a consciência do que somos e como somos, o que temos feito, o que podemos fazer e o que temos de fazer a curto e médio prazo é que poderemos construir algo de grande pela Causa Açoriana.
A política do compadrio tem que ser substituída pela política do interesse geral.
A política do improviso tem que ser substituída ela política do planificado. A política da mentira e do embuste tem que ser substituída pela política da verdade total. Que todos tomem consciência de todos os dados que concretamente formam a estrutura e movimentam a conjuntura da nossa sociedade!
Temos que entregar metade (ou mais) do nosso orçamento à educação, isenta, imparcial, humanista e técnica do nosso Povo. Há que bombardeá-lo com cultura, sistematicamente. Até à saturação!
E isto pode e deve ser feito concomitantemente com o aproveitamento de todas as potencialidades económicas da terra, para que jamais em tempo algum seja quem for tenha que emigrar por necessidade. A emigração há-de tornar-se um acto de vontade e nunca um acto de desesperada necessidade.
Este terá de ser o nosso processo revolucionário. Fora deste esquema, as revoluções não passam de formas utópicas mais ou menos disfarçadas do domínio do homem pelo homem. Porque este domínio existe quer se trate de mando económico quer se trate de mando político.
Eu tanto sou dominado quando tenho que pedir para comer como quando me prendem por terem medo da liberdade que cinicamente me concederam.
Temos que deixar de ser marionetas de interesses alheios.
Deixem-nos viver. Sermos nós próprios e não imagens pálidas e macaqueadas de seres distantes e estranhos.
O Victor Cruz queixa-se que a cela cheira imenso a bafio. Neste aspecto a minha teimosa constipação tem-me ajudado imenso.
Longos trabalhos nos esperam. Dissenções e contendas nos hão-de separar. Mas estou convencido que aquilo que nos separar agora alguma vez nos há-de juntar mais tarde. Irmãos seremos sempre em Ponta Delgada, em Fall River, em S. Leandro ou Toronto.
Ontem à noite disse algumas palavras amargas ao aspirante d'Artagnan que é do Pico. Espero que ele tenha sentido, na sua carne, a dor que todos estes padecimentos nos causam. Para que não esqueça ele a afronta. Muitos na cela não gostaram do que eu disse. Talvez o considerem inoportuno. Mas, até hoje, nunca me movi por critérios de oportunidade ou oportunismo. Acho que o agir do homem deve assentar nas traves mestras da filosofia da vida em que nos integramos. Isso é a estrutura. Ressalvada e respeitada esta, torna-se difícil preocupar-nos com a cor das telhas...
Para que se não esqueça e se não perdoe. Porque eu acredito que a verdade é semente poderosíssima que por mais maltratada, esquecida, triturada, esmagada, escamoteada ou calada há-de sempre germinar com a força incontida do furacão que tudo derruba e não há forças humanas que a dominem.
Paz e amor são dois conceitos e duas sensações que não se concebem num ser único. Para existirem têm que existir aqueles com que possamos viver em paz e aqueles que possamos amar. E tudo vai centrar-se neste campo: tentar evitar que Marte e as Fúrias saiam dos seus templos e derramem o fel das suas existências entre nós.
Que Deus nos dê forças para dominarmos a raiva dos corações sangrados.
Vou lá a baixo. Quero respirar a liberdade, mais de perto.
Pouco tempo afinal, pois d'Artagnan saiu tendo entrado um aspirante de serviço que, segundo as informações que nos trazem de baixo, é boa pessoa, tão boa que nunca o deixaram entrar cá de serviço. Como consequência desta mudança tivemos que “recolher” às celas. O almoço já está encomendado. Ainda não é desta.
A comissão está a deliberar. Oxalá que eles se capacitem de que nem sempre quem tem a força das armas tem a força da razão. Caso contrário quando uma baioneta raciocina, só pode ser convencida por outra. E nesse campo estamos perdidos pois a única força que conhecemos é a da razão.
Voltou o aspirante novo. O tal. O bom. Chamou o José Nuno e o Oliveira. Visitas. Recomeça a rotina. Sinto de novo o tempo correr lento e penosamente. Todos lêem. João Gago ouviu o comunicado do general que foi de novo transmitido. Ficou furioso pois que a sua sugestão foi atendida mas ele está preso!... Os seus lábios já de si estreitos mas desenhados com nitidez e capricho, desapareceram, transformando-lhe a fisionomia normalmente serena num esgar de dor e nervos. Seus olhos, por detrás duns óculos de aros castanhos que sempre traz, brilharam com uma tonalidade estranha.
Vi-o junto à mulher, lá em baixo. Pobre senhora, muito há-de sofrer com tudo isto. Eles têm muitos filhos e, segundo consta, amam-se muito. A mãe do João, a Baronesa da Fonte Bela, vem sempre no seu porte finamente aristocrático, um ar de “finesse” e a frieza de olhar que caracteriza a velha nobreza micaelense. A sua toillete impecável, remata-se nuns brincos muito sóbrios e belos, única jóia que traz, janelas abertas para a que foi uma das maiores fortunas desta terra. Segundo se diz, ela afirmou que o seu lugar era ao lado do filho. Estas atitudes de grande dama são no fundo exemplos a recordar por todas as mulheres açorianas.
11 horas. Duas visitas à cela, inesperadas e agradáveis. Duas pessoas de S. Miguel que já estão há dias à procura de oportunidade para nos visitar. Hoje o aspirante Manteiga (que é de S. Miguel) deixou obviamente a visita. Gilberto Reis e o sr. Lima. Pobres amigos. Suas caras não escondem o desgosto de nos verem nesta desgraçada situação.
Fui lá abaixo. Falei com escrivão Manteiga. Nada consta.
Fala-se já em amanhã! É o ciclo infernal. Estou positivamente arrasado. Não sei quanto tempo mais resistirei. Acabou a hora de visita. Resta esperar pelo almoço
Espera longa e estéril. O Silvério Bispo foi de novo chamado a declarações, na sequência dum misterioso telefonema que o aspirante recebeu e que o Goyanes anunciou nervoso.
Lá fora, João Gago e Tavares de Brum limpam os corredores. São embrulhos e embrulhos de lixo. Conforme o João diz, porque vamos ficar aqui muitos dias: João Gago tem sido o mais pessimista de todos. Julga-se o grande culpado de tudo, o seu desânimo não é porem contagioso, porque ele se fecha num mutismo impressionante mas como veste sempre roupa impecavelmente limpa e passada, disfarça o que a fisionomia deixa transparecer.
13 horas e 15 minutos, o almoço ainda não veio. Será isto sinal de que algo de diferente se passa?
Francisco, o ajudante de pedreiro, ajudou o João a lavar a casa de banho que estava um verdadeiro nojo. Isto é, pois, um modelo de prisão política!...
Fala-se em porcos. Luís Franco tem uma raça nova e já me autorizou a mandar lá as porcas que eu tenho de sociedade com o João, marido da nossa ajudante Isabel.
Ouço carros lá em baixo; deve ser o almoço. E era. Carne. Depois uma pequena discussão com o José Franco sobre a nossa situação em que eu defendi um ponto de vista político jurídico e ele um ponto de vista leigo mas prenhe de razão. Segundo ele estamos presos por vingança.
Passou-se uma boa tarde. Telefonei e falei com todos à excepção de meu Pai e de meu filho Francisco. Até a avó Leonilde que atendeu, falou comigo fazendo, é claro, um pedaço de pranto que deve ter deixado todos nervosos. Minha querida Mãe falou comigo pela primeira vez desde que me encontro nesta situação pavorosa. Estava evidentemente nervosíssima, disfarçando como é seu costume, falou-me para me animar. Minha querida Mãe, como eu lamento que tenhas passado por esta dor. Não tiveste muita sorte com este teu filho. Paciência. Deus que é bom há-de compensar-te sem limites.
Fui telefonar ao tribunal e como a porta interna estava fechada tivemos que ir pela Rua. Tive uma pequena sensação de liberdade enquanto saí daqui e me dirigi ao Tribunal. Neste, falei com o chefe da secretaria que me cumprimentou muito cordialmente, o que me fez muito bem. Também lá encontrei um colega (muito mais velho) cujo nome ainda não retive apesar de lhe ter sido apresentado uma vez em S. Miguel. Ao regressar encontrei Francisco Noronha com os seus óculos verdes com aros doirados (Ray Ban) trouxe-o a reboque para dentro da cadeia, e no pátio foi recebido pelos pares que lá se encontravam.
Victor Cruz confidenciou-me que havia um fenómeno que muito o intrigava. É que ele não tinha percebido quem é que a mãe do Tony Câmara vinha visitar cá dentro uma vez que o filho nunca saía da cela para a receber. Mas que afinal tinha descoberto. Vinha cá visitar a senhora Baronesa da Fonte Bella.
A ironia é fina, sabendo-se que o Tony está cá dentro (e recusa-se a receber visitas seja de quem for). Fui logo levar a piada a D. Graça Câmara e à Baronesa que muito se riram.
A mãe do Tony até veio ao pátio para “dar uma canelada”, no Victor que entretanto, com a corda toda, nos fez rir a bandeiras despregadas. Estou agora na cela onde me vieram anunciar o jantar: bacalhau! Vou-me vestir (a rigor) e descerei para escândalo geral. Espero que isto esteja a acabar breve, pois é impossível eternizar-se uma situação tão desagradável e desconfortante como esta.
Jantámos. Graças à boa vontade do aspirante Manteiga que todos respeitamos por ser humano e educado. É um rapaz muito novo. Quem não soubesse dar-lhe-ia apenas 18 anos. Alto, muito magro, olhar bondoso e andar desengonçado. Vemos nele apenas um conterrâneo e um amigo. Das poucas sensações não desagradáveis que daqui trago é a deste homem. Que Deus o faça um bom açoriano.
Sentamo-nos no pátio em vários sofás de madeira trazidos quase todos pelo diligente Gualberto. Fizemos um círculo e conversámos imenso. Brum obrigou-nos a tomar brandy. Victor Cruz obrigou-me a fazer imitações de Salazar. Oliveira contou anedotas, rimos imenso. E eu fugi para a cela porque é triste vermos tanta alegria e não podermos partilhar dela.
José Franco, coração grande, notou a minha fuga e veio saber se se passava alguma coisa. Ele compreendeu a tristeza que me invadiu súbita e quase inexplicavelmente.
Esta merda não termina! Perdoa-me meu Deus mas eu não posso mais. Isto é superior às forças humanas. Os jornais enchem-se de notícias de que o Governo se debruça sobre nós. O único lenitivo a este isolamento é que o sacrifício de uns tantos teve como resultado o bem de nós todos, no arquipélago.
Sábado 21.
Fui acordado às 6 horas pelo aspirante Manteiga para dar-me a notícia de que iam quatro para S. Miguel: José Franco, Dr. Abel, Goyanes e Luís Índio (pai). Foi um alvoroço incrível: O Dr. Abel declarou logo que só iria se fossem todos. Goyanes disse que trocava o seu lugar por outro.
Todavia eu fiz força para irem todos. Penso que serão mais úteis lá fora do que aqui dentro. Lá foram, ficando de nos comunicar pelo telefone e interposta pessoa se foram na SATA ou avião Militar. Se foram na SATA temos hipóteses de ir na outra SATA. Se foram no militar a coisa é mais grave e então temos de nos convencer que isto é para mais tempo ainda.
Novo aspirante agora com recomendações do aspirante Manteiga. Parece muito boa pessoa. Pelo menos não interfere.
O filho do Luís Índio (o mais novo) regressou do hospital. Vem mais magro. Do muito que contou fixei que faziam telefonemas para o quarto para os provocar, pois ninguém respondia quando se levantava o auscultador. Eles suspeitaram dos indivíduos do MES (enfermeiros, etc.).
Consta, por outro lado que aqui em Angra, ontem ou anteontem, foi espancado um indivíduo do MES.
Visitas: a mulher do Álvaro Monjardino com quem gostei imenso de conversar. Disse-me que o marido também estaria numa lista de indivíduos a serem presos, cá. Porque todos os indivíduos de alguma influência pessoal, tinham que ser presos para acabar com essa influência. É este o tipo de raciocínio diabólico que agora se faz nesta terra. Ao que nós chegámos!
O Senhor Paim que conheço muito bem, também cá esteve. A filha veio da América e traz notícias de que por lá andam todos a mexer-se. Jornais e tudo.
Álvaro Monjardino veio até ao pátio. Identificou-me o colega que vi ontem, o Dr. Osório de Carvalho. O Álvaro telefonou para o meu Pai a saber se precisava de alguma coisa. Notas de nossa conversa:
“Uma Nação em “hold up”. Quando falam comigo levanto os braços e digo: - arrume o seu medo que não estou armado…”
O sol brilha outra vez.
“Oligofrénicos dominam este país!”
Longo comunicado do Conselho da Revolução. Informam de Ponta Delgada que estão presos 3 marinheiros porque os “rádios” que vinham de Lisboa eram primeiro entregues ao Borges Coutinho e só depois é que iam ao Governador Militar. Lindo!
Toca a fogo. Ontem também houve. Chegou a hora do almoço. José Franco telefonou. Chegou bem e vai falar com o general. Depois telefona. Oxalá que sejam frutíferas estas diligências. A minha angústia e a dor de não ver os meus queridos filhos é tão grande que só Deus é que sabe. Sinto ganas de chorar. Aguento-me.
Hoje coube-me a vez de fazer de palhaço para alegrar os meus companheiros de infortúnio. Diziam-nos que iam só quatro porque o avião não levava mais ninguém.
Afinal era tudo mentira. O avião foi só com eles. Estava muita gente no aeroporto, sempre à nossa espera.
Não compreendo nada disso! Não tem lógica! Não é justo!
A primeira heroína: Mimi Rego Costa Carreiro, esposa do Dr. Abel Carreiro, recusou-se a acompanhar o marido para estar connosco e assistir a saída do último dos rapazes! O Dr. Abel concordou; como eu o conhecia mal! Homem com 60 anos. depois de duas semanas na cadeia, desprezou o carinho preciso e merecido da fiel esposa, concordando e animando-a a tratar de nós. Tudo o que eu puder dizer deste casal é pouco. Mimi Carreiro tem o porte esbelto e altivo dos Regos Costas, mantendo os traços de indiscutível beleza física misturados com sintomas duma alma bondosa e superior.
Dentes brancos e perfeitos sempre a descoberto por um insinuante sorriso que cativa. É elegante no vestir e o seu cabelo em agradável e simples corte torna o conjunto aristocraticamente elegante. Num transe difícil como este a sua bravura foi invejável e o seu comportamento heróico e exemplar. Não poderão esquecê-la jamais estes 31 desterrados e presos vítimas do maior crime político-social cometido nos Açores, desde que Portugal nos arrancou do limbo do desconhecimento e nos semeou do sangue lusitano que, precioso, corre em nossa veias.
Custou-me mais - diz ela - o primeiro dia. Enfrentar a prisão, as grades, o degredo. Depois o meu coração habituou-se a estar preso por amor e pelas grades.
Não arredarei pé daqui senão quando sair o último!
O quadrado de céu azul que se vislumbra do pátio foi, há pouco riscado pelo traço
vaporoso dum jacto prateado que cortou a atmosfera rebrilhando. Será um Phantom de voo rasante? Leva-me nessas asas poderosas para longe desta prisão maldita e deixa-me (agonizante que seja), na terra da promissão, onde a liberdade não seja apenas um pretexto para prender os homens!
Aqui na Terceira, começaram grandes manobras de stops à noite! Com oito viaturas fazendo em toda a ilha a revista aos carros que a partir de certa hora circulem. Diz-se que o presidente da Câmara (julgo que será o presidente da comissão administrativa) desabafou junto dos tropas dizendo que se houvessem prendido os 20 da lista nada disso tinha acontecido (pintarem as paredes etc.). A mesma irresponsabilidade louca.
A mesma tolice de Ponta Delgada. Por cada carro revistado um adepto da oposição ao regime. O homem nunca aprende.
Diz-se que o tenente da guarda-fiscal de Ponta Delgada lança uma série de boatos destinados a provocar a confusão entre nós. Pobre homem, que será que ele espera arrancar de quem nada deve à justiça ou à Revolução.
No corredor do rés-do-chão e no pátio, muitas senhoras e cavalheiros visitantes. Esta gente vai perdendo o medo provocado pela ideia estúpida que lançaram antes da nossa chegada e que nos desenhava como facínoras altamente perigosos. E assim vão chegando em autêntica romaria, cujos nomes, por isso mesmo eu já não consigo registar: Sodré, Bettencourt e tantos mais.
Dois dos nossos companheiros, que eu saiba, proibiram as respectivas consortes de cá virem. Um foi o Goyanes; o outro, o Paulo Pacheco de Angra. O primeiro mandou-a regressar a S. Miguel. O último acabou por ceder e hoje teve que apresentar-me a esposa no que tive, evidentemente, imenso prazer. É uma boa senhora, martirizada por esta história e pela nossa degradante situação.
Estive um pedaço sentado com o casal Pavão. A esposa contou-me imensas coisas de S. Miguel, sendo a maior parte delas para me animar. A dar crédito ao que me disse, o Borges Coutinho está à beira de ser preso e encontra-se trancado em casa com os meninos da esquerda extrema, armado das mais bélicas armas de defesa e ataque.
Pobre diabo e pobre louco que transformou S. Miguel num inferno, que o há-de queimar nas labaredas do ódio que ele ateou.
Já sei porque fui preso: porque tenho razão. Preso por ter razão, eis um titulo de –
estalo para um livro de estouro. O Domingos mais novo aparou o bigode que trazia até aqui, como dois dentes de foca terminando desconcertantemente em forma de pata de elefante. Parecia um ser do outro mundo. É um rapaz muito ponderado, pareceu-me provido duma inteligência aguda e bom observador. Até aqui o seu lugar predilecto tem sido a cama! Lê muito, embora essa leitura esteja um pouco desactualizada para a sua idade, pois não deve ter mais que 26 anos. Costuma amarrar o cabelo com um atilho junto do alto da testa como já disse.
Ligo o rádio mas fecho-o imediatamente! Os programas seguem os imperativos do processo histórico, arrasantemente politiqueiros, medíocres e repetitivos. Insuportáveis.
/Mais um dia que passa lento e inútil, fechado nesta pocilga imunda com os mesmos lençóis de há 15 dias.
Roubaram-me da vida os dias, e da alma a alegria.
Criam em meu corpo cansado a revolta do injuriado.
Minha mente já não pensa;
É apenas narrativa e ódio contido.
Poderá o mundo mudar-se, mudando-me nesta levada incrível de arbitrariedade e prepotência?
Não mudo, que não quero virar rinoceronte.
Eu sou eu; como nasci; crescido no desabrochar natural da semente dos que me geraram.
Meus dias passei-os na luta do crescimento, norteado apenas pelo amor humano e seus fins ignotos e distantes, como a liberdade agora.
Pobre de mim se ao crescer assim, traí a natureza!
Pobre de mim que no infinito do ser, ignorei o perigo da dúvida e da incerteza, colei-me à razão e dediquei-lhe o labor diário, como paixão.
Por medo, por loucura ou cobardia.
Mas um dia virá, soberbo e solene em que se porá a lua do desespero e surgirá o sol da esperança.
E então levantarei a cabeça, erguerei o espírito com orgulho e direi bradando aos céus: Valeu!
Valeu a pena!
Li este meu poema na cela 19. Parece terem gostado. Eu gostei pois senti tudo o que disse e li-o com fervorosa sinceridade.
Resolvi beatificar Oliveira (o inocente) que passarei a chamar de beato Oliveira da sagrada família... Ele anda sempre a fazer pregações do tipo religioso, sermões, benzeduras, etc. A esposa foi embora hoje para bem dos dois pois tinha tido um filho na véspera da prisão do marido e estava doentíssima segundo tudo levava a crer. Ele entristeceu imenso nos últimos dias.
Fizemos um jantar de peixe e um serão no pátio, verdadeiramente exemplares. O
sereno da noite com a Lua encoberta estava paradisíaco. Bebi uma cerveja que, com umas gambas, acompanhavam mais um Verão à moda da Terceira com os nossos colegas de martírio à frente da “fiesta”.
Corre o boato de que vão embora dez, amanhã. Já não acredito em nada. Mas sempre é bom uma esperança ainda que frustrada. Ao menos vive-se menos-mal enquanto aquela não morre.
A Flama, O Século Ilustrado, a Vida Mundial trazem longos escritos sobre os Açores, com belíssimas fotografias e péssimas reportagens, semeadas de mentira e loucuras graves. É claro que o abismo que se abriu ou se acentuou entre as duas comunidades (a continental e a insular) é responsável pelas falsas declarações de entidades que deveriam ter mais cuidado no que dizem, pois falam para a história e é feio ficar na história como mentiroso, apesar das estrelas!
O aspirante desta noite é novo. Estava para ser o Gruppen fuhrer S.S. Gama, mas
o capitão Almeida, que é de cá, achou melhor substituí-lo por outro (do Porto) que é muito bom rapaz. Educado e simpático, achei-o parecido com alguém. Julguei que era o Mahatma Ghandi mas o Victor descobriu afinal que ele era a cara chapada do Rei Hussein da Jordânia. E de facto...
De modo que Hussein veio fechar as celas contrariamente ao que ontem o aspirante Manteiga havia praticado. É isto a tropa, falta de método e incompetência mesmo em assuntos de lana caprina como é esta história da prisão.
Mas ainda bem que é assim pois que se fôssemos a usar de rigores ou a suportá-los aqui, esta estadia passaria de purgatório a inferno...
Hoje, como disse, saiu um comunicado do Conselho da Revolução que esteve reunido muitos dias em vários lugares na sua elaboração ou apreciação. É um documento muito importante relativamente ao programa do M.F.A. Considero-o um desenvolvimento cauteloso deste último com fortes concessões à esquerda mas com muito nível, apesar do descalabro económico não permitir tirar dele boas perspectivas para futuro. Soa-me a canto do cisne.
Normalmente um regime implantado revolucionariamente é sempre consequência do anterior derrubado. É bem de ver que o regime do Prof. Marcelo Caetano por inibições próprias, não conseguiu acabar com a escandalosa oligarquia que dominava este pais! Uma corja de privilegiados da fortuna era senhora de tudo. Estava acima da lei, esta era dominada por eles a cujos interesses servia. E não posso deixar de confessar que o que mais me impressionou como estudante de direito, foi precisamente aperceber-me do modo e para quê eram feitas e aplicadas as leis no país. Se havia um sector tecnicamente competentíssimo ao seu serviço do país, também havia um gang de interesses que contrapunha a técnica e a vontade tirânica das suas conveniências.
Mas, como observa Monjardino, não é preciso escaqueirar um país todo para se corrigir isso. E com efeito! Por meios normais também se chega lá, com menos sacrifícios.
Domingo 22.
Acordei com o primeiro raio de sol. Tenho a nítida sensação de que não sairei daqui tão cedo. Não nos levarão senão quando quiserem e se quiserem. As esperanças vãs esvaíram-se como fumo.
Li as entrevistas de Mota Amaral e Pedro da Silveira ao Século Ilustrado. Como é engraçado notar que estes ilustres personagens do tablado político e jornalístico estão a repetir aquilo que nós temos estado a pregar há quase dois anos e que nos trouxe à cadeia.
Quiseram um pretexto para nos prenderem agora libertam-nos se quiserem e quando quiserem.
Sinto lá fora alguém trabalhar em obras de limpeza. Terá sido o carcereiro que teve um rebate de consciência e resolveu trazer uma contribuição às condições sanitárias do presídio?
Ontem falei com ele, aproveitando o facto de ter sido chamado para nos trocar a roupa de cama. Um lençol e bem bom! Substitui-se o debaixo que estava mais enxovalhado. Disse-lhe da injustiça da nossa situação e do pavoroso processo usado para nos prender. Julgo tê-lo visto quebrar um pouco o seu facies barbado e frio como o aço cortante.
Contou-me que os presos que daqui saíram para o 17 estavam em condições terríveis, sem acomodações e comendo nos primeiros dias sem talheres nem nada!
Fiz-lhe ver que não tínhamos culpa de nada disso e embora o cepticismo dele fosse patente, acredito que a boa palavra sempre germina e talvez um dia nos faça justiça! Ele e os outros!...
Lá fora, o dia nasce radioso. Canta o galo e os pardais chilreiam no pátio. As garças com o seu pio agoirento pairam sobre a prisão. Garças em terra tempestade no mar...pelo menos no mar das nossas vidas.
Levanto-me e posto-me perante a janela gradeada da cela. Como é triste ver o mundo de entre os ferros duma prisão.
Mais um dia correrá lento e triste na minha vida. Deus já não me acode. Não mereço. Senhor Santo Cristo dos Milagres valei-me. Acode a súplica do maior pecador dos Teus servos. Leva-me para junto dos meus que tanto amo. Eu prometo levar na tua procissão o peso do meu Alfredinho em velas. Pesa-me Senhor por vos ter ofendido. Ajuda-me nesta aflição.
Somos agora 5 na cela. O Luís Índio (filho) veio da 19 para cá afim de dar lugar ao irmão e o Victor Cruz tirou a outra cama cá de dentro, ficando assim a cela mais descongestionada e menos bafienta.
Sinto vozes lá fora. Ferrolhos que se correm. Vozes. Passos. Silêncio.
Ontem resolvemos limpar o lixo que estava no pátio. Os mentores da operação de “limpeza” foram o Sr. José Silvério Bispo, o João Gago da Câmara e o Gualberto Borges Cabral. Meteram tudo em sacos e latas e nós depois fomos dar uma ajuda transportando tudo para a rua donde a camioneta da Câmara os recolheria às 19.30.
Levei sacos e latas. Ao menos no fim de cada bocado eu fui à rua respirar liberdade. Mas não deixei de considerar a minha figura levando lixo de casa. Ao que cheguei, Meu Deus. O que não terei de fazer para esquecer isto!? Como diria a poetisa Natália Correia depois de depor como testemunha num tribunal plenário da Boa Hora, em Lisboa…
Depois do pequeno-almoço fui lavar a minha roupa cujo stock limpo terminou ontem à noite. Estive na pia do pátio: foram lenços, peúgas e camisas. Já lá está tudo a secar em dois fios.
Depois estive com o sr. José Bispo a esguichar água e lavando o pátio que estava uma pocilga de pó e ainda com muita mosca. Fiquei com os sapatos sujos.
Antes, na cela, houve alguém que me tirou 2 ou 3 fotografias.
O José Joaquim Vaz Monteiro de Vasconcelos Franco telefonou à mulher do João Gago. Diz que esteve reunido com o general e a comissão de inquérito e que devemos seguir, parte hoje e outra parte depois. É claro que já não acredito em nada e ninguém, muito menos neles. O espírito colonial-fascista mantém-se vivo naquela gente com toda a sua baixeza moral e truques anti humanos. Tudo na mira de dominar. E mandar.
Cerca das 11 horas, Paulo Pacheco fica livre embora com residência fixa nesta ilha, facto de que tomou conhecimento por escrito.
Os restantes da Terceira ficaram nervosos e abatidos. Estive a animá-los que é a única coisa que se pode agora fazer.
Fui chamado lá abaixo. Meu cunhado José Maria e a Susana: casaram ontem pelo civil. Vão à América em viagem de núpcias paga pela SATA. Por ele soube notícias de casa. Minha mulher está, é claro, muito abalada com tudo isto, além de ter ficado chocadíssima com a cena da minha prisão-rapto. Deus há-de dar-lhe as forças de que precisa.
A esposa do Goyanes foi visitá-la. Deus a abençoe. Também esteve lá em casa o Padre Dr. Veber que era meu amigo antes do 25 de Abril e continua, ao que penso.
Oxalá que a sua estrutura não seja abalada por esta minha situação. Nunca me hei-de esquecer das cenas de terror que ele me contava por ter sido chamado a PIDE para depor. Então se ele fosse preso como eu fui, tinha morrido pela certa. Minha mulher ficou com a ideia de ter sido sujeita a interrogatório. Diz-se que ele visitou as famílias todas.
Meus Pais zangadíssimos. Meu sogro furioso. Enfim o que posso eu fazer? Os papéis para emigrar estão prontos, menos os do Alfredo, meu filho mais novo, que nasceu em Lisboa. Tenho que estar preparado para a eventualidade de ter de emigrar pois não me sinto em segurança cá, nem com garantia de poder educar os meus filhos com um mínimo de liberdade.
Penso por vezes na minha situação. Por que escrevi eu os artigos que foram o primeiro ponto da ridícula acusação que me fazem? Para já nunca defendi a independência dos Açores precisamente porque a independência não se defende. Ou existe ou não. E, no nosso caso, a meu ver, estávamos ainda longe disso. Quando escrevi o que escrevi fi-lo confiado no programa do Movimento das /Forças Armadas que garantia liberdade de expressão “sob qualquer forma”. É como se me tivessem aberto uma porta, convidado a entrar e, depois, me dessem com uma tranca na cabeça! Não esperava isso deles. Um dia hei-de escrever ao Major Melo Antunes e explicar-lhe tudo. Conheci-o antes do 25 de Abril em Ponta Delgada e tive oportunidade de trocar impressões com ele. Julguei-o um verdadeiro democrata, de equilíbrio. Espero portanto que ao menos ele compreenda isto. Eu, por mais esforço que faça, não consigo…
Estamos todos na cela agora à espera do almoço. Conversamos para animar.
Depois do almoço procurei organizar um campeonato de sueca em que a minha participação foi, como habitualmente, desastrosa. Perdi na companhia do Luís Índio Jr .
Hoje temos um novo aspirante. Do continente. E, como resultado, regime especial. Visitas para a rua a partir das 19.30. É de Portimão. Barbas e socialista por convicção social. Tem a pronúncia arrastada do Algarve e barbas à Samora Machel.
Para mim passará a ser chamado Che Guevara.
Fala-se de novo em amanhã. É o amanhã eterno cujos efeitos nervosos são obviamente nulos. A Psico para pretos não produz em nós os mesmos efeitos que nos pré-históricos aborígenes do continente negro. Fala-se em listas. O irmão o José Nuno veio trazer os jornais. Uma entrevista com Álvaro Cunhal que me pareceu um tanto diferente, em conceitos, do último comunicado do M.F.A.
Em franco convívio connosco um furriel de olhos muito claros e muito jovem. É um tanto circunspecto, de qualquer dos modos, mais ouvidos do que boca. Valdemar de Lima Oliveira troca impressões com ele como se fossem amigos de longa data.
Deixou de chover, vou ver se consigo recolher a minha roupa se estiver seca. Chove de novo. É dia ainda... Recolho à cela. Faço a cama e deito-me. No Rádio: marchas de John Filipe Sousa. Um pouco de música que me faça abstrair deste a inferno pode ser uma forma burguesa de alienação mas faz bem.
Telefone do Sr. Silvério Bispo 05 52900. É preciso tentar comunicar com ele para o descansar. Anda enervado. A personalidade irrequieta e sui generis de Luís Soares Guiod de Castro não ajuda nada, com os boatos alarmantes que lhe transmite.
Dizem-nos que vamos partir às 7.30 da manhã. Saem 7: Victor do Carmo Cruz, Aguinaldo, José Nuno, Tavares Brum, Álvaro Pereira Branco Moreira, João Gago e eu. Só acredito quando chegar a S. Miguel. Continuo sem perceber o critério destas escolhas.
DOCUMENTOS
1.-
Excelentíssima Comissão de Inquérito aos Acontecimentos de seis de Junho de mil novecentos e setenta e cinco
Os abaixo assinados já identificados nos autos de inquérito, vêm participar a V.ªs Ex.ªs que na noite de 24 do corrente, pelas, 2 horas, o Aspirante GAMA, em serviço no B.I.l. 17, veio à cadeia de Angra do Heroísmo, fazendo acordar todos os detidos e tratando-os em termos menos correctos, por terem tomado cerveja na cadeia na véspera.
No dia 24 o almoço só foi servido pelas 14 horas e o jantar pelas 16 horas.
A comida do jantar estava já deteriorada e havia sido rejeitada no B.I.I 17 por imprópria para consumo.
Alguns detidos, sofreram intoxicações, e o detido António Nuno Alves da Câmara, teve de recolher ao Hospital para tratamento.
Os abaixo assinados pedem a V.ªs Ex.ªs a adopção de providências imediatas, designadamente, a suspensão do referido aspirante no serviço da cadeia e a instauração do competente processo para averiguação de responsabilidades.
Esperam deferimento.
Ponta Delgada, 25 de Junho de 1975.
TESTEMUNJ1AS QUE. FIZERAM CHEGAR ESTES FACTOS AO CONHECIMENTO DOS SIGNATÁRIOS:
1." - Nuno Vasco Cabral da Câmara, pai de um dos detidos.
2.° - D.ª Fátima Oliveira, esposa de um dos detidos, ambos presentemente em Angra do Heroísmo.
2.-
Excelentíssimo Senhor Presidente da Comissão de Averiguação de Violências sobre Presos sujeitos às Autoridades Militares
LISBOA
Carlos Eduardo da Silva Melo Bento, casado, advogado, residente na Rua da Cruz, n." 49, Ponta Delgada, São Miguel - Açores, leva ao conhecimento de V.ª Ex.ª que
1.º
No dia 9 de Junho de 1975 pelas 2 horas e 30 minutos da Madrugada, noite escura, 4 militares fardados e com as armas engatilhadas e prontas a disparar, entraram em sua casa, sem que para tal os tivesse autorizado (art.º 301 do Código do Processo Penal, aplicável por força do disposto no art.º 414 e seguintes do Código de Justiça Militar).
2.º
Seguidamente, deram-lhe ordem, em nome de Altino Pinto de Magalhães, general, para os acompanhar ao Comando Militar dos Açores.
3.º
Porque estava em pijamas, dirigiu-se ao quarto de cama para se vestir e, qual não foi o seu espanto, os ditos, militares apontando-lhe as armas seguiram-no.
4.º
Sua mulher, deitada na cama, chorava. Seus 4 filhos de 9, 8 , 7 e 4 anos de idade também ali dormiam.
5. º
Foi seguidamente levado para um carro de combate e, na Rua, marinheiros armados também o aguardaram e ameaçaram com armas de fogo.
6.º
Foi então levado para bordo dum barco português e conduzido à cadeia de Angra juntamente com 34 companheiros de desdita.
7.º
Entretanto, o telefone da sua casa foi cortado conforme o informou o eng.º director dos C.T.T. também por ordem do mesmo oficial general e através dum oficial da Marinha portuguesa.
8.º
Logo a segui, ao seu rapto, feito fora da hora legal e sem cumprimento das formalidades legais, em casa do Dr. António Borges Coutinho que fica em frente da sua, uma turba de rufiões cujo nome só esse senhor, agora residente em Lisboa, poderá fornecer a essa Comissão, ameaçou sua pobre mulher com pistolas e espingardas de caça, atormentando-a, pois ela estava incomunicável.
9.º
Por outro lado, em Angra do Heroísmo, na cadeia de Angra fomos todos mantidos incomunicáveis; o comandante do B.I.I; 17 não foi à Cadeia uma única vez inteirar-se da nossa situação. Aqui foi-nos expressamente negada sempre a assistência religiosa (Sua Excelência Reverendíssima o Senhor Bispo Coadjutor do Bispo dos Açores confirmou mais tarde que as autoridades militares não autorizaram a visita dum sacerdote por ele enviado).
/10.º
Foi-nos negada a assistência judiciária, tendo sido interrogado sem que me tosse permitido a assistência de advogado (pois que apesar de o ser não estava em condições de me assistir).
11.º
Fui sujeito a tratamentos cruéis, desumanos e degradantes da pessoa humana; com efeito, fui obrigado a dormir com a mesma roupa de cama do preso sujeito ao foro civil, que me antecedeu na cela, durante os 15 dias em que fui mantido sem culpa formada e arbitrariamente sob prisão. E isto, apesar dessa roupa estar completamente suja e nauseabunda.
12.-º
A luz da cela foi mantida acesa durante quase todas as noites em que lá dormi não havendo interruptor dentro da cela.
13.º
As refeições eram servidas sem as mínimas condições de higiene com os pratos mal lavados, as pessoas que nos serviam à mesa com as mãos incrivelmente sujas e a sala de jantar não era varrida, juntando imensas moscas que tudo conspurcavam.
14.º
As refeições eram servidas muitas vezes às 15 horas (o almoço) e às 18,30, (o jantar), pelo que, que famintos para o almoço pouco podíamos comer ao jantar por não termos fome.
15.º
Foram-nos sistematicamente negadas as duas horas de sol que os regulamentos prisionais permitem e as condições de cadeia justificavam plenamente, por incúria e desleixo ou malvadez dos oficiais ou aspirantes de serviço.
16.º
Entres estes sobressaiu pela sua medíocre malvadez o aspirante Gama que requintava em proibir as conversas à mesa, mesmo depois de termos sido inquiridos e já nada justificar o isolamento inicial.
17.º
E perguntou a certa altura se os cães já tinham comido. Os cães éramos nós.
18.º
Por seu turno, o Comodoro Manuel Ricou disse-me que autorizava telefonemas para casa a fim de informar a família do nosso estado.
19.º
Esses telefonemas foram sistematicamente negados durante a prisão só tendo podido fazer dois. Um da casa do carcereiro que fica no próprio edifício da Cadeia e outro no Tribunal. Todos os telefonemas que sua Mulher fez para si não chegaram ao seu conhecimento.
20.º
Por outro lado, o papel selado que me fora enviado do escritório para assinar a fim de requerer justificações de faltas em julgamentos e outros actos processuais, ficou por incúria, desleixo ou má fé, já assinado, na cadeia durante oito dias, pois que o referido Comodoro me chamou à sua presença num domingo para mo entregar em branco e só na 2.ª feira seguinte ele foi enviado para S. Miguel, isto apesar da insistência com que pedi o seu despacho.
21.º
Finalmente, ao ser ouvido pela comissão de inquérito fui inquirido por 6 ou 7 oficiais portugueses continentais que em nome do referido general Pinto de Magalhães me acusaram de:
a) Participar numa manifestação não autorizada no dia 7 de Junho pelas 11 horas, frente ao Q. G. de Ponta Delgada.
b) De ter escrito na imprensa artigos a favor de Independência dos Açores
22.º
Nenhuma dessas acusações (a ser verdadeira) poderia justificar o foro militar ou justificar uma prisão fora do flagrante delito ou sem mandato judicial. A prisão foi assim, além de ilegal, arbitrária.
23.º
O requerente que era professor da Escola Técnica de Ponta Delgada perdeu o vencimento dos dias em que o tiveram preso.
Resumo e conclusões:
1.- O participante foi vítima duma prisão ilegal e arbitrária;
2. - O participante no acto da prisão foi sujeito a violências ilegais tais como violação do domicílio e ameaça com arma de fogo.
3.- No acto da prisão, mesmo a admitir (o que se não faz) o foro militar, foi frontalmente violado o Código de Justiça Militar nos seus artigos 413 e seguintes.
4.- A prisão prolongou-se para além dos prazos máximos admissíveis em direito para os casos da detenção sem culpa formada e fora do flagrante delito.
5.- Durante a prisão, o requerente foi vítima de tratamento desumano e degradante da pessoa humana (falta de assistência religiosa e um mínimo de condições de higiene e foi insultado).
6.- O requerente não teve direito a assistência judiciária.
7.- O requerente foi sujeito à tortura da luz e do desencontro das horas de refeição e falta de horas de sol.
8. Os interesses profissionais do requerente foram indesculpavelmente descurados pelos seus carcereiros.
9. Sua Mulher foi ameaçada com armas de fogo a seguir à prisão do requerente, por civis, a coberto das autoridades militares.
10. O telefone da casa do requerente foi desligado ilegalmente durante 2 horas.
11. Acresce a tudo isto que, quer as prisões quer a forma ilegal como foram efectuadas, eram inúteis do ponto de vista da segurança e cautela, uma vez que numa ilha pequena como esta nem sequer há possibilidade de fuga.
12. Por esse motivo, o prestígio militar ficou gravemente abalado visto que as prisões foram consideradas por toda a população como uma prova de medo e de cobardia indesculpáveis a quem enverga uma farda.
Com base no exposto, requer-se a inquirição das seguintes testemunhas e, uma vez provado o atrás afirmado, o castigo dos responsáveis e executantes com o devido procedimento criminal em foro civil ou militar conforme o caso.
Testemunhas
Manuel Correia Bettencourt, solteiro, empregado industrial, residente na Rua João do Rego de cima, Ponta Delgada (à matéria dos artigos 1, 5 e 8);
Bruno Tavares Carreiro, casado, funcionário bancário, residente na Rua Dr. Bruno Carreiro, Ponta Delgada, a ser inquirido à matéria dos artigos 6,9, 11, 12 a 20.
Victor Cruz, casado, funcionário do Consulado Americano, residente na Rua Coronel Chaves de Ponta Delgada (deve ser inquirido à matéria dos artigos anteriores).
D. Aurélio Granada Escudeiro, Bispo Coadjutor do Bispo dos Açores a ouvir à matéria do art.° 9º.
Eng.º Marques Paz, Director dos C.T.T. de Ponta Delgada em cujo edifício reside (artigo 7º desta petição).
Requer-se a junção a estes autos do documento (para prova da matéria referida no artigo 2) que me foi exibido, ordenando-me a comparência no Comando Militar e que está em posse do Governo Militar e deve estar assinado pelo general Pinto de Magalhães (artigo 131 do Código do Processo Civil aplicável por força do artigo 440 do Código de Justiça Militar).
Requer-se a junção a estes autos dos pontos de acusação que lhe foram formulados e que constam do processo de inquérito aos acontecimentos de seis de Junho de 1975, o qual no Comando Territorial Independente dos Açores, Quartel General, 2ª Repartição, tomou o n.º 2.21. O requerido fundamenta-se nas mesmas disposições legais que o anterior. Não se junta certidão por o requerente ter sido informado verbalmente que o processo não se encontra nos Açores.
Ponta Delgada, 5 de Fevereiro de 1976
3.-
S.R.
ESTADO-MAIOR DO EXÉ R C I T O
GABINETE DO CEME
EXMº. SENHOR
DR. CARLOS MELO BENTO
RUA DA CRUZ Nº. 49
PONTA DELGADA
AÇORES
Cumpre-me comunicar que, por despacho do Exmo. General CEME de 12 do corrente e ao abrigo do disposto nos arts. 221 al. c), 360 nº 2 e 361nº 1 al. i) do C. J. Militar, foi mandado arquivar o processo instaurado por queixa de V. Exª. contra o General ALTINO DE MAGALHÃES.
Com os melhores cumprimentos.
O CHEFE DO GABINETE DO CEME
RICARDO GALIANO TAVARES
BRIG.
4.-
SENHOR CHEFE DE ESTADO MAIOR
DO EXÉRCITO
EXCELÊNCIA
Tendo o signatário sido notificado por carta do Chefe de Gabinete de V.ª Ex.ª , Coronel Galiano Tavares, de que tinha sido arquivado o processo instaurado por sua queixa contra o general Altino de Magalhães, vem expor e solicitar o que segue:
1.º - O artigo 361 do Código de Justiça Militar manda que o despacho que foi notificado ao signatário seja fundamentado;
2.º - O conhecimento dessa fundamentação torna-se, porém, essencial para que o requerente aprecie as razões porque a violação do Código de Justiça Militar de que foi vítima, fique impune e, decidir ou não, consequentemente, recorrer para as instâncias superiores.
3º. – Pelo exposto, requer que lhe seja notificado o teor do despacho em apreço, nos termos do preâmbulo do artigo 361 do Código de Justiça Militar.
Espera deferimento em Justiça
Ponta Delgada, 3 de Janeiro de 1978
Carlos Eduardo da Silva Melo Bento
5.-
S.R.
MINISTÉRIO DO EXÉRCITO
ESTADO-MAIOR DO EXÉ R C I T O
. REPARTIÇÃO
Telegramas Telefone 86 71 11
GABINETE DE CEME
EXMº. SENHOR
DR. CARLOS MELO BENTO
RUA DA CRUZ Nº. 49
PONTA DELGADA
AÇORES
Sua referência Sua comunicação de Nossa referência Rua Museu de Artilharia 2 Portugal
1979 727 Pº. 03.09.110
ASSUNTO.
*;*;*;*;*;*;*;*;*;;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;
Cumpre-me informar que, nada havendo a acrescentar à minha comunicação de 14DEZ78, Sua Exª. o General CEME determinou o arquivamento do requerimento de V. Exª. datado de 03JAN79.
Com os melhores cumprimentos.
O CHEFE DO GABINETE DO CEME
RICARDO GALIANO TAVARES
BRIG.
14/MF
25.01
6.-
COMANDO TERRITORIAL INDEPENDENTE D05 AÇORES
QUARTEL GENERAL
2ª. REP
Exmº. Senhor Dr. Carlos E. da Silva
Melo Bento
Ass. LEVANTAMENTO DE RESTRIÇÕES DE SAÍDA
Encarrega-me Sua Excelência o General Comandante-chefe dos Açores, de informar V. Exª. que desde esta data lhe foram levantadas as restrições de saída, imposta (sic) após a sua detenção operada em consequência dos acontecimentos de 06JNU75.
Com os melhores cumprimentos,
O CHEFE DE ESTADO MAIOR/QG/CCA
AUGUSTO JORGE DA SILVEIRA REIS
TEN.COR.INFª./c/CCEM
7.-
COMANDO TERRITORIAL INDEPENDENTE D05 AÇORES
QUARTEL GENERAL
2ª. REPARTIÇÃO
NOTA Nº. 27 Pº. 2.?1 P. DELGADA 12-1-76
AO SENHOR Dr. Carlos E. da Silva Melo Bento
ASSUNTO: DESPACHO DO INQUÉRITO AOS ACONTECIMENTOS DE 06JUN75.
Encarrega-me Sua Exª. o Brigadeiro Comandante Militar dos Açores, de informar V. Exª. que o processo de inquérito aos acontecimentos de 6 de Junho de 1975 em Ponta Delgada, mereceu de Sua Exª. o Primeiro Ministro o seguinte despacho:
“Arquive-se por insuficiência de Provas”.
Com os melhores cumprimentos,
O CEM/QG/CTIA
AUGUSTO JORGE DA SILVEIRA REIS
TEN.COR.INFª./c/CCEM
[1] Dr. José Maria Caetano de Matos, médico e pianista de mérito. Ponta Delgada dedicou-lhe uma Rua com o seu nome e como “médico dos pobres”.
Estou “só”, desde que para aqui vim. O quarto onde me meteram, tem 3 passos de largura por cinco de longo, húmido (a minha constipação e o defluxo aumentaram) recebe 30 cm de sol durante umas duas horas da parte da manhã. Sempre gostava de saber qual foi o sábio arquitecto que projectou esta prisão, bastante moderna aliás, pois nem deve ter sequer dez anos... As pessoas apodrecem aqui dentro lentamente.
Sente-se a humidade penetrar nos ossos. O chão é de mosaico fino; a janela deve ter um metro de largura por 1,25 de altura, tem uma parte central com duas filas de vidros fixos a meio e uma tira de vidros, superior e inferior, em basculante, única forma de arejamento palpável! No parapeito interno 5 barras grossas de ferro cruzadas por 5 réguas de ferro transversais.
A cama é de ferro (penso que como as de campanha) pintada de cinzento. Dois colchões duros, dois lençóis de limpeza e alvura desvirginadas, uma almofada cuja fronha não a cobre completamente o que a faz assemelhar-se ridiculamente, a alguém vestido por alma.
Duas cadeiras pesadas, uma mesinha tosca com o lado da frente escanicado por trabalhos de faca ou canivete e com vestígios ligeiros de ter sido, outrora, envernizada.
No canto superior direito da sela junto da janela, um armário triangular. Do mesmo lado, mas junto à porta cinzenta e remendada, uma bacia de porcelana que já deve ter sido branca, embutida em cimento e adornada com restos de sabão, molas, pregos, um copo cor de laranja escuro (que está virado para baixo desde que cheguei) e um resto de pasta «Colgate» deixado por milagre pelo meu antecessor, pois tinha-me esquecido da minha!
Como disse, a porta está remendada. Parece que o ocupante da cela antes de mim, tentou evadir-se rebentando com a faixa de madeira. Como eu percebo os seus sentimentos! Um pequeno cabide duplo niquelado, toscamente pregado à porta, tem-me servido para nele pendurar o meu sobretudo azul que muito me tem servido nesta fria encarceração injusta a que a cegueira política me condenou. Os seus serviços foram inestimáveis, principalmente na primeira noite. As paredes da cela n.º 5 são porém a parte mais folclórica de todo este bloco irrespirável de cimento armado. Como disse, esta cadeia foi transformada em presídio militar antes de para cá virmos. Ora, os pobres dos presos que nos antecederam foram transferidos à pressa para o comando militar pois que este, ao que dizem, não tinha condições para nos “receber”.
Na pressa da retirada, deixaram ficar atrás alguns dos seus pertences, entre eles, o bilhete de identidade, amarrotado e esquecido dentro de um livro de geometria. Diz o bilhete de identidade que o seu portador se chama José Gaspar Fernandes da Rocha, natural de S. Mateus da Calheta, Angra do Heroísmo e vai fazer 30 anos em 10-12-76. Eu tenho 33 e faço este ano em 17-12-76, 34. Espero não me esquecer quando sair daqui (e se sair) de lhe pagar a “Colgate” que tive de usar e pedir-lhe desculpa pelos incómodos que a minha incrível prisão veio provocar-lhe. Faço questão disso, pois quero que o rapaz não me odeie por facto a que sou alheio completamente.
Mas, para além desse plastificado meio de identificação, o José Gaspar havia coberto as paredes da cela com recortes mais ou menos pornográficos ou núdicos além de, para cúmulo da ironia, uma conhecida anedota ilustrada do Professor Marcelo Caetano e os seus companheiros de exílio, na Madeira, da autoria dum tal Baltazar.
Junto da porta e apontando para ela um cowboy a cavalo, disparando o seu colt, ao mesmo tempo que ostenta, ao peito, a estrela de sheriff.
Este turbilhão de motivos que José Gaspar contemplou diariamente no seu húmido cárcere (e eu agora) deixei-o intacto para não criar nele ideias torpes a meu respeito. Aliás trata-se da sua propriedade privada que não quero desrespeitar seja por que motivo for.
Apenas tapei com as toalhas que ontem me chegaram de casa (como deve andar preocupada a minha querida mulher) uma história em quadradinhos que culmina numa orgia e num pedido de divórcio da autoria de P. Dranley, por ofender absolutamente os meus conceitos éticos religiosos.
Na mesinha onde escrevo, encontrei dois livros de inglês (2.º e 3.º anos), um de geometria, um sobre a história do papel (ambos relativamente fracos e com citações de Salazar...), 2 livros de frei Boaventura, O.F.M. brasileiro intitulados “Livro Negro da Evocação dos Espíritos” e “Posição Católica Perante A UMBANDA”, ambos em terceira edição. Um da série Tio Patinhas e outro “O Comércio”.
Era Domingo à noite, deitara-me fatigado e contrariado pois o meu clube de futebol ( o Micaelense Futebol Clube) perdera por 3-0 na Lagoa, descendo assim um degrau mais para a 2.ª divisão. De resto, tinha que dar aulas na Escola Técnica às oito da manhã e tínhamos que ir cedo para a cama.
Havia chegado de Lisboa, neste dia, a minha afilhada Sandra que fôramos buscar ao aeroporto, entretanto completamente cercado de tropa, pois o nervosismo entre os militares era nesse dia indescritível e inexplicável. Os miúdos dormiam cedo.
Cerca das três da madrugada senti um batuque à porta, estranho e insistente. Levantei-me de pijamas, alertei minha querida mulher que julgo não ter percebido o que se passou e fui até à porta. Vislumbrei da janela da sala, de passagem, a silhueta até então agradável, de marinheiros e soldados de Portugal, em atitude bélica. Seriam talvez uns dez, ao que me pareceu, fortemente armados.
Abri a porta e vi entrar um furriel músico micaelense, acompanhado por dois soldados de espingardas engatilhadas. Os sentimentos de dor, a confusão de espírito, a angústia e a repulsa que tal gesto me provocou não os saberei jamais descrever.
Pedi que entrassem. Mostrou-me um papel dactilografado em que a minha comparência era pedida no Comando. Fui-me vestir. Eles subiram as escadas até ao meu quarto de cama. Só pedia a Deus que as crianças não acordassem para não verem o triste espectáculo da prisão de um pai que tanto os ama. Na minha vida de advogado tenho assistido a cenas de prisão mais ou menos trágicas. Nunca porém, vi entrar uma força de armas tão grande para prender um cidadão pacífico e só, rodeado da mulher e 4 crianças, das quais a mais velha tem 9 anos. Um simples telefonema, mesmo a essa hora, ter-me-ia levado ao mesmo lugar. Nunca desobedeci às autoridades do meu Pais e não era agora que ia começar.
Beijei minha mulher. O seu estado de espírito calculará qualquer esposa e mãe. As suas últimas palavras sangraram-me o coração: «Não quero ficar aqui sozinha». E eu sem poder valer-lhe. Trouxe a máquina de barbear a conselho do meu captor. Pu-la dentro do estojo com a escova de dentes e sabonete. Vesti o meu fato escuro e trouxe à, cautela, o sobretudo.
Meteram-me num jipão guardado por tropa e levaram-me para a doca.
A caminho, no cruzamento da Rua da Cruz com a do Marquês, vislumbrei uma cara amiga: Correia Bettencourt. O seu rosto perplexo jamais esquecerei. Ele não compreendia nem eu!
No porto artificial de Ponta Delgada, uma força armada da guarda-fiscal, tropa e marinha. Vozes, corridas, levantam a barreira. Ouvi dizer «o patrulha que sai às 4 horas». Tremi. Pensei nas crianças, nos meus pais e na minha querida mulher. Quando os verei?
Afinal não foi o patrulha: era um navio militar de fiscalização de portos e faróis. Fizeram-me entrar para a sala de jantar. Sentados, vi Bruno Tavares Carreiro. José Franco, Eng.º António Clemente Pereira da Costa Santos, João Manuel Furtado Rodrigues (de Ponta Garça), Victor do Carmo Cruz. Foram depois entrando vários: Luís dos Reis Índio e seus dois filhos, Luís Octávio dos Reis Índio e João Luís Soares dos Reis Índio, Luís Ricardo Vaz Monteiro de Vasconcelos Franco, Dr. Abel da Câmara Carreiro, Manuel Oliveira da Ponte (dono do Armazém Canadá), Regente Agrícola Valdemar de Lima Oliveira, Regente Agrícola Gualberto Borges Cabral, o jornalista Gustavo Manuel Soares Moura, o locutor do “Paralelo 38”, Aguinaldo da Silva Almeida Carneiro. Os irmãos Luís Manuel Duarte Domingues e José Manuel Duarte Domingues, Luís Maria Duarte Moreira e seu filho Álvaro Pereira Branco Moreira, António José de Amaral Dr. José Nuno de Almeida e Sousa; António (Toni) Nuno Alves da Câmara; António Brum de Sousa Dourado (de Vila Franca); o dono do restaurante das Caldeiras, da Ribeira Grande, Manuel da Ponte Tavares Brum; Armando Guilherme Goyanes Machado; João Gago da Câmara e o Eng.º António Manuel Gomes de Menezes.
Animaram-me com palavras boas aquelas santas almas. Onde iam eles buscar aquela calma é que não sei. Por mim, estava lívido e nunca odiei tanto na minha vida.
Riam. Conversavam animadamente. Contavam a sua ventura. Por mim achava incrível que no meu País fosse possível passar por cima da lei que proíbe as prisões em casa, após o pôr-do-sol. Uma prisão é triste. Mas quando é feita de noite toma o aspecto infernal e terrível duma catástrofe. É o sono. São os nervos. São os filhos e a mulher. Tudo junto torna impossível que um espírito verdadeiramente cristão possa ordenar ou executar semelhante monstruosidade!
Faziam-se conjecturas sobre o nosso destino. Uns que iríamos para Caxias. Outros que para outra ilha do Arquipélago.
O comandante do navio chegou entretanto. Acompanhavam-no mais de uma dezena de homens armados. Falou em que não criassem problemas que os já tinham de sobejo e que iríamos para a ilha Terceira por que a nossa integridade física estava em perigo. Quanto ao primeiro ponto não percebi, porque se alguém estava a criar problemas não éramos nos. Quanto ao segundo ninguém acreditou até àquele momento, pelo menos, que tal perigo existisse.
De qualquer dos modos, apercebi-me ali mesmo que o maior disparate político do século estava a ser cometido. Prendiam-se 30 pessoas sérias que eram arrancadas da cama de madrugada, num gesto digno do Marquês de Pombal, para lhes proteger a integridade física! Toda a gente percebeu que se atacavam açorianos por o serem e sem descriminação de culpas ou credos. Se até aquele momento o Açorianismo fora um pretexto para conversas de café, de ali em diante ficaria gravado a fogo nas almas dos 30 da Terceira, dos seus familiares (às centenas) e dos seus amigos (milhares).
Eis como dum disparate acorda um sentimento tão profundo na alma dos povos ou dum povo.
A viagem não podia ter sido pior. Dividiram-nos em três grupos. O nosso foi para a sala dos oficiais. Julgo que não ficou ninguém por vomitar. Por mim cumpri a minha obrigação também. Até a bílis se foi. E mais não era preciso para me transformar dum degredado num desenterrado.
O Sr. Reis Índio tinha pedido para ser transportado de avião pois sofria de doença que o impedia de viajar de barco. O médico de bordo, um rapaz novo, de pêra, magro, com olhar inexperiente e sendo-o pela certa, disse que ele podia viajar perfeitamente; o resultado foi que o Sr. Índio chegou à Terceira a soro e o médico, que segundo dizem enjoou também, não apareceu mais. Julgo que aquele ainda hoje se encontra internado no Hospital na companhia do filho mais novo.
Chegamos à Terceira e fomos entregues a novo “chefe” militar. O comandante do B.I.I. 17.
Tratava-se salvo erro dum Major que nos dirigiu a palavra pedindo que nos não admirássemos do “aparato” militar que nos aguardava, e que iríamos ficar nas instalações prisionais do Palácio da Justiça, quer dizer, na cadeia de Angra.
Já neste edifício pudemos verificar que da Terceira também nos faziam companhia quatro senhores, o Sr. José Silvério Bispo, da Praia da Vitória, um outro senhor da cidade de Angra que agora me não lembro o nome mas que personifica fisicamente a imagem mais generalizada de D. Quixote (tratava-se de Luís Guiod de Castro, com pêra e tudo) e mais dois jovens que não tinha tido a honra de conhecer, antes (tratava-se de Paulo Tadeu Mendes Brum Pacheco e José Manuel Rodrigues dos Santos, este estava ligado à FIAT).
À tarde do dia seguinte, chegaram, de avião, Tomaz Faria Caetano, Fernando Manuel Mont'Alverne de Sequeira e Eduardo José Pereira de Almeida Pavão, comandante da SATA. Pelo Fernando, velho amigo e cliente, neto do maior dos Açorianos, Dr. Gil Mont'Alverne de Sequeira, minha querida Mulher mandou-me uma pequena mala vermelha com roupas e uma fotografia nossa com os miúdos que costumo ter em cima da secretária de trabalho. Por causa dela tive pela primeira vez uma forte comoção que me deixou bastante abalado
O primeiro dia foi amargo como os restantes; estamos guardados de tropa por todos os lados. No cais, uma pequena multidão de curiosos era afastada por vulgar barreira em madeira. Alguns uivaram ao me verem assolar ao portaló; o que não terão dito àquela pobre gente ignorante para fazerem tal figura perante quem estava inocente de qualquer espécie de culpa.
Convidaram-me a entrar num camião militar com capota fechada. A tampa de ferro fechou-se com estridência e o motor roncou forte até às “instalações prisionais”.
Aí, novo ajuntamento. Julgo ter sido o primeiro a sair. Um homem dessa gente que aí se juntou gritou para o ar: “Malandros”. Magoou-me esta expressão. Pensei em Cristo. E apesar da chaga que ainda hoje a lembrança duma tal injúria sobre um farrapo humano que tanto já havia sido torturado física e moralmente, abre, perdoei-lhe do fundo do coração.
Em verdade, aquele pobre diabo não sabia o que fazia ou dizia. Deus pela certa, um dia que o chame a contas, há-de fazer-lhe sentir que são dignos de dó os que sofrem a crueldade duma perseguição odiosa e injusta. Os homens nunca aprendem. Mas, enfim, tratar-se-ia dum boçal. Que dizer então dos “ilustrados” que nos faziam passar por aquilo?
Entrei na prisão e o meu coração parou por segundos. Sempre é verdade que a voz do povo é a voz de Deus “na cadeia e no hospital, todos nós temos um lugar”.
Enfim, chegou a minha vez. Cabeça levantada mas com a alma sangrando. Os soldados, já se sabe, rapazes novos, olhavam-nos mais com curiosidade do que com qualquer outro sentimento. O que me trouxe à cela era de S. Miguel; mais precisamente de Vila Franca.
- O senhor não me conhece? Perguntou-me, sempre a fitar-me com os olhos muito pequenos e pretos. - Claro que te conheço, disse eu, sem mais uma palavra. Entrei; a porta fechou pesada sobre mim; os gonzos pesados, guincharam imenso e dentro da cela dir-se-ia que todos os ferros do mundo batiam uns nos outros. Depois, a fechadura pesada deu duas voltas sobre si, movida pela mão do carcereiro da prisão que, arrastando os pés, por lá ficara dando instrução, aos novos senhores do presídio civil agora “graduado” em prisão política militar!
A minha primeira acção foi, quando me vi só, ajoelhar-me e rezar. Rezei muito e depressa, tão depressa que penso que Deus pouco há-de ter ouvido de minhas preces…
De resto, ai de mim se não fora a oração. Rezei sempre esses dias de triste e infame cativeiro. As horas passei-as lendo e rezando. Dando voltas incontáveis nessa cela. Lembrei-me de el-rei D. Afonso VI que aqui viveu degredado. Comigo a diferença era não ser rei e não me chamar Afonso. De resto esse rei foi um louco e a minha única loucura tem sido amar a minha terra.
Nesse dia almoçámos muito tarde, no corredor do rés-do-chão onde se encontrava uma mesa com talheres e pratos com carne e batatas fritas. Tudo muito frio e dessaboroso. A carne intragável, as batatas sem tempero. Compará-las às da cervejaria Melo Abreu seria comparar uma escultura de Miguel Ângelo a outra de Picasso… do último período!
Comi muito pouco até porque o estômago com todo o esforço de vomitar a bordo encontrava-se em estado caótico. Um dos meus colegas de degredo e prisão aconselhou-me a comer mais pois provavelmente não comeríamos mais nesse dia.
De facto, isso ia acontecer comigo. Deitei-me cheio de frio, cobri-me com o sobretudo (o casaco já o tinha) e quando, com o habitual barulho de gonzos e fechadura, o oficial me foi chamar para o jantar, respondi-lhe que não jantaria.
Acordei na terça-feira, ontem, relativamente bem disposto. Lavei-me, fiz a cama: lavei o lenço (o único que até aí pudera utilizar apesar de constipado!) e aguardei o pequeno-almoço que foi servido na cela: uma taça metálica com um dedal de café com leite e um quarto de pão com manteiga. A porta fora aberta por soldados assustados, de largos olhos arregalados de espanto e metralhadoras aperradas.
O pão guardei-o na gaveta da mesinha para o caso do almoço não vir a horas, o que de facto aconteceu. E, nessa altura, até me pareceu massa amassada por anjos!
Ao almoço, soube-se com certo alvoroço que a comissão de inquérito estava já a funcionar, presidida pelo comandante naval do Arquipélago, em pessoa! O mesmo que meses atrás havia impedido a minha vinda à Terceira como Presidente do Micaelense Futebol Clube, publicando a notícia no Jornal Açores e cujo director (agora preso comigo) me informara previamente disso.
Foi ouvido em primeiro lugar o Eng.º Costa Santos. Ouviram-me em segundo. Fui levado ao comando por um aspirante que à saída da prisão houve por bem carregar ostensivamente a pistola talvez para me lembrar que a força das armas era a única que ele conhecia, já que fisicamente não seria propriamente um Hércules e da força da lei (que para mim é tudo) ele só deveria ter ouvido falar vagamente e de passagem. Não me recordo bem ao certo mas parece-me ter ouvido dizer que era estudante de engenharia (!) e do continente.
Cheguei ao Comando Militar, instalado no antigo palácio dos Governadores Generais dos Açores. Ao ser levado à presença da comissão, fui-me lembrando dos três presidentes que se reuniram nesse mesmo palácio alguns meses atrás.
Nixon renunciara, o senhor. Prof. Marcello Caetano deposto e Pompidou morto. Não era realmente um lugar de bom augúrio. Resta saber agora sobre quem recairá o enguiço, se sobre nós, se sobre a comissão de inquérito... Mandou-me o presidente sentar num velho maple onde me enterrei quanto pude saboreando esses 3 minutos que me deram de relativa liberdade.
À minha frente 5 oficiais: 2 da marinha, 2 do exército e 1 da aviação. O relator leu-me os pontos de acusação ou suspeita: ter escrito artigos a favor da independência dos Açores e ter participado numa manifestação no dia 8 (Domingo), de Junho do corrente 1975.
Quanto ao primeiro ponto neguei obviamente pois toda a gente sabe que até hoje apenas defendia a autonomia tradicional embora ampliada. De resto, não escrevendo eu há 8 meses estranhei a demora que tiveram em perceber os meus artigos.
Quanto ao segundo, unicamente no dia 7, Sábado, fui até ao quartel general, a convite dum cliente, ouvir a resposta do general à comissão de lavradores que este tinha recebido juntamente com um advogado, Dr. Abel Carreiro, hoje internado aqui connosco.
O resto das perguntas e respostas giraram à volta de assuntos fora do questionário ordenado, a que não me recusei a responder: a FLA, a minha antipatia por oficiais continentais e outros assuntos de igual interesse.
Numa das respostas que dei ao oficial de marinha tive de lhe chamar a atenção para a distinção que ele fazia entre o País e os Açores facto que não deixou a comissão bem disposta.
Regressei à cadeia pela mesma via e viatura, etc., à excepção do condutor e do aspirante que segundo julgo seriam outros.
Seguiu-se no interrogatório Victor Cruz (filho), funcionário do Consulado Americano. Quando voltou vinha branco. Pelos vistos fizeram-lhe as perguntas mais disparatadas possíveis e ele ficou desapontado.
Que se saiba já foram ouvidos, além desses, o Dr. Abel Carreiro e o Dr. José Nuno. Ao interrogatório do Dr. Abel não assistiu o Comandante Naval, que é sogro do filho. Segundo se diz fora chamado de urgência a S. Miguel...
Por outro lado, hoje, quarta-feira julgo eu (visto que não trouxe relógio nem calendário), o dia passou-se praticamente sem sobressaltos. Almoçámos cozido à portuguesa; desta feita já com um transparente guardanapo de papel; progressos.
Passámos poucos minutos ao sol por falta de pessoal. Esperança: no interrogatório do Dr. Abel foi posta a possibilidade de os já interrogados serem levados para S. Miguel com termo de residência. É, até hoje, a única réstia de esperança e luz que nos surge. Queira Deus em Sua infinita misericórdia conceder-nos essa graça. Em nome do Senhor Santo Cristo, o peço.
Acabei de telefonar aos meus. Falei com a minha mulher, os miúdos, a Sandra e a minha irmã Graça. Custou-me um tanto. Falei curto e rápido. Apesar disso, a chamada custou-me escudos 60$00, devo-os ao Luís Franco. O carcereiro, cara de pau vestido de barbas, nada disse. Ou deformação profissional ou extrema cautela do espírito terceirense ou ambas as coisas. Limitou-se a perguntar se eu tinha esses filhos todos.
Entretanto, o Luís e o José Franco receberam visitas. A mulher do José falou comigo. Pobre senhora, os seus olhos de angústia foram lâminas que me rasgaram o coração.
Em certa medida dou graças a Deus por minha Mulher não ter vindo. Ela não quis. Ver o José abraçado à esposa junto das grades do corredor foi uma triste cena que veio trazer mais dor a este injusto cativeiro.
A Ana Cristina disse-me pelo telefone que não tinha ido ao colégio. Bem bom; disseram-lhes que eu estava em serviço. O pior vai ser quando eles vierem a saber a verdade.
Regressado de telefonar, a porta da cela ficou aberta por instantes, enquanto o aspirante se não lembrou de a vir fechar. Entretanto um soldado que me fez lembrar alguém conhecido, veio até aqui brincar com a sua G-3, ao mesmo tempo que me perguntava com olhar brincalhão o que escrevia eu.
É bom moço; apenas trazidos para aqui à força, muitos deles não vão a casa desde que nós chegámos. Como os lamento.
O aspirante (com ar pálido, de bigode e pequena mosca à d'Artagnan, adolescente) ao fechar a porta, perguntou-me se precisava de mais alguma coisa. Respondi-lhe que queria ir para casa (como se isso dependesse dele!). Olhou-me, perguntou-me o nome, olhou uns papéis e depois fechou a porta sem dizer palavra.
Ouviu-o depois passar um raspanete ao rapaz por ter falado comigo. Pelos vistos estes pobres diabos estão proibidos de o fazer. Se soubessem quanto nos custa este isolamento, deixar-nos-iam falar com todos ao mesmo tempo, todo o dia. Isto é um inferno. Um inferno que dá que pensar. Tanto quanto eu saiba e em linha recta ascendente sou o único dos Bentos que chegou a advogado e...à cadeia. Boas perspectivas para a família, sem dúvida!
Foram-nos buscar a casa de madrugada por umas horas: “Traga apenas a máquina de barbear” (estamos aqui há dias); disseram-nos a bordo que seríamos entregues à força aérea. Meteram-nos na cadeia à conta do exército. Disseram que a comissão de inquérito viria no mesmo dia que nós. Veio só na 3.ª feira. Oxalá nos não digam mais nada.
Não sei como é que fazem quando prendem oficiais, mas estou certo que os não tratam tão mal como agora nos fazem a nós.
A vida interna na cadeia, com 30 e tal pessoas a fazerem necessidades quotidianas já fez entupir a canalização e a encher o edifício de mestres, pedreiros, canalizadores, etc.
Para chamar o guarda tem que se bater à porta. Vem a sentinela que geralmente se engana na cela. Nas horas de mais aperto, toda a gente bate ao mesmo tempo.
É uma sinfonia de batuques só comparável à entrada em cena circense de artista consumado. Podemos ir à casa de banho, telefonar à família, receber visitas, ontem deixaram-me ir barbear lá a abaixo pois não tenho ficha no meu cubículo e uso máquina eléctrica.
Espero que hoje me deixem fazer o mesmo pois já sinto picanços no pescoço.
O que me admira é ver colegas de infortúnio que ainda mantêm o sentido do bom humor. Onde irão eles buscar forças anímicas? Por mim confesso, estes têm sido os dias mais tristes da minha vida. Tristes e dolorosos.
No primeiro dia vieram pôr-me uma Iâmpada aqui. Fica ela situada por cima da porta. Perguntei à sentinela como se fechava. Resposta: é só subir para cima da bacia e desatarraxar a lâmpada. No sorriso daquela alma sã não havia, presumo, fumos de ironia. Irónica era a situação.
Vou interromper este diário por uns momentos. Lembrei-me agora que me esqueci de lavar os dentes. Até esse hábito inveterado me passou com o inóspito disto tudo. Depois irei fazer um pouco de exercício indo da porta á janela e vice-versa. Se conseguir fazer esses exercícios sem perturbações de maior dedicarei alguns minutos à leitura. Para evitar a monotonia, tenho lido vários livros ao mesmo tempo, sucessivamente, claro.
Ora me embrenho nos segredos de Iemanjá a mãe d' água ou de Exu, ora me delicio com a história do papel ou com alguma aventura do Pato Donald!
Hoje o Engº. Costa Santos emprestou-me dois livros novos: um é um policial «À espera do Assalto» de Wesley Sproude, que não tenciono ler a não ser «in extremis». E um exemplar da revista «História» com uma série de artigos sobre o movimento da mulher. Li Já um enredo histórico sobre a pretensa paternidade de Talleyrand sobre Delacroix. Interessante.
Vesti-me para o jantar pois ouço já o primeiro turno rir e falar lá em baixo. A minha janela dá para o pátio onde depois da refeição se descansa. Fui vê-los. Noto entre eles o meu cliente Tomaz Faria Caetano. O acaso do destino fez com que ele me empurrasse aqui para dentro e agora ele cá está. Não fora o seu convite para irmos ao quartel ouvir a resposta do Governador Militar e talvez não se tivessem lembrado de me impor este triste calvário (um dia explicarei convenientemente esta parte). Enfim coisas do destino que só neste nosso país seriam possíveis.
Fui jantar: depois de todos os outros grupos vamos nós, os que já fomos ouvidos, ou seja e por ordem: o Eng.º Costa Santos, eu, o Dr. Abel Carreiro, o Dr. Almeida e Sousa, o Sr. Bruno Carreiro e o jornalista Gustavo Moura, sendo que este último irá de novo amanhã.
Comemos sopa de feijão, fria e peixe duro, frio e dessaboroso. Conversámos depois do jantar. Ao que me diz o Gustavo Moura, no sábado dia 7 de Junho, os oficiais do Comando Militar haviam decidido deter todos os responsáveis pela Manifestação durante os 30 dias que, segundo eles, a lei dá para fazer a instrução do processo.
Se isto é verdade, trata-se da maior vilania e estupidez que o sol cobre. Trata-se de defraudar a lei que, se desse esse prazo, era para investigações e não para castigar pessoas sobre quem recai apenas uma suspeita e de que não existe o mínimo indício de culpa. Falo, evidentemente, por mim. Mas presumo que tipos sérios como Bruno Carreiro ou Abel Carreiro e Almeida e Sousa estarão no mesmo. Quanto ao Gustavo Moura, o seu jornal fala por si, e, praticamente, nem precisaria de investigação. Consta, por outro lado, que o Ministro Salgado Zenha nomeou o juiz adjunto do Procurador da República para representante do Ministério da Justiça junto da referida comissão de inquérito.
O Dr. Mesquita é um juiz sério e portanto a sua presença só nos poderá beneficiar, se tiver de facto alguns poderes ou se puder usá-los.
Trinta dias! Só de imaginar isto o que será durante todo este tempo, o meu cérebro revolta-se.
Depois do jantar, o oficial deu-nos um bom bocado no pátio. Já era noite. O Dr. José Nuno sentou-se com o Eng.º Santos num coxim de automóvel que serve de sofá. Os outros, mantivemo-nos de pé, em círculo, a conversar.
Já lhes disse que quando era director da cadeia da Ribeira Grande, a lei me obrigava a dar 2 horas de sol diárias aos presos. Mas eles escusam-se sempre com a falta de pessoal. Como é tão pouca a valia da pessoa humana quando se vê relegada para o plano dos sem liberdade.
O Victor Cruz contou uma anedota que os anarquistas pintaram, tipo slogan, nas paredes: “os índios também eram vermelhos e lixaram-se”. Rimo-nos dessa e doutras tolices que ali se disseram para aliviar a nossa dor.
O Gustavo Moura, debaixo dos óculos defumados de lentes impecavelmente limpas com aquele sorriso infantil que o caracteriza e disfarça a inteligência acutilante e sempre activa com que Deus o bafejou, diz-nos no seu falar característico de quem tem sempre a boca cheia que nunca pensou poder mudar tanto em tão pouco tempo. Compreendi-o. Afastado das lides forenses e sem se ter preocupado até agora com a politica interna dos outros países é natural que tudo isto o traumatize violentamente.
É natural que o ódio não seja um sentimento desconhecido para ele, agora!
Fala-se de diligências da França, da América e até do Vaticano por causa de nós.
Oxalá que elas tenham efeito. Se de facto existem…
E pronto, lá está de novo o aspirante d'Artagnan a chamar-nos.
O Eng.º Santos ofereceu-nos uma cerveja geladinha. Estou a bebê-la aos tragos curtos, tanto por causa da digestão como para a fazer render.
O Victor Cruz emprestou-me “O Cruzeiro”, de 8-1-75 onde se pode ler um artigo de Theófilo de Andrade, intitulado: “Em perigo a elite portuguesa” e em que se faz uma série de alusões a técnicas nazis e comunistas de eliminação de elites para domínio de certos países, o qual termina com esta frase de sabor trágico: “por Ia razon* ou “por Ia fuerza”,,, como dizem os chilenos. Oxalá que isto não se realize entre nós.
Lembro-me de novo do dia terrível em que fui preso.
O de Victor Cruz foi pior ainda. Seu pai assistiu a toda a cena. Dois corações destroçados no mesmo tronco familiar. Como castigará Deus tão grande pecado? Oiço um abrir e fechar de portas. Gonzos e fechaduras. Oiço uma voz de homem e outra de mulher. Falam docemente com os meus companheiros de cárcere. Que será?
Afinal era a ronda. Mulher não a vi, devia ter ficado atrás da porta. O aspirante d'Artagnam veio verificar “os animais” por uma lista. Dei-lhe o meu nome como me pediu; verificou, abateu e seguiu a viagem rotineira, como a mulher do fazendeiro que conta, cuidadosa, as galinhas ao pôr de sol não fosse o milhafre roubar-lhe alguma. Deitei-me depois das habituais orações a Deus e a Seu Filho. Pedi-lhe protecção e que iluminasse a mente dos homens.
Li um pouco de Frei Boaventura, depois de passar os olhos pelos “desenhos animados” de Walt Disney e dormi como um justo até às sete da manhã. Acordaram-me as badaladas da Sé de Angra. O dia está de novo bom com muito sol e céu azul, aliás como todos até aqui. Estamos em 5.ª feira, não sei quantos de Junho.
Fomos tomar um pequeno-almoço, desta vez mais demorado. Lembrei-me que o Borges Coutinho, culpado pela sua mediocridade lunática, desta ridicularia toda, foi meu cliente até ao dia 25 de Abril de 1974. Salvo erro ainda me deve escudos 635$00 de honorários. Disse na brincadeira, ao pequeno almoço que ia, daqui, mandar-lhe a conta dos meus serviços... Riram-se e foi tudo.
Por outro lado, discutimos a hipótese de apresentarmos queixa à Ordem dos Advogados e pedir-lhe um emissário para nos vir ouvir e defender os nossos pontos de vista.
(A constipação continua. Esta maldita cela e toda a sua humidade. Seja tudo em remissão dos meus pecados).
O Dr. Abel foi de opinião (com que concordei) de tentarmos contactar o Dr. Mesquita, juiz adjunto do Procurador da República, afim de tentar obter uma liberdade com termo de residência que nos permita lá fora, ir trabalhando juridicamente pelos que cá ficassem.
Embora julgue que uma diligência não anule a outra, vamos tentar saber, ao almoço, pelo Gustavo Moura, se o Dr. Mesquita faz parte da comissão e, caso afirmativo, fazer-lhe o pedido.
Entretanto, corre que Tomaz Caetano, cidadão canadiano, vai apresentar protesto junto da sua Embaixada e pedir a intervenção daquele país no seu caso. Parece que esteve detido 24 horas em Ponta Delgada sem comer nem beber.
Às vezes penso que é inútil escrever este diário, pois que se calhar acabam por mo roubar. Mas, enfim, é uma tarefa tão absorvente que nem sequer penso em abandoná-la.
Hoje, no pátio, assobiámos o hino do Senhor Santo Cristo e o do Senhor Espírito Santo. Este último é tido como o hino dos Açores tal é a sua generalização em todas as ilhas.
Muitas vezes, ao assistir às brincadeiras dos soldados, entre si, com as armas nas mãos, me ponho a considerar o perigo de poder haver algum acidente mortal que venha carregar de mais negro esta nossa tragédia.
Quando eles ficam, por momentos, sem oficial ou aspirante, tornam-se em autênticas crianças que são. Sempre gostava de saber qual a ideia que de nós faz o comandante do B.I.I. 17 que nem se dignou visitar o presídio militar e ouvir as reclamações que temos para apresentar. Julgo que era esse o seu dever, o qual, atentas as circunstâncias em que nos encontramos, devia tornar-se para ele, ponto de honra.
Por seu turno há uma coisa que me tem espantado. A atitude de afastamento da Santa Madre Igreja nesta terra do Heroísmo representada por 2 Bispos. Pois nenhum deles (e somos amigos de ambos) se dignou vir ou mandar um representante de Cristo junto de quem tanto apoio moral necessita. Esta, se calhar, é a tal Igreja não comprometida. Digo-o mais com amargura do que com ironia, pois agora poucas forças tenho para ironizar. Mas se Maomé não vai à Montanha esta vai a Maomé: E fica já jurado, vou mandar pedir a vinda aqui, do Senhor Bispo. Se ele não vier vou eu lá pedir-lhe á bênção. Apostólica! (1)
Eis o texto do telegrama que vou tentar fazer chegar Junto da Ordem dos Advogados:
Exmo. Bastonário Ordem dos Advogados
Largo S. Domingos
LISBOA
Abaixo assinados, advogados, detidos ordem militar cadeia comarca, sem culpa formada, ou possível visto terem agido exercício deveres profissionais, solicitam presença urgente Vexa esta Ilha Terceira fim apresentar-lhe pessoalmente suas razões. Respeitosamente, Abel Carreiro, Melo Bento, Almeida Sousa.
É claro que tudo isto teria sido dispensável se a nossa delegação da ordem em Ponta Delgada se tivesse mexido. Em boa verdade desconheço se assim aconteceu de facto. Mas pelo lado de que o vento sopra não me parece que aportemos a terra...
Operação bacio: O facto de estar fechado numa cela tem implicações higiénicas e sanitárias de certa gravidade.
Apesar de estar habituado a regular cronologicamente a satisfação das minhas necessidades fisiológicas, tem sido difícil fazê-lo agora dado o género de comidas que a tropa nos serve: ê muito pesada e provoca anomalias pouco agradáveis.
Deram-nos um bacio (ou penico) que nós devemos utilizar e... ir lá abaixo, pessoalmente, vazar. Por mim, só o uso para verter águas e quanto a ir lá baixo, recuso-me a dar-lhes o gosto desse deprimente espectáculo. Mas hoje, a situação tornava-se grave pois o dito receptáculo atingiu perigosamente o ponto de saturação.
(1) Viria a saber depois de semi-liberto que a Igreja esteve como lhe competia: não a deixaram entrar.
Pensei então em deitar o pestilento líquido pela bacia abaixo. Tal operação, porém, acarretava sérios riscos pois que, tratando-se do recipiente onde me lavo, teria de fazer tudo sem que sujasse a bacia.
Arames, garrafas de cerveja e tampas de frasco tudo conjuguei para a operação e, depois de encher a face exterior da bacia com muito sabonete, lá fiz sumir pelo encanamento a presença incómoda do referido elemento químico. A água corria da torneira durante a operação e ficou correndo quase meia hora após o seu término.
Devo dizer que a constipação que tenho foi extremamente útil. Há males que vêm por bem…
Já que falo em instalações sanitárias, deixem-me dizer que lá em baixo temos duas retretes, um chuveiro e dois urinóis, além duma inútil bacia.
As retretes são das que não têm sifão, são pois e apenas de rés de chão. Talvez que, por mor da força da tal lei dos vasos comunicantes, puseram o autoclismo junto do tecto.
Este, por fanática aversão à hermética, pinga desabaladamente sobre o utente, enquanto tal.
O chuveiro é mesmo isso. Um aguador de jardim automaticamente accionado por uma corda. É só puxar a corda e a água cai em catadupas sobre o lavando. Atentas as condições do aguador, a natureza barrenta do solo e as demais actuantes atmosféricas não sei se a pessoa estará mais limpa antes ou depois do duche.
De qualquer dos modos e enquanto durar esta constipação terei que evitar esse tipo de higienização, não aconteça que além da porcaria, venha o desmazelo e a minha fatal cama do Hospital tenha que ser compulsoriamente ocupada.
Por seu turno, os urinóis não são propriamente um modelo de limpeza. Bem vistas as coisas, posso até dizer que tenho fortes dúvidas se, alguma vez, foram limpos. Eles eram de esmalte branco, mas hoje, salvo honrosas excepções, fazem inveja a qualquer camisa nazi dos velhos tempos de Hitler. E o Toni Câmara a dizer que o Hospital Militar em que esteve, no seu tempo de tropa, era dez vezes pior que isto! Salvo seja!
Se quisermos saber porque motivo não deixam os soldados, de cá, falar connosco devemos raciocinar à base do facto de esses rapazes serem todos Açorianos.
Estou porém convencido que todo este arraial de gonzos e fechaduras, destinados a provocar o pânico, cai pela base, face à impecável disciplina que todos têm demonstrado, além dum fantástico e sobrenatural bom humor. Toda a gente ri, às vezes até alarvemente. Mas não é o riso nervoso do mártir, é o riso franco do homem livre.
De resto, livre é a nossa fantasia que voa arrebatada pelas asas da ilusão; nosso território são estas minúsculas pedras alagadas que nossos avós descobriram, quase por acaso no imenso oceano que ninguém queria povoar e de que nós agora não queremos afastar-nos.
Ora, toda a gente sabe que os que estão aqui presos em tão imundas circunstâncias, são pessoas sérias que têm como único pecado amarem de sobremaneira a sua Terra e os que nela vivem, defendendo os interesses de todos.
É portanto um perigo que eles descubram que nós não somos as feras que lhes pintaram mas afinal os seus aliados naturais.
Dor sem fim, imenso penar, grita alma desconcerto
Podes vir ilusão que te acompanho como um louco neste caminho
Mãe porque sorris assim?
Terra mãe porque me criaste e para que fim?
Ouço lá fora as visitas que vem quebrar a solidão da cadeia
O pio chilreante dum pássaro engaiolado como nós.
Pobre diabo não sabes talvez o que é a liberdade, por isso o cativeiro te seja porventura menos penoso.
Maldita sorte a nossa, triste a nossa condição.
Oh Deus! Liberta-nos.
Tu tudo podes.
Não nos faças expiar o que não é culpa nossa.
Os montes, os ventos, os vendavais tudo dominas.
Acode então e abre-me esta porta.
Deixa-me respirar o ar puro da liberdade.
Deixa-me abraçar a meus filhos, os mesmos que me destes a criar.
Que faço então?
Deixo-os como rebanho, sem pastor?
Qual é o meu fado?
Que caminho e ventura me estarão guardados pelo destino?
Antevejo a multidão ululante que grita hossanas!
Sobre a terra meu sonho acabou, deixa-me tormento infinito. Proscrito.
Vejo-me exilado do meu país, livre enfim, mas sempre preso.
Que corda me traz assim arrastando correntes imensas de desejo.
Mais pesadas que o Chumbo mole ou o aço duro?
Mas no exílio não existe liberdade.
Só tristeza, solidão, saudade.
E a vida não espera suspensa do tempo do exílio que regressemos.
Tudo morre e tudo muda.
Até a esperança é outra e, para o exilado, a Pátria morre por evolução.
Não. Antes na Pátria preso que lá fora à solta.
Quando regressa (se regressa) já não é a Pátria igual que ele vê.
É gente estranha.
Novos costumes.
Novos desejos.
Ele está deserdado da Pátria;
Apátrida e perdido.
Não sei porquê mas esta roupa que lavo seca depressa. Dois lenços que lavei, esta manhã, já aqui estão dobrados em minha secretária. Ao que eu havia de chegar!
Lembrei-me agora de repente dum pensamento que, de quando em vez, o meu espírito acalenta: se fosse necessário prender todos os micaelenses com a mesma culpa que nós, mais valia cercar a ilha com uma esquadra de guerra e considerar toda a sua população detida para averiguações. Isto no fundo é consolador...
O 1º turno acabou de almoçar e foi receber a esmola (!) de 15 minutos de sol no pátio para esticar as pernas. O António Amaral recebeu notícias de casa. Seu filho Miguel (miúdo que nem sequer ainda tem dez anos) tem ido ao Café Gil, por cima do qual mora, dizer alto e em bom som: “Meu Pai está preso” e parece que diz o mesmo da janela quando passa alguém. É deveras edificante...
Que não sentirá, meu Deus, aquele Pai? António José é um rapaz alto. É mais velho que eu uns 2 ou 3 anos. Fomos colegas no 2.º ano do Liceu. O 2.º D de trágica memória pois a deusa da ciência não era propriamente o oráculo preferido. António José e o Tapia eram os mais fortes de todos. O dia em que ambos brigaram (o confronto entre ambos, desde o início, tornara-se absolutamente inevitável) foi feriado nacional!
Hoje, António José continua alto, magro, com uma barba incomum, acompanhando, em estreita nesga, a linha do queixo. Teve porém um acidente de viação há um tempo e ficou cheio de mazelas, a mão esquerda e o rosto apresentam ainda partes deformadas resultantes dos ferimentos.
Pode ser que Deus o tenha feito sofrer assim para ele poder aguentar isto agora com mais vigor. Não dizem que Ele escreve direito por linhas tortas?
Acabou o almoço e os cinco minutos de sol durante os quais senti uma forte tontura. Ou é do sol ou da comida ou nervos.
Durante o almoço que hoje apesar do cozinheiro ser o mesmo, me soube bem, conversámos bastante. Sentei-me na mesa do Eng.º Santos, do Dr. Abel Carreiro e de Bruno Carreiro. Hoje descobrimos que tanto o pai do Bruno Carreiro, o grande José Bruno, como o do Eng.º Costa Santos, Capitão Aniceto dos Santos, estiveram também detidos por motivos políticos, há mais de 30 anos quando da revolta dos degredados em S. Miguel. Comentário seco de Bruno Carreiro: - “Enfim, somos duma família de cadastrados...”
Para mim trata-se todavia duma certa tendência hereditária...
Li-lhes a carta que vou mandar ao Bispo de Angra. Todos se riam por acharem que pedir a um Bispo, para nos confessar que é coisa do outro mundo!
Apesar do bom humor exteriorizado, o pessimismo ainda é o sentimento dominante em nossas almas. Todos pensamos em 30 dias pelo menos e, apesar dos sistemas nervosos terem aguentado tudo até agora, é bem natural que as resistências comecem a faltar. Preparamo-nos para o pior.
Entreguei ao Victor a exposição do Tomaz Caetano para apreciação e tradução.
Consta que a comissão começa a ouvir dois de cada vez; tenho que me preparar para mudar de cela pois, dentro de dias, eles vão precisar desta para alojar algum dos não ouvidos.
Pedi ao meu colega Dr. José Nuno para enviar ao Juiz Corregedor um pedido de adiamento dos julgamentos que porventura estejam marcados para agora. Como a mulher dele está cá e o visita, sempre tem esse contacto a mais que eu.
Hoje, a desculpa da hora de sol ser curta foi de que as visitas estavam lá fora à espera. Claro que se trata dum atropelo aos mais elementares direitos dos homens.
Pobre de quem é pequeno neste mundo. E quem é mais pequeno do que um homem sem liberdade?
Por outro lado, o oficial hoje de serviço é um alferes. Não é de cá, parece-me. E logo isso se começou a ver na rispidez das ordens e na vigilância apertada às entradas e saídas, idas á casa de banho, etc.. Meu Deus acaba-nos com este inferno!
O irmão de Gustavo Moura começou a trabalhar em Lisboa a favor deste. Segundo informações ultimamente chegadas, antes de 6.ª-feira ele não acha conveniente vir aos Açores. Claro que os partidos continentais, agora, resolvem todos os problemas que os autonomistas reivindicam a par do que se entretêm, num acto de abjecta cobardia, a lançar atoardas sobre os que estão presos na mais imunda das condições sem se poderem defender. São uns heróis... É quase tão heróico como dez homens fortemente armados entrarem de madrugada em casa de gente indefesa e arrancarem da cama um cidadão honesto para o fechar, guardadíssimo, numa prisão de cimento armado. Que coragem!...
Durante a hora de sol aconteceu um pequeno episódio que muito me fez rir. O nosso guardador de hoje que passaremos a designar por S.S., o qual substitui o aspirante d'Artagnan, proibiu conversas entre o nosso turno e os que ainda não tinham sido ouvidos.
Entretanto, o Eng.º Menezes chamou o Victor Cruz da sua cela gradada do 1.º andar, virada a poente (a minha vira a norte) e que também dá para o pátio; o Victor estava sentado no sofá de madeira que está ali a escangalhar-se pela inércia (julgo eu), mas este sem deixar de olhar para diante e para baixo, no uso dos seus vastíssimos recursos histriónicos respondeu-lhe como quem fala para diante: - «Quando falares comigo diz o que quiseres porque eu te responderei como um louco que fala sozinho”. Foi só isto, com ar muito sério e muito profissional, como quem faz um discurso importante! E foi o bastante para começarmos todos a rir alarvemente. Até o circunspecto Bruno Carreiro começou aos pulos e a “desabafar” no seu característico estilo egípcio e com largo recurso às armas de S. Francisco.
O sobrinho do Victor Cruz trouxe-lhe uma garrafa de uísque. S.S. proibiu ipso facto a sua introdução na cela. Regulamentos são regulamentos, em Dachau, Spandau ou em Angra! Heil Hitler!
Muitas vezes me ponho a pensar na enigmática figura do general Altino Pinto de Magalhães. Quando da minha proibição de sair de São Miguel, tive de pedir-lhe licença para me ausentar afim de acompanhar minha Mãe a Lisboa, pois se encontrava doente. Deu-ma imediatamente sem curar de razões. Achei-o, por isso, uma pessoa tão razoável que resolvi dizer quanto me havia custado a dita proibição que (tal como a detenção agora) não tinha o mais leve fundamento. Informei-o que tinha saído um comunicado anunciando publicamente a proibição que impendia sobre mim e, além disso, das desastrosas consequências que tal facto havia provocado na minha vida profissional. Como resposta disse-me que eu tinha direito a uma reparação. E, com efeito, pouco mais dum mês decorrido, mandou-me para a cadeia. Enigmático, realmente!
Nunca pensei tão a sério em emigrar para a América. Não sei como vou poder enfrentar as pessoas da minha terra depois duma tal provação. Em contrapartida, naquele país tenho tios, primos, cunhados. A maior parte da família. Só o amor à terra me prendia aqui. E agora? A terra é gente, não é pó. Eu amo a terra porque é gente. Amo essa gente em pé de igualdade: não suportarei jamais que me olhem com olhos de comiseração ou pena. Já que, os de troça (filha da inveja) esses já os suporto há longos anos...
Penso nos filhos. A Patrícia, a mais velha, está com 9 anos. Levá-los para uma terra estranha. Com língua diferente, vai ser um choque e um martírio que me não perdoarei jamais. Que fazer meu Deus? Iluminai-me.
Lá fora soam as campainhas. Desta vez é o Gualberto que está aflito. O ressoar das vozes dentro das outras celas faz-me, por vezes, pensar que estou num convento. E isto dá-me um certo alívio, faz com que o espírito abandone este lugar de punição, este purgatório maldito. São segundos de total abstracção e até de certo descanso espiritual.
Ouço na cela em frente, o Gustavo Moura bater furiosamente a sua máquina de escrever. Por certo que se tenta evadir por esse meio. Que tenha sorte.
Estar-se dentro duma cela pequena e húmida como esta e ouvir-se certos sons lá fora tentando interpretar o que significa, deve ser aproximadamente a tarefa diária dum pobre cego.
Neste momento, o Eng.º Menezes bateu à porta e entregou-me uma encomenda de meu Pai (escudos 1.000$00) que havia pedido à Maria de Fátima pelo telefone. Meu pobre Pai está apoquentado por minha causa. Vou ver se lhe telefono para sossegá-lo. E eu que nunca me quis meter em nada precisamente por causa da idade dele. E não obstante, cadeia. Oh fados cruéis!
Não sei se já teria dito isto; mas quando para aqui vim, junto do trinco da fechadura da porta, havia um esplêndido buraco de cerca de 5 centímetros de diâmetro (vestígios, possivelmente, de anteriores tentativas de fuga ou, menos romanticamente, azelhices do carcereiro no abrir da porta). Por esse buraco eu via as sentinelas com o seu ar adolescentemente despreocupado, segurando os seus engenhos bélicos ou algum colega de martírio, em ocasional saída ou entrada da cela.
Ontem, porém, um diligente aprendiz de pedreiro cegou-me completamente vedando a minha vigia com cimento grosso; pois alevá!
Acabo de chamar à campainha. Ainda não apareceu ninguém. Dá-me a impressão que eles têm este serviço da numeração das celas mal feito. Afinal enganei-me, o alferes S.S. apareceu. Pedi-lhe para telefonar, disse-me que só o poderia fazer até às 5 e já passava meia hora desse tempo limite. Falei-lhe na preocupação de meu Pai e ele prometeu ver o que fazia. Visto mais de perto não me pareceu tão S.S. como no princípio. Chamá-lo-ei, daqui por diante, de “gauleiter” que tem sempre um significado menos sinistro! E se ele me arranjar o telefonema ainda lhe darei um cognome mais moderado. É que, ao menos neste campo exerço um poder absoluto...incontestável!
Afinal não arranjou e estou mesmo a pensar em promovê-lo a gruppen-iuhrer S.S.
Acabou, por enquanto, a solitária. O S.S. mandou-me arrumar as bagagens para uma cela colectiva. Estamos agora, Victor Cruz, Bruno, Dr. Abel, Eng.º Santos e eu.
Fala-se até que nos roubarão visitas, telefone e sol. Mais uma vez os direitos são. Neste país, apenas uma palavra. Vã!
Hoje, sexta-feira 13. Somos mantidos em regime de tortura psíquica. Proibidos de falar uns com os outros. Vigiados de perto pelo S.S. Os soldados estão (ao que penso) rigorosamente proibidos de falar connosco, pois nem sequer nos respondem aos bons dias. Com a boca. Pois os olhos são os mesmos. São açorianos. Já aqui tenho os nomes dos nossos colegas de martírio da Terceira. Copio-os do jornal A União. São eles: Luís Pacheco Soares Guiod de Castro, José Manuel Rodrigues dos Santos, Paulo Tadeu Mendes Brum Pacheco e José Silvério Bispo. Por outro lado, o mesmo jornal dá os nomes dos oficiais que fazem parte da comissão de inquérito.
O primeiro incidente deu-se à hora do jantar. O encarregado da abertura da cela experimentou várias chaves sem êxito algum. Pediu ajuda interna que não lhe pudemos dar, visto que o buraco que também aqui havia, sofrera a mesma benéfica influência do ajudante de pedreiro já nosso conhecido. O pobre homem já desesperava quando resolveu chamar o carcereiro. Este quando chegou, porém, limitou-se a puxar a porta pois estava aberta há muito... Rimo-nos todos até chegarmos ao rés-do-chão onde um aspirante nos proibiu com uma brusquidão, desnecessária e antipática, de falarmos uns com os outros.
Agora que estou aqui na cela comum a dificuldade em escrever aumenta pois há dificuldade em concentrar-nos.
Ouvimos pela rádio que os partidos comunista, socialista, MES e CDE organizam na 2ª feira, 15, uma manifestação de desagravo contra a do dia 6. Estou a pensar cada vez com mais convicção em emigrar. O Victor Cruz leu-nos uma série de quadras em que encerrou esta nossa deplorável epopeia. Com o seu estilo chistoso, imbuído um tanto de palavreado menos púdico, foi uma boa válvula de escape. Faz bem vê-lo no seu porte atlético, demasiado jovem para os seus 41 anos, e com um vozeirão à Vargas, temperado pela doçura cantante que o profissionalismo da locução lhe emprestou. O seu optimismo é contagiante mesmo quando (em humor pouco branco) nos prevê o futuro. Quando fala, tem um gesto de mão esquerda muito significativo, que é difícil de descrever mas que deve assemelhar-se ao do grande banqueiro nova iorquino ao abrir com chave delicada as grandes portas automáticas de fabulosos tesouros.
Reina na prisão um silêncio mortal apenas interrompido pelo batuque dos mestres nos corredores. Um deles veio trabalhar para dentro da nossa cela, consertar o autoclismo cuja flutuadora se recusa a funcionar. Como resultado dos apurados esforços do diligente operário a flutuadora passou a funcionar eficientemente e, por consequência, o autoclismo deixou de fazer a sua útil descarga, por razões que ainda não conseguimos apurar.
Fomos almoçar, tarde como de costume. O aspirante gruppen-fuhrer estava de novo de serviço com os seus óculos de lentes em forma de ovo deitado. Mandou-nos calar mais uma vez proibindo quaisquer conversas entre nós. O tratamento é pouco humano e humilhante. Custa a ver um rapaz de poucos anos mandar calar homens, alguns com idade de serem seus avós.
Consta que ele se ofereceu como voluntário para este “nobilitante” serviço. Se assim é, gabo-lhe o gosto e o jeito. Ontem vieram com ele e estiveram à porta do corredor central, certos indivíduos. Um deles olhei-o de frente. Era alto, vestia um conjunto que me pareceu cor-de-rosa e usava barba. Estava com ar de quem observa bichos raros nalgum jardim zoológico.
Peço a Deus cada dia com mais fervor que me livre destas grades e destes esbirros: peço-lhe que me dê forças para lhes perdoar quando for altura disso.
A cunhada do Eng.º Santos falou numa possível libertação, amanhã, sábado 14. Ninguém quer acreditar nisso... Ou quer? Seja o que Deus quiser.
A casa de banho privativa desta cela colectiva, tem uma janela gradada que dá para o corredor. Há momentos passou o grupo de amigos que se encontra na outra cela colectiva ao lado da nossa. Vi o Menezes e o Dourado). Disseram-me que o João Manuel Furtado Rodrigues já tinha sido ouvido. Não percebo esta demora em ouvir 30 pessoas. Nos meus tempos de Delegado Procurador da República cheguei a ouvir outro tanto em dia e meio. Dá até a impressão que eles demoram de propósito.
Faço um esforço tremendo para não pensar nos meus. Quantas mentiras não terá sido necessário dizer aos miúdos para os manter isolados desta minha desgraçada situação. A Patrícia por certo já deve ter percebido tudo. Esperta e desconfiada como é...
Estou a lembrar-me agora do livro do Prof. Lorenz «A Agressão» que li há meses. Quanto de verdade há em toda aquela explicação do entusiasmo militante.
O gruppen-furer chama-se Vasco. Um nome inesquecível e memorável.
São 18 horas.
A cela ao lado vazou-se sem darmos por isso. Mais movimento nos corredores. Mais nervos. Com esta falta de notícias começo a sentir os nervos a darem sinal de si. Faço o possível para me distrair mas reconheço que isso vai ser difícil. Quanto maior for o isolamento e a ignorância do que se passa mais difícil será. Somos pois objecto duma tortura moral permanente e atroz.
Sensação na cela 19 (a nossa) o gruppen-thurer entrou suave como uma pena. Bateu e tudo (!) chamou pelo “Sr. Victor Cruz” e pediu livros para o “Sr. Dr. José de Almeida e Sousa”. O homem que até por «gajo» tratou o Dr. Abel, ontem desfez-se em cortesias.
Ficámos estupefactos! O Victor, por sua vez, ou porque o chamaram ou porque fosse recorreu à sanitária privada da cela, com efeitos odoríficos manifestos. Ele negou a relação de causalidade entre ambos os factos. No entanto regista-se a sequência que se deixa sem comentários ao Julgamento da posteridade.
Serviu-se o jantar. Peixe outra vez para desgraça do Victor Cruz que o detesta. O gruppen-fÜhrer virou seminarista de último ano. Doce. Sorridente. Amável. Complacente e... cerimonioso.
Estamos verdadeiramente intrigados com esta reviravolta no espírito daquele espécime do género humano. Têm-se aventado várias hipóteses entre as quais a do Victor, porventura a menos circunspecta, que põe em dúvida a integridade sexual do senhor. Apesar da hilariedade provocada não parece ser unânime a aprovação de tal hipótese.
Pode ter havido influências estranhas ou, como quem diz, superiores que tenham provocado este volte psíquico que nos vem trazendo perplexos.
Sábado, 14
Acordei cedo arrebatado aos braços de Orfeu pelas trombetas de Jericó. Estas trombetas são o Bruno Carreiro, à esquerda e o Eng.º Santos, à direita. O ronco nocturno que emitem ao dormir é semelhante a motores diesel de vária potência e idade.
A luz eléctrica esteve toda a noite acesa, depois de uma interrupção de 2 ou 3 horas. Quando reabriu, o Gustavo Moura apanhou um susto pois julgou que nos vinham buscar de madrugada.
Para passar o tempo, temos contado anedotas. Algumas ligadas à terra, contadas principalmente pelo Bruno com muita piada, pois ele lembra-se dos nomes e dos lugares com grande precisão.
Lembro aquela das duas patas que foram oferecidas ao Dr. João Bernardo, professor do Liceu, apesar das recomendações que em contrário tinha dado à criada, a qual não conseguira identificar o remetente. Dias depois, apareceu-lhe uma antiga serviçal da casa do pai daquele professor que se vinha lamentar de a filha ter perdido no exame de História, apesar das patas. O Dr. João Bernardo respondeu-lhe que tinha pena e a única coisa que podia fazer era devolver-lhe as patas. - Pois era o que eu vinha buscar, respondeu-lhe serenamente a pobre mulher!
O Dr. Abel também não ficou atrás e contou a do General americano que viveu em Ponta Delgada e que apenas conhecia 2 músicas. Uma era o hino americano a outra não era...
Claro que há outras histórias (que não a minoria) mas essas o pudor impede-me de as registar aqui.
Tenho pensado imenso nesta situação de proibir os detidos de falar mesmo entre si. Aos pobres que estão nas celas sós que se sentam depois à mesa com os colegas e com eles não podem falar. É um verdadeiro suplício de Tântalo!
Hoje de manhã o pequeno-almoço correu melhor. O oficial não apareceu. Nós falámos. Desabafámos. O Regente Gualberto hoje foi a nota mais alegre entre todos.
Este nosso amigo e companheiro é baixo e cheio, com a cabeça coberta de um cabelo obediente deitado para baixo e para a frente, saltando a testa como água em cachoeira e subitamente congelada.
Frente aos olhos, uns óculos verdes que quase não deixam ver aqueles. Queixo levantado e uma agilidade quase incrível para aquele corpo; expulsa o mau humor logo que chega. E até as sisudas sentinelas apertam os lábios e não se aguentam sem se rir com as suas diatribes e trejeitos cómicos.
Consta que hoje de manhã foram ouvidos o Armando Goyanes e outro colega cujo nome agora não lembro. Parece que já estarão ouvidos 16. Só metade! Isto nunca mais acaba.
Falámos muito. De política principalmente. Cada um tenta descobrir porque motivo está preso. Estou porém convencido que haveremos de sair daqui sem o saber.
E os mestres lá foram. Ouvimos agora as notícias de Ponta Delgada: um partido de S. Miguel indirectamente põe-se ao nosso lado. É a primeira vez que ouvimos palavras agradáveis. Deus os abençoe.
Almoçámos bacalhau à Brás. Bom e rápido, faltou foi o vinho, pois nos servem a cada refeição apenas um quarto de caneca, pequena! Durante o repasto o aspirante (terceirense) disse que as últimas restrições (visitas, telefonemas, silêncio e sombra) haviam resultado de terem tentado passar mensagens para fora em tapete. Ninguém acredita na desculpa.
E pronto, cá estamos de novo na cela. Estou, claro, a fartar-me disto. O ponto de saturação não deve tardar. Segundo o aspirante (que se queixou que em dias Santos /era ele que ficava de serviço, sempre!), os inquéritos seguem hoje até à noite e não são interrompidos, amanhã, Domingo. Já nem sei se hei-de ficar triste ou alegre com esse facto. Se eles quisessem nem nós já estávamos aqui. Tudo isto é ridículo e atroz. O homem é um ser estranho que a tudo se adapta. Até quando irá a nossa capacidade de adaptação?
Li agora na Vida Mundial uma reportagem sobre os acontecimentos de sexta-feira.
Um modelo de parcialidade e de mentira absurda. O entusiasmo militante levou o Dr. Borges Coutinho a uma paranóia galopante; seguindo tanto quanto possível os meus poucos conhecimentos de psiquiatria, não estranho nada que na base do seu comportamento estivesse qualquer complexo freudiano de base edipista.
Lembro-me dos meus queridos filhos. Que saudades sem fim de ouvir as brincadeiras do traquinas do Alfredo. O que será que o filósofo do meu Francisco pensará de seu pai naquela adorável cabecita do meu coração. E a Ana? As suas brincadeiras são todo o meu enlevo. A sua falta traz-me morte ao coração. Oh meu Deus! Isto custa tanto!
Na rádio uma moça canta: “Somos livres, somos livres” ; na verdade...
Temos estado a ouvir uma entrevista com 2 membros dos serviços executivos do Conselho da Revolução: Santos Coelho e Aspirante Lopes.
Entre outras inteligentes considerações, disseram suas excelências que o governo português está pronto para ajudar o povo açoriano e que uma vez destruídas as estruturas fascistas, se o povo quisesse a independência que por certo a teria.
Deixo sem comentários estes primores de futurismo político para anunciar ciclónica, imprevista e concomitantemente animadora e vice-versa a visita de Jorge Miguel irmão de Gustavo Moura, prenhe de notícias que talvez registe aqui depois de irmos ao pátio, pois parece que restabeleceram esta regalia. Pelo menos por hoje.
Ele conseguiu cá entrar contra as determinações comodoriais, por ter falado com o general e para tratar de assunto de negócios. Ficamos com a ideia de que a nossa situação (como Grupo) não era brilhante quanto ao tempo que vamos ficar nesta horrível prisão.
Por outro lado, as notícias que nos chegam pelos jornais, agora vindos, sempre parecem ser verdade a existência dum Governo dos Açores no exílio. Não sei em que medida a existência desse governo nos vai prejudicar, pois neste espírito de desconfiança que domina os acontecimentos aqui, são capazes de pensar que há ligação entre nós e esse Governo. Parece que ainda faltam para serem ouvidos: 13 dos Detidos. Se tudo correr bem, a comissão é capaz de ter o inquérito pronto na terça-feira. Depois, as conclusões. Meu Deus, meu Deus, quando acabará isto? Esta dúvida é insuportável.
O Victor Cruz lembra uma história do Badaró que chegara a S. Miguel depois de vir de St.ª Maria. Perguntaram-lhe então, como é que ele achara aquela pequena ilha. Resposta: “É uma prisão ao ar livre”! Muito a propósito.
Parece que o Conselho da Revolução confirmou o general no posto de comandante-chefe dos Açores e de que foi aprovada a proposta de Canto e Castro (moderado) para nomear um novo governador e satisfazer as reivindicações mais justas da população da ilha.
Oxalá que estas diligências resultem.
Domingo 15
Hoje por ser domingo e um pouco impiedosamente, as anedotas que se contaram foram todas ligadas a padres e freiras, que nos abandonaram, por acaso, neste dia. O Gustavo Moura faz hoje 18 anos de casado. Levantámo-nos todos para o cumprimentar. Foi uma cena engraçada que, por pouco, não desandou em tristeza
viva. Pobre Gustavo. Sua mulher é a minha prima mais velha, a Meneta (Maria Antonieta) que exerceu na minha infância a influência de todas as primas mais velhas.
Era uma espécie de madrinha que velava por todos, principalmente os mais novos e fraquitos, como eu era. Lembro-me como se hoje fosse, dum jogo de futebol entre rapazes, na Canada da Pedra, à Fajã de Baixo onde passávamos o Verão.
Nesse tempo, os carros eram muito raros e a Canada era um campo de futebol quase ideal. Os irmãos dela, mais velhos, alinharam pela equipe A e nós os mais novos pela B. Pois a Meneta “torceu” por nós com grande calor, incutindo-nos muito entusiasmo e, ao ser chamada pela Tia Mariana para um serviço qualquer, deixou alguém no seu lugar com a recomendação de defender os “pequeninos”.
É essa a ideia que faço dela. Era uma rapariga bonita que sempre e só namorou o Gustavo. Se não me engano este aniversário nestas circunstâncias deve ter sido um dos grandes desgostos da sua vida. Para ele não deve ter sido menos. Eles são tão amigos como se fossem uma pessoa só!
Fui chamado ao comodoro. Fiz várias conjecturas apressadas sobre este singular chamado. Pensei rápido sobre o meu depoimento, a ver se haveria alguma incongruência. Meteram-me num jipe com a capota muito baixa, juntamente com o João Gago da Câmara e o António José Amaral. Quando chegámos, subimos ao 1.º andar do palácio. Um largo corredor. Uma pintura linda do mar a bater na praia. Um longo tapete. Um oficial da marinha em pé. No fundo, o comandante naval ao telefone. Quer falar comigo.
Entrega-me um grande envelope que me vem do escritório com papel selado em branco para assinar e 2 contos num envelope.
Cumprimentei o Dr. Mesquita. Perguntou-me como estava. Não lhe respondi. Espero que tenha compreendido. Saí sem ter percebido a manobra. Os meus colegas de cela ficaram bastante preocupados e fazendo imensas perguntas a si próprios. Quando cheguei e expliquei o alívio foi geral.
Ouvimos na rádio as declarações de Saraiva de Carvalho sobre o Campo Pequeno. Uma tourada à portuguesa, extremamente elucidativa e preocupante.
Mais política. Mais notícias. O Bruno pensa que o perigo que corremos é que depois de libertos, seremos espalhados com residência fixa pelas várias ilhas. O dr. Abel contrapõe que isso iria espalhar o ideal por todas as ilhas apenas com a nossa presença.
Parece não valer a pena pensarmos nisto. Apenas nos agrava o sofrimento. O pior de tudo isto é a incerteza quanto ao futuro.
Falámos do Eng.º Magalhães que foi politicamente escalpelizado. A sua participação no “grupo dos 11” foi comentada e chegámos à conclusão de que os seus métodos de trabalho passaram incólumes pelo 25 de Abril e sucessos subsequentes.
O Dr. Abel foi chamado lá abaixo provavelmente para receber a esposa. Estamos à espera do seu regresso e, entretanto, ouvimos na rádio a adesão do P.P.D. à manifestação contra nós, na segunda-feira. Foi pena que a miopia dos dirigentes daquele partido o tenha levado a um tal erro que por certo fará com que muitos militantes abandonem as suas fileiras e ingressem no C.D.S.
De facto, não acredito que a estúpida prisão de 31 indivíduos de bem, não deixe marcas, multiplicadas por numeroso grupo de familiares e a multidão dos amigos, fiquem indiferentes perante tal disparate.
Voltou o Dr. Abel com a notícia de que Saraiva de Carvalho nos queria mandar para o continente e que o general Magalhães havia-se oposto à decisão. Que as pessoas da Terceira têm criado bom ambiente às senhoras dos nossos colegas que cá estão.
O Eng.º Santos também lá foi abaixo ver a sogra. As notícias não foram das melhores. E nós não ficámos muito contentes. O optimismo do Dr. Abel é que é indestrutível. Enfim, deformação profissional...
O Gustavo Moura está muito abatido. Lamúrias ouvem-se de quando em vez da sua boca. Cada um faz as suas macaquices para o distrair e levantar-lhe o moral.
Mas as apreensões são grandes. Por mim, os problemas só começarão depois de estarem todos ouvidos. O que será que aqueles senhores vão decidir a nosso respeito?
Viemos do almoço com largo espaço de pátio. Hoje é Domingo! Aqui o optimismo é generalizado. Mesmo que seja tudo mentira. Contei 24. Faltam poucos para ouvir.
Consta que o comandante da guarda-fiscal falou em quarta-feira como o dia da saída.
Será mais uma das suas mentiras? Se calhar...
Chegam notícias de S. Miguel. Eufóricas, contraditórias, de esperança, de desalento. Tudo.
Povo de escravos: libertai-vos das grilhetas do passado.
Sigam o seu Spartakus, uma vez vitorioso.
Porque hei-de ser sempre o palhaço que ri de si mesmo?
Porque hei-de ser sempre o cobarde que emigra voltando as costas a si mesmo?
Porque deixas tirar da boca do teu filho faminto a magra fatia que levam da tua casa?
Porque ficas indiferente à tragédia da tua casa?
Porque hei-de ser marioneta do destino dos outros?
Rasga o velo do templo da escravidão.
Arquiva no chiqueiro do passado as grilhetas da tua miséria.
Ergue a cabeça.
Faz-te Homem. Nasce.
Fizeram de mim um revoltado, contra a minha cobardia.
Fizeram de mim um ódio vivo contra o que sempre amei!
Pobres medíocres. Fogos-fátuos de importância.
Bilingues da moral! Desertos de inteligência.
Arcazes de cobardia. Poços de iniquidade.
Sementes da Pátria. Adubos de Liberdade.
Rasga o velo do templo da escravidão.
Arquiva no chiqueiro do passado as grilhetas da tua miséria.
Ergue a cabeça, faz-te Homem. Nasce.
Fizeram de mim um revoltado contra a minha cobardia.
Fizeram de mim um ódio vivo contra o que sempre amei!
Saíram agora o Dr. Abel e Bruno Carreiro para receber visitas. Voltou Bruno com um livro. A Bíblia deu entrada nesta cela pela primeira vez. O Dr. Abel voltou com bolachas e com notícias de que a mulher do governador de Angra visitou a esposa no hotel. A entrevista que podia ter sido de conforto pela situação do marido foi transformada num autêntico inquérito sobre a actividade do Dr. Abel. Ao que esta gente desce.
Recebemos agora (o Dr. Abel e eu) uma visita. Para mim a primeira. O Sr. escrivão Jacinto Furtado, do tribunal de Angra. Não foi ninguém mandado pela Ordem dos Advogados. Um colega. Bolas, estão 3 (três) advogados presos (ou raptados como preferem dizer os meus colegas). Foi um escrivão de Direito. A estatura moral desse Homem aumentou. Foram 2 ou 3 minutos que para mim durarão até morrer.
Jacinto Furtado é o mais elegante dos escrivães de direito. A sua gravata às riscas, emoldurada por um impecável e sempre novo casaco com calças de igual cor. Os seus óculos escuros escondem olhos vivos sob uma testa alta a que vai desaguar uma cabeleira ondulada e já com algumas cãs. A rematar essa figura de gentleman londrino uns sapatos brilhantes e pretos.
Estava nervoso. E não era para menos com o espectáculo de metralhadoras, pistolas, grades, etc.
Disse-nos apenas palavras de conforto. Para mim porém valeram mais que o melhor dos discursos de Cícero em defesa dos seus constituintes. Não o esquecerei jamais.
Bruno e Victor fazem agora um repique de anedotas: é a do papel higiénico a da
portuguesa. Um número sem fim e sem registo possível.
Estão praticamente todos interrogados. Hoje o tenente da guarda-fiscal esteve no pátio depois do nosso jantar. Está deixando crescer a barba e veio vestido à civil. Fez um cumprimento generalizado aos reclusos que teve como resposta um olhar frio também generalizado.
O Gustavo Moura foi de novo chamado ao Comando. Desta feita veio transtornadíssimo. O pulha do director do Emissor Regional dos Açores fez um ofício à Comissão de Inquérito a denunciar o comandante Pavão de querer destruir os emissores daquele.
Uma pessoa que se dizia amiga e acamaradava com todos, sabendo preso um pobre homem objecto de suspeitas vem agravar, sabe Deus com que efeitos e intuitos, a sua situação e, se calhar, a de todos nós. Enfim, mais vale um pulha descoberto do que encoberto. Do mal, o menos.
A rádio deu agora a notícia de que havia sido assaltado um quartel no continente. Mais uma porcaria para nos prejudicar. Quanto mais complicações acontecerem lá fora mais sofreremos nós cá dentro. O Dr. Abel diz que não.
Hoje, Domingo, não nos permitiram assistência religiosa. Ouvimos missa pelo rádio. Até nisso foram desapiedados. Privar tanto católico dum conforto espiritual que faz tanta falta como o oxigénio do ar e que poderia ter-nos ajudado a passar este “cálix” com menos amargura do que aquela que sentimos, é falta de piedade que se insere na mesma moral que permitiu o nosso rapto de madrugada por patrulhas super-armadas. Que Deus lhes perdoe que eu não posso.
Aliás, devo dizer que não percebo a Igreja em Angra. Sede da diocese, prenhe de Sacerdotes e nem um veio ou tentou vir (que se saiba) até nós. A coragem dos discípulos de Cristo está de facto um tanto aquém da do seu divino Mestre. Nisto a
esquerda tem razão: a nossa Igreja está necessitando duma profundíssima reforma que incuta mais cristianismo nos que dizem servir o Filho do Homem.
Segunda Feira, 16.
Acordámos às 6 horas e um quarto. Reina entre nós um misto de esperança e de incredulidade. Será hoje, não será?
Já se contaram algumas anedotas. Ouvimos rádio; ouviram-se as notícias de Lisboa e açorianas. Após isso, começámos a pensar no significado da dupla visita que nos fez o aspirante d'Artagnan (de novo ao serviço) outro dia à noite quando já estava a dormir.
Consta que ontem houve uma reunião das forças armadas. Ignoramos em absoluto o porquês e para quês. Talvez hoje já se saiba.
Os mestres fazem um barulho colossal. Depois das 7 horas foi positivamente impossível dormir.
Ontem, caso curioso, serviram-nos o almoço à hora habitual mas o jantar foi servido às 18 horas, muito antes de termos fome. O almoço fora um bom bife com batatas fritas. Outros dias o almoço é cedo e o jantar perto das 21 horas quando já estamos com muita fome. Será isto uma forma maquiavélica de tortura?
Ouve-se aqui perfeitamente o ronco dos camiões diesel da tropa. Todas as vezes que esse barulho se faz ouvir o nosso coração dá um nó.
Tivemos pequeno-almoço: pão, manteiga e café com leite. Fomos todos para o pátio. Falta ouvir apenas o José Franco, Tomaz Caetano e os da Terceira.
A hora de pátio foi prolongada relativamente à dos outros dias, embora não tenha chegado em dia algum ao tempo legal.
Como estamos todos ouvidos e já não há mais ninguém incomunicável não percebo porque nos fecham nas celas. Houve quem dissesse que era para nos amesquinhar. Não duvido!
O estribilho do Gustavo é: “que chatice!”. Diz isso mais de uma dezena de vezes por dia. Compreendo perfeitamente a sua irritação porque sinto vontade de dizer o
mesmo.
Faz hoje 8 dias que aqui estamos nesta posição. Os lençóis da minha cama são os mesmos que o meu ilustre antecessor usava quando daqui saiu. Estavam sujos quando cá cheguei e, obviamente não estarão mais limpos. Bruno farta-se de se meter comigo criticando a pouca “alvura” da minha cama.
Pedi ao furriel de serviço que me arranjasse os lençóis. Estou pois a espera que eles venham mas a minha esperança é nula. O Gustavo reiniciou a sua actividade de escrever à máquina. É uma forma de desabafo como outra qualquer.
Das vezes que daqui saí para ir ao Palácio dos Capitães Generais, circulámos na cidade pelas ruas do trajecto que separava a cadeia do histórico edifício.
Nessa altura, vejo as pessoas e as ruas de outra forma que o comum das gentes e eu próprio quando me encontrava livre. O azul é mais azul e o ar é mais espesso. As pessoas não riem e o branco não existe. O som é mórbido e tudo é irreal. E Angra, a bela cidade de que eu tinha apenas as boas recordações de anteriores visitas sempre alegres, a última com a minha querida filha Ana Cristina, a luz dos meus olhos e alegria do meu coração cuja ausência me transforma num farrapo humano.
Cá estou eu a ceder à nostalgia e à tristeza. Não posso. Tenho que ser forte e impermeável, ao menos quando estiver aqui dentro.
Tomaz Caetano no pátio disse-me que explicou aos inquiridores a cena da minha ida ao quartel-general, convidado por ele. Dou graças a Deus por ele ter-se recordado das coisas como se passaram. Foi um acaso tão banal que podia ser até que dele não se lembrasse. Deus ajudou-me.
Embora os lençóis não tivessem chegado, fiz uma africanada: consegui meter a minha cabeceira dentro da fronha entretanto virada. Parece agora uma bola em aflições.
Ouvimos o noticiário. O Conselho da Revolução está no Alfeite. O COPCON enviou-lhe conselhos-tipo, pontos a ponderar. Ponderemos.
Tenho lido pouco por falta de tempo. Escrevo, converso e vou ali à casa de banho
lavar 3 lenços (a minha constipação continua teimosa), umas cuecas e um par de peúgas. Estão a secar.
A porta abre-se, Eng.º Santos, visita. Traz uma mala. A esposa está doente dos nervos, veio muito aborrecido como é natural. Estamos a confortá-lo de toda a maneira. O irmão do Gustavo foi para Lisboa, via S. Miguel. Parece que talvez se possa telefonar para casa esta tarde. Oxalá.
Nas coisas que a mulher do Santos lhe mandou vem um grande corta-unhas que Bruno Carreiro muito admirou pelo tamanho e atribuiu usos inconvenientes e menos decentes. Rimos muito.
E também rimos da reportagem do Pico sobre a manifestação de ontem. Nessa ilha onde, segundo o locutor, estiveram “centenas de pessoas” que protestaram contra os de S. Miguel que queriam levar o povo à escravidão. À miséria. Mas acrescentou que o povo tinha aproveitado para reivindicar caminhos, medicamentos, água, etc. etc. Tudo o que demonstra a fartura em que vive! Falou-se da Vila das Velas. Informáramo-nos de que apareceu escrito nas paredes F.L.A. /independência. Sem comentários mas com apreensão da nossa parte.
Aguardamos a hora do almoço. Já se ouvem os talheres e vozes lá em baixo. Que novas nos trarão? Tomaz e José Franco já estão no pátio.
Vim do almoço zangadíssimo! Os papéis selados que ontem assinei. Pois estes indivíduos deixaram os papéis em cima duma mesa do corredor central. Zanguei-me com o aspirante e com razão. Ele aliás deu-ma! Hoje é o último dia para contestar a acção do Tomaz Caetano, na Povoação e a falta da contestação faz-nos um mal tremendo.
Não sei, mas se estivesse nas mesmas circunstâncias, um pedido duma pessoa em más condições, faria tudo para que não houvesse mais agravos à sua situação. Tanto mais tratando-se de presos políticos cujas culpas se não são inexistentes são, pelo menos, mais que duvidosas.
A tarde cai calma e cinzenta e a nossa esperança não tem algum alento.
Os dias seguem-se chatos, iguais, monótonos e inúteis. Não disse o Furtado Rodrigues que nunca havia descansado tanto na sua vida?!
Mais noticias. Costa Gomes de volta da Roménia. A Assembleia Nacional. Sotto Mayor Cardia contra ataca os comunistas e o M.D.P.
Veio o “Açores” de 13, o Sebag diz que há telefonemas anónimos no sentido de serem executados dois continentais por cada um de nós presos.
Por outro lado eu compreendo a ânsia dessa gente. O micaelense é pouco diplomata e oxalá que isso não jogue contra nós, com essas brincadeiras de mau gosto.
Bruno Carreiro foi lá abaixo: uma visita. Quem será?... Já chegou era a família. Veio com uma mala vazia para encher com mil e uma coisa que têm vindo sendo trazidas para aqui; mais manteiga (Bruno morre e acaba por esse derivado de vaca ...) e bolachas.
Victor Cruz foi chamado a uma visita. Entretanto recordo-me que o Luís Moreira o da Padaria Branco, esteve esta madrugada vestido e de mala pronta julgando que a saída seria então. Tenho pena dele, que é continental e acredita nos seus conterrâneos.
Regressou Victor Cruz, era a Deolinda Rodrigues, irmã da Amália (a grande).
Mais uma sessão de anedotas. Lembrando-nos do C. Couto e do M. Oliveira e vários episódios já conhecidos ou novos para mim.
Mais notícias. Canto e Castro já está em Lisboa e com Melo Antunes farão parte do Conselho da Revolução, reunido em Alfeite.
Hoje choveu (fraco) pela primeira vez durante esta nossa “estadia forçada” neste paraíso luso.
E não vieram os lençóis; não ligam nenhuma. Estou a pensar em todos, todos, todos!
“Com razão ou à força” eis um princípio que a esquerda usou no Chile e que jogou contra ela. Julgo que é a única fórmula certa é: “com razão e à força” se bem que isto só deva ser empregue quando o absurdo estiver no poder.
O aspirante veio dizer que já podíamos telefonar. Hoje talvez não possa ser mas amanhã de manhã... Chove mais. Vieram jornais. Todos lêem. Rádio: Borges Coutinho chegou a Ponta Delgada.
Regressámos do jantar e do pátio. Foi até hoje a hora de pátio mais longa.
Tolerância absoluta; são 23 horas e 10 minutos. Estamos todos desnorteados. Ninguém percebe esta mudança de atitude. Atónitos estamos todos, pelo menos os que levam mais tempo a pensar do que a viver.
Na cela ao lado, Mont'Alverne montou um jogo de Bridge onde estão todos com ares profissionais... Vieram-nos fechar a cela. A manifestação em Ponta Delgada parece ter decorrido sem incidentes. Pode ser que isto nos venha a beneficiar pois que estou convencido que os motivos desta abjecta detenção são precisamente causar traumatismo psicológico na população, de molde a criar uma acalmia por ameaça a possíveis líderes de opinião e reduzi-los ao silêncio. Obtidos os objectivos, deve cessar a medida tomada, a não ser que venha a apurar-se qualquer responsabilidade em actividades criminosas, caso em que seguiria contra os indiciados a competente acção judicial, justificando-se assim a presença do Ministério Público na comissão em representação do Ministério da Justiça.
Entretanto, aguarda-se um comunicado do Alfeite onde está reunido o Conselho da Revolução na reunião mais longa desde a sua criação. A situação no continente é que não me parece nada brilhante e a teimosia em estabelecer grandes paralelos entre a reacção do continente e a Manifestação de S. Miguel é que é tola e me parece realmente prejudicial à nossa posição vista globalmente.
Segundo o aspirante de serviço, o comodoro vem cá amanhã de manhã e parece que por tal razão, os telefonemas que deveriam ter sido hoje e tinham sido transferidos para amanhã, ficam para a tarde. Eu gostava de telefonar para casa para sossegar o meu Pai que deve andar nervoso mas, infelizmente, não vejo grandes perspectivas.
É noite. Passos no corredor a esta hora! Gustavo Moura diminui o volume do rádio. Há qualquer coisa de estranho no ar. Angústia nos corações. Não. Parece ser a ronda.
Convencemo-nos disso e mesmo que não seja verdade ouvimos telefonia.
Vasco Lourenço ao Rádio Clube: muita (mas escusada) especulação sobre esta reunião; reunião de trabalho. Sairá comunicado? Não está previsto. Está a analisar-se. na generalidade, a situação interna; qual o papel do M.F.A. nos sectores económico-social. Não haverá governo militar!!!
Terça-Feira, 17.
Acordámos sem ter dormido quase nada, pois as lâmpadas mantêm-se acesas ainda.
Victor Cruz fala: refere-se ao nosso colega de prisão o Dourado de Vila Franca. Ele está sempre aos segredos. Não consegue falar com ninguém sem primeiramente chamá-lo à parte. E aqui neste presídio, mantém o método de «trabalho» que o Victor recorda vir dos tempos do Royal em que, diante de todos. o chamava por mímica, à parte; mímica essa que toda a gente, claro, percebia pondo em dúvida evidentemente a parte secreta da comunicação.
Ontem, Dourado chamou Victor à parte, no seu conhecido estilo secreto. Victor diz-lhe em voz alta: Dourado! Nós já estamos presos!
O Luís Índio (pai) continua com o filho mais novo no Hospital. Safou-se, por doença, do inferno da prisão.
Hoje, a manhã foi preenchida por Abel e Bruno Carreiro num «serão à micaelense». Não houve enredo que escapasse sobre separados, divorciados, e ... casos de longevidade. Até se falou de tremores de terra.
Subitamente depois do pequeno-almoço meteram-se todos nas celas. De repente, também, os aspirantes de serviço vieram chamar o Gustavo, Santos e Bruno para prepararem as malas e seguirem.
Destino: desconhecido! A mesma deselegância moral desde o princípio. O furriel porém (terceirense) diz-nos que lhe parece ser S. Miguel. Rezo a Deus, Nosso Senhor, que os leve até lá sãos e salvos.
O Santos está comovido ao despedir-se. Eu tive que lhe dizer qualquer coisa para o animar: - «Foi um prazer ressonar contigo». A tensão nervosa subiu perigosamente dentro de mim. Libertar-me-ão também? Estamos no pátio aberto desde manhã.
Saíram também Tomaz, Moreira, Dourado, Mont’Alverne e Menezes. Os terceirenses parece estarem incomunicáveis ainda.
Reina entre os militares uma descontracção inusitada; mantêm-se porém armados. Um soldado no 1º andar está sentando de cadeira perigosamente abraçado à sua G-3. Dei-lhe um chocolate. É um rapaz muito novo, deve estar altamente aborrecido com este plantão inútil. Estamos aqui há 9 dias e não houve da parte dos detidos, a mínima atitude de indisciplina.
Graças a Deus! Chegou a notícia de que António Manuel Amaral chegou a sua casa.
Almoçámos bacalhau outra vez. As celas estão abertas. Os soldados dizem que foi encomendado o jantar. O mais certo é ficarmos um dia ou mais neste suplício.
A ansiedade aumenta, a perplexidade também. Deus nos ajude.
Chegam-nos notícias de S. Miguel: A manifestação contra nós foi um fiasco, apareceu escrito FLA nas paredes e outras coisas do género. Aqui na Terceira idem, ao que dizem.
Os meus papeis ainda aí estão. Parece impossível!
Dr Abel veio da visita da esposa: notícias de S. Miguel: os que já saíram estão de residência fixa.
Estamos agora todos na nossa cela com as portas abertas. Tony, Câmara, Aguinaldo Almeida, Furtado Rodrigues, Domingues mais novo, Tavares Brum, João Gago da Câmara, Luís Índio, Oliveira, Gualberto, Dr. Abel e Pavão. Saem e entram e bebe-se cerveja (eu não, porque ainda não tinha feito a digestão). Aborrecido e muito British (com uma fleuma muito sua) estirado na sua cama e perante o vai e vem que as celas abertas proporcionam, o Luís Domingues diz que «esta cadeia perdeu todo o interesse…».
- Vi o João Gago e a esposa lá em baixo. Fez-me um cumprimento muito afectuoso. Tenho a certeza que esta nossa situação cimentou amizades indestrutíveis.
O optimismo do Dr. Abel é verdadeiramente espantoso. Continua a dizer que Manifestação foi a «a coisa mais linda. Palavra d’honra!» Lembra a cena em que Borges Coutinho pediu a demissão, depois do general ter dito, quando regressou da varanda: “Senhor Dr., Depois do que eu vi, a sua situação é /insustentável”. Foi a coisa mais linda, palavra de honra!”
Perguntaram ao Borges Coutinho se precisava de tropa. Este disse que não precisava da tropa para nada. Diz-se que um oficial que estava presente saiu, batendo com a porta ruidosamente.
Um dos terceirenses que esteve cá connosco saiu, ao que consta porque estava a deitar sangue pela boca. Ele é pequeno, a cara tem largos vestígios de bexigas. Anda sempre com um robe de chambre muito comprido e vermelho vivo, com o cinto dobrado em frente com dois atilhos compridos. Parece um frade psicadélico... Dá ares de um rapaz muito corajoso e além de ter a vantagem (ou desvantagem) de estar na sua terra tem aguentado bem incomunicável todos estes dias.
Mais noticias: o campo de jogos de Angra apareceu escrito de F.L.A. Hoje há um jogo importante com um grupo do continente; já estão a apagar. De qualquer dos modos prova-se ou começa a provar-se que esta detenção foi o erro político mais estúpido que se praticou nestas ilhas desde o liberalismo. Miopia histórica. Ignorância ímpar. Cretinice exemplar!
As notícias de S. Miguel são boas e más, ao mesmo tempo. Boas porque chegaram, a casa, os que daqui saíram e isso é o primeiro objectivo; e más, porque a chegada ao aeroporto é guardada por soldados armados: depois, são levados para o quartel-general, guardados e só então é que voltam para casa. É como digo: caminha-se de deselegância moral em deselegância moral. O que mal começa, tarde ou nunca se endireita. Por cima ainda lhes ferram com residência fixa! É o cúmulo!
Continuamos na cela, desta feita a ouvir o Pavão (comandante da SATA mas muito mais novo que eu) a falar das suas aventuras na Guiné. Parece-me que há aqui muita gente que andou na guerra da Guiné e portanto cimentou amizades indestrutíveis que são aquelas nascidas na adversidade ou no perigo.
Estou a compreender agora um pouco de tudo isto. Só o que me escapa continuamente é aquela mentalidade cega que não percebe e teima em não perceber.
Que os levem todos os diabos do inferno.
Na manifestação de Ponta Delgada pela rádio contra nós, ouvimos falar um operário da fábrica do tabaco que é conhecido por “engenheiro” e é árbitro de futebol.
O João Gago da Câmara lembrou-se de que esse indivíduo que tem 10 filhos, esteve na América e Canadá onde gastou tudo o que tinha por causa da sua má cabeça até perder casa e emprego, falou em 1969 depreciativamente do MDP/CDE, deu vivas ao Professor Marcello Caetano quando ele cá esteve. É preciso procurar fotografias no Nóbrega para desmascarar o tipo e as pessoas que nele buscam apoio. São mais uma vez os ignorantes e oportunistas. É preciso afastar duma vez por todas essa cáfila que só serve para desequilibrar a máquina governativa e o juízo dos homens. Deve ter sido ele quem denunciou falsamente o Eng.º Santos e o António Manuel.
Tenho estado a pensar que a única pessoa capaz de ocupar o Governo Civil de modo a acalmar todos e fazer a máquina funcionar com certo equilíbrio é o Costa Matos; só tem um contra: é que não aceita, porque não é tolo.
Segundo informação que conseguiram passar ao Pavão, não está previsto qualquer plano de voo hoje para S. Miguel. De dia, noite ou madrugada. Portanto não sairemos daqui tão cedo. Espero tudo. Tenho pena é dos meus. O meu vizinho Moreira que mora ao lado de meu Pai na Rua dos Manaias há-de ter-lhe levado notícias; oxalá que elas acalmem aquela gente.
Hoje resolvi não jantar. Comi maçãs, bebi um sumo, banana e bolacha deixadas pelo Eng.º Santos. Vou tentar dormir alguma coisa mas não tenho muitas esperanças pois eles deixam as malditas das lâmpadas acesas toda a noite e parte do dia.
Aliás, outros companheiros devem vir para esta cela colectiva para o lugar dos três primeiros que saíram. Calculo que o José Franco, o Luís Franco e o meu colega José Nuno. Vamos a ver o ambiente que se pode criar com eles.
Repentinamente somos chamados para as celas - são 19horas e 25 minutos. Pergunta-se, não respondem nada. Parece que é dia de festa e que os soldados querem lá ir.
Por outro lado, o José Franco, ocupando agora a cama que foi do Eng.º Santos, diz-nos que afinal em Ponta Delgada, sua filha levou o Dourado para casa pelo que não deve ser verdadeira a notícia de terem ido para o quartel general.
A porta da cela está fechada. Fala-se de Agar-Agar. Tento recordar-me da “Carta para longe” de Armando Côrtes-Rodrigues; faltam-me 3 quadras, tenho que rever o Poema de novo.
Já não posso mais ouvir falar nos relatos do inquérito.
Dormi outra vez de luz acesa. É um tipo de tortura de nos deixar a cabeça em molho e os olhos doridos.
4.ª Feira, 18.
Mais um dia. Discute-se economia, como se tornava inevitável dada a presença do José Franco na cela. José Franco é um indivíduo alto, de porte fidalgo, cabeça erguida com uma barba grisalha, olhos negros e muito vivos, nariz aquilino, portador duma voz sincera, com uma ressonância de quem fala apenas quando tem razão e sabe disso. Quando José Franco fala todo ele fala, mãos e tudo.
Luís Franco dorme e ressona. Apesar das lâmpadas e do sol que entra filtrado pelas grades. Mais um dia se vai arrastar na angústia da dúvida.
Fala-se em copiar a Suíça. Sonha-se. Penso nos meus. Penso em Deus. Peço-lhe que me liberte. Já.
Pequeno-almoço: café com leite com um bolo de passas que foi gentilmente cedido pelo Gualberto que aliás o ofereceu aos soldados e cabos (pelo menos) que o saboreiam gostosamente.
Já foi solto um dos rapazes da Terceira, o Paulo, com olhos muito claros. Que disse ter sido informado por um dos membros da comissão que antes de domingo estaria lá fora.
Mandaram-me para a cela como de resto aconteceu ontem antes da libertação dos primeiros nove. Oxalá que seja um bom augúrio. Deus o queira.
O tempo passa e nós na cela! Nada. É arrasante esta espera. Os minutos passam lentos e intermináveis.
O Paulo diz-nos agora que o comodoro que chega esta tarde levou para S. Miguel uma proposta para libertar mais uma leva. De modo que antes da tarde ninguém (se alguém) sairá daqui.
Como estará o meu escritório? O João Saraiva (meu chefe de escritório) deve estar a conduzir o barco. Mas, chegando ao dia 30, tenho que pagar os ordenados. Se pagar!
Diz-se agora que a lista inicial de pessoas a deter seria de 10. Mas que, não se sabe como, foram presos 30. Suspeita-se do Borges Coutinho ou da mulher que teria organizado em casa essa lista. Mas não é nada disso. Eu sei mas não o digo por não ser oportuno. Diz-se que estão a interrogar pessoas em S. Miguel. É natural. Não percebo, por isso, qual o critério que presidiu à primeira libertação.
Consta que dos presos que estavam aqui antes de nós e foram transferidos para o B.I.I. 17, um fugiu. Telefonou de Lisboa e parece que está na América agora. Que Deus o ajude. Seria falsificador de passaportes e documentos vários. Enfim, liberdade.
Novo aspirante. De cá. É muito popular entre os nossos colegas de presídio. Foi ele que levou ontem os libertos para S. Miguel. Diz que não há notícia quanto a nós. Estou a ficar com dores de cabeça. Isto não me está a agradar nada.
Dormi. O Conselho da Revolução continua reunido no Alfeite. Otelo e Fabião reúnem-se em Queluz. Mas segundo a E.N. não há divisão...
Discute-se política de novo. O Luís Franco tem uma tese interessante.
Almoço: Carne com arroz, uma hora de recreio. O aspirante (que continua a proibir
os telefonemas) mandou-nos regressar às “suites” numa ironia fina mas de muito mau gosto. O Pavão diz que amanhã há um avião militar que vem de Lisboa e regressa depois de amanhã.
Hoje o vento em S. Miguel é superior à capacidade do avião militar que faz a ligação com a Terceira. Portanto, a eventual vinda do comodoro deve estar prejudicada.
Caxias continua a ser o pesadelo, principalmente dos rapazes mais novos por cujo ânimo estou um pouco preocupado. Disse por isso uns disparates e fiz umas macaquices. Mas o efeito foi limitado...
São quase dezasseis horas. Tivemos que regressar à cela. Cá estamos, todos já deitados na cama. O José Franco não conseguiu dormir esta noite. O Victor também não, mas por causa da grande azia que sentiu.
Ouve-se o roncar do camion ou jipe da tropa. Ou será a camioneta da carreira? Mais vaie não pensar. Não tenho dito nada mas vou ler agora um Pato Donald qualquer, a ver se as dores de cabeça passam.
Visitas: José Franco e Dr. Abel vão receber as suas respectivas consortes. Às vezes ponho-me a pensar se não seria melhor a Maria de Fátima vir mas não; não quero que me vejam aqui. Peço ao Dr. Abel que diga à esposa para telefonar lá para casa. Oxalá assim lhes cheguem notícias. Pergunto ao aspirante (que afinal é de Chaves) se há novidades; ele responde: - “Sei tanto como os senhores”.
As dores de cabeça permanecem. E os mestres também; agora caiando os corredores da cadeia. Pobre gente, já se ri disto tudo. A um deles, que tinha um ferimento numa perna, já o Dr. Abel (apesar de advogado) lhe receitou uma pomada... Enfim exercício ilegal de profissão. Oxalá eles venham das visitas cheios de notícias. Mas acho pouco provável pois falam mais do que escutam...
Regressaram. Dr. Abel: saímos amanhã ao meio-dia. Já não acredito em nada.
Paulo Pacheco, da Terceira, confirma a notícia através do N. Barcelos do Rádio Club de Angra. A dúvida aumenta.
Joga-se às cartas na cela. Gualberto e José Franco perdem à Sueca com Manuel Oliveira (o “inocente”) e Tavares Brum... Esta situação provoca um silêncio sui generis.
Houve uma súbita explosão de alegria. Fala-se de lagostas. Cotizam-se. Aguarda-se.
Recordamo-nos de Armando Cortes-Rodrigues e Armando Goyanes lembra as seguintes quadras do grande poeta quando era seu aluno:
Armando toma juízo
Armando toma cuidado
Não troques o gerúndio
Pelo particípio passado;
Armando toma juízo
Armando toma cuidado
Armando se não estudas
Armando ficas chumbado.
A seguir invoca-se o coronel Soromenho e o coronel Joaquim de Sousa.
Contou o Gualberto uma cena passada a bordo do barco que nos trouxe. De facto, lembro-me que ele esteve em camarote à parte, durante algum tempo.
Pois um capitão de cor, depois de o fazer esperar mais de uma hora disse-lhe que estava encarregado pelo general de o interrogar:
- “O que eu souber, dir-lhe-ei, propôs Gualberto.
- Pois então diga-me, onde estão as lagostas? Inquiriu o capitão.
- Eh. o senhor está enganado. Eu sou regente agrícola, não sou pescador!
- O senhor quer falar de armas, não é? Não, não há nada disso”. E acabou o inquérito.
Mais um episódio anedótico que se regista.
Fala-se já no jantar. Cheira a comida. A fome é pouca. Portas abertas e música, cartas e sonho.
Deitei-me muito cedo, aproveitando a escuridão da cela, de modo que quando chegaram as santolas, com cerveja, música e padre, já eu tinha dormido profundamente umas 3 horas. Sonhei com os meus queridos filhos e minha mulher. Sonho como se fosse realidade.
Quando o aspirante Chaves veio fechar a cela “por motivos de segurança”, disse que amanhã seriam ouvidos mais 3 de S. Miguel, pelo que as perspectivas de libertação passam a ser um tanto remotas, pelo menos para os que lá forem ...
Quinta-feira 19.
Acordei às 6 horas. Tempo chuvoso. Céu cinzento. Os mestres começaram a falar às 6.30. Fui à casa de banho, lavei-me. Rezei muito; sonhei toda a noite com os miúdos e com minha mulher. As saudades são imensas. Estou à beira da loucura.
Ligo para o E.R.A. às 7 horas. Ouve-se música suave. Aguardo as notícias sem esperança e com um mínimo de curiosidade.
Estou a ficar desleixado. Ontem nem fiz a cama. Não tenho lavado a roupa. Tudo comandado, ao que julgo, pelo subconsciente que anseia e prevê uma saída. Tenho que passar a ter mais método porque o desleixo leva à loucura. O desmazelo desorienta e rouba a paz interior.
Dormem ainda o Luís e o José Nuno. Ouvem-se as notícias de Lisboa. Nada de novo. Mudo para o R.C.A., música outra vez. A minha constipação melhora.
Depois de um duche frio, José Nuno enrolou uma toalha no ventre e deitou-se na cama. Victor chamou-lhe “ Mahatma Ghandi”.
Fui lá abaixo fazer a barba, num ritual que se repete chato e monótono.
O Luís Franco tem 32 anos. Nunca pensei que fosse tão velho. Dava-lhe uns 27 anos. 8horas e 30minutos: notícias rio R.C.A. o sol começou a brilhar... lá fora.
Pequeno-almoço, o costume. Sol, 30 minutos. Álvaro Moreira, foi chamado a depor de manhã (às 9 horas). O aspirante veio chamar os irmãos Domingues para receberem visita da Mãe. Fala-se, de novo, em negócios nesta cela. Porcos, vacas, casas e mulheres. Que gente!
Recordo o Eng.º Vasconcelos Franco, pai do Luís e do José, que cá estão connosco.
Um homem muito interessante que conheci relativamente bem. Com sentido de humor muito vivo, apesar da idade. Um micaelense ferrenho.
Victor Cruz regressou dar visitas que esteve animando, como é moda aqui entre nós, pois eles vêm tão caídos que não há outro remédio. Ainda não regressou o Moreira. Já está de serviço o aspirante d'Artagnan. Estou farto, vou tentar ouvir notícias, são quase 11 horas.
Visita: recebi a visita do Dr. Álvaro Monjardino que, segundo ele, já cá esteve quatro vezes para tentar falar comigo. Ofereceu-se para telefonar para o meu escritório a saber se havia alguma necessidade e depois transmitir-me.
O preso que fugiu do 17 era cliente dele e telefonou-lhe de Lisboa a pedir-lhe a conta dos honorários…
Falei com a mãe dos Domingues que prometeu ir lá a casa. Também falei com a esposa do Dr. Abel que me prometeu telefonar. Lá fora, a mãe do Tony Câmara, a mulher e filha do José Nuno, a mulher do Oliveira. Mulher e a Mãe do João Gago (Baronesa da Fonte Bela), a mulher do José Franco.
Os três da Terceira (fora o Silvério Bispo) foram ao comando para serem reinquiridos.
Depois destes serão reinquiridos alguns de S. Miguel.
Vi da nesga da porta da rua, o mar azul do Atlântico, vi a histórica Angra do Heroísmo e o Monte Brasil. Meus olhos encheram-se de cor e saudade. O azul do céu rivaliza com o do mar e, se tirarmos o veludo daquele, ficam iguais.
Segundo o Álvaro, ele esteve na doca e no tribunal a ver-nos chegar: viu o Manuel
António (Padre, ao que se diz) e que foram os comunistas que fizeram barulho quando desembarquei... quando o encontrou à porta do tribunal, perguntou se ele andava a fazer piquetes. Disse que não, que estava a ver se conseguia, falar com o Gustavo Moura, de quem é amigo.
Regressou o Moreira filho, fizeram-lhe as mesmas perguntas que já das outras duas vezes lhe haviam feito. Ameaçaram-no com Lisboa. Parece, todavia, que o rapaz não fez nada e eu que o conheço desde criança, acredito!
Já passa do meio-dia, mais um perdido para a vida. O pessimismo invade-me com as dores de cabeça que não me largam desde que saiu a primeira leva.
O Gualberto soube que na sua ausência, a tropa e civis lhe revistaram o aviário em busca de armas!!!
Parece incrível, esta, gente enlouqueceu completamente. Foi de facto uma brincadeira de mau gosto falarem em armas, mas qualquer criança percebe que foi um bluff monstro e idiota. Querem ver que é por causa disto que nós estamos aqui! Parece impossível!!!
Fala-se de Dinis Afonso Miranda que não conheci mas que esteve na origem de fábricas de sabões, velas, máquinas de descascar amêndoa, pastas de dentes. Parece ter sido um génio. Sempre muito bem vestido. Com um raciocínio brilhante para sair das situações mais difíceis. Morreu sem pernas, que teve de cortar, por doença.
Tony Câmara entrou na nossa cela onde estão agora quase todos. Rapou a incipiente e jovem pêra, deixando apenas o bigode. Diz ele que por razões de alcofa. Acredito.
13 horas - Devemos estar prestes a almoçar. Os reinquiridos ainda não regressaram do comando. Aguardemos. Gualberto lavou a sala de jantar. Este homem é de facto inacreditável.
Ouve-se um rádio ao longe. Carpinteiro, comandante da SATA, na ordem do dia: - E ele diz coisas horrorosas a um dos colegas. E como este não responde diz-lhe: “Oh F... eu até tenho vergonha das coisas que lhe digo”.
O Victor Cruz diz que têm que o libertar antes de sábado porque ele precisa de ir à praça no Sábado, fazer compras...
Chegaram dois soldados. Fala-se no 17 que nós vamos embora hoje. Será verdade? Não quero acreditar. Mas peço a Deus que o seja. Oh meus queridos filhos.
Estou admiradíssimo com o comandante Pavão, ainda não falou na Guiné. De quando em vez tenho que pedir circunspecção porque a linguagem se aproxima perigosamente (se não ultrapassa) a de caserna.
O Dr. Abel diz que temos que nos ir embora por questões de higiene (os lençóis desde que a gente chegou ainda não foram lavados ou mudados).
Almoçámos frango assado. Estava bom. Diz-se para aí que o avião militar segue hoje para Lisboa. Oxalá não nos leve!
Vim para a cela, não porque me mandassem mas para escrever qualquer coisa. O quê não sei. Ouço rádio e o José Nuno.
O Aguinaldo foi telefonar ao Pai. Diz que no Canadá reina grande indignação pela nossa prisão! Não é para menos. Aguinaldo é um rapaz novo (23 anos) muito forte, pelo menos na aparência. Muito triste. Muito inteligente e muito calado. Diz-se que tem talento. Eu acredito.
Na porta da cela 19, onde está Waldemar Oliveira, está escrito pelos respectivos ocupantes: "Escola de insultos, entre e confirme!”
Dores de cabeça, angústia. Se ao menos eu fosse culpado de algum crime a minha consciência, virada remorso, haveria de justificar ao meu cérebro esta triste e incrível situação. O rádio dá música. Uma sonata. O piano chora; lembro-me do meu sogro.[1] Como eu faria tudo para o estar a ouvir agora mesmo que estivesse três horas com Chopin ou Beethoven, seguidas.
Eles em S, Miguel. ao que se soube, têm ido a casa das pessoas às tantas da manhã fazer buscas. Devem estar há procura de armas.
A rádio dá um minuete que o meu sogro costuma tocar no piano a meu pedido, quando em festas de anos queremos dançar à antiga. É bom imaginá-lo. Ele deve estar fulo!
Victor Cruz teve um ataque de método agudo e endireitou as duas mesinhas que temos. Por cima forrou-as e dividiu o tampo em seis partes com os nomes de cada um de nós.
Numa das janelas da prisão do 1º andar, no corredor da nossa cela, está um vidro partido e no vão da janela um ninho com 2 ovos de pomba. São quase tão grandes como os de galinha. Pobre pomba, vieste fazer ninho à criação mais lúgubre do género humano, aquela em que o homem rouba dias à vida do seu semelhante.
Lembro-me dos meus tempos de estudante de direito penal. Há um princípio geral que nos diz: mais vale mil criminosos à solta do que um inocente preso. Na verdade, como em tanta coisa, isso é um princípio que de nada vale. Estou para aqui a apodrecer sem ter violado uma única lei (e estou a referir-me à legislação revolucionária); talvez esteja a ser castigado pelo meu amor exagerado ao torrão Natal. Amei mais a terra que os meus filhos. Devia ter pegado neles e fugido como fazem os cobardes e talvez me dessem então valor. Mas Deus é bom. Infinitamente. Há-de ajudar-me como sempre o fez.
Ouve-se ao fundo o martelar impiedoso dos mestres. Algum cano que vasa. O lixo no pátio amontoa-se desde que para aqui viemos. A mosca já entra pelas janelas. Se as fechamos, abafamos. Se as abrirmos, moscas. É tudo assim.
A cela colectiva, aqui ao lado, a “Escola de Insultos”, era ao que julgo escola da prisão, tem quadro preto, carteiras, mapas etc.. Tudo eles puseram no corredor para poder estender as camas onde se deitam.
A minha carta para o Sr. Bispo d'Angra não seguiu. Fartei-me de pedir aos aspirantes que a mandassem. O meu telegrama para a Ordem também não. Os meus colegas não foram de opinião. Eu não insisto, que nestas coisas da classe manda a maioria.
Desde que o Gustavo Moura saiu, deixámos de ter informações. Pouco ou nada se sabe. Ele também não quis (ou não pôde) mandar-nos o “Açores” para aqui enquanto estivermos nesta situação.
Quando lá chegar, corto-me do Diário dos Açores que achou por bem dar alarde à notícia da nossa detenção. Parece impossível que gente a quem eu dei tanto trabalho tivesse estômago para tanto. Falta de coragem é que é. Por isso terão pelo menos uma assinatura: a minha. O Dr. Abel diz que se não corta porque o pessoal do Diário está seguro na sua companhia... É o velho e arcaico sistema económico-social de S. Miguel, contra o qual as gerações mais novas se rebelam com toda a razão.
O Dr. Abel continua a ser um optimista sistemático. Eu por mim já estou insuportável para mim mesmo. Mas não sou feito de palha. E uma injustiça custa muito a sofrer, principalmente se ignoramos as razões que estão por detrás dela.
Aliás, quanto mais penso nisso parece que enlouqueço. Mas não, jamais farão de mim um oportunista qualquer que seja a opinião que tenham de mim. Quero ter confiança nos homens. Oh Deus. Eles são todos Teus filhos. Mas... nem quero pensar.
Começa agora o tormento das moscas.
O José Nuno traz a notícia de que saímos amanhã. Já não acredito em nada! É tudo mentira. Tudo. Lembro-me agora da peça “O Rinoceronte” dum autor famoso cujo nome agora me não recorda. Calcula-se como está a minha cabeça. Também não quero ser Rinoceronte. Recuso-me a ser o que olha só numa direcção. Jamais! Oh Deus que me deste a liberdade, não permitas que ma roubem.
O Aguinaldo veio sentar-se um pouco ao pé de mim para ouvir as notícias do ERA. Nada de novo! Levantou-se e saiu. Quantos sonhos albergarão aquela cabeça?
Casado de tão novo, afastado à força da mulher que está a espera de bebé para estes dias. Esforço-me por lhe dar, em catadupas, conceitos de justiça. É que uma injustiça é fonte permanente de injustiças, se a vítima não está bem preparada. Esta gente esteve na guerra colonial à força. Prendê-los agora é vitupério.
José Nuno lembra a Universidade. Cenas engraçadas. As alemãs. A Madame De Gaulle. Bons tempos! Lembro-me do pistoleiro, um condiscípulo nosso da Faculdade de Medicina, com mais de 50 anos, de aspecto sebento e com uma horrorosa pasta de cabedal que além de comida levava duas lendárias pistolas. José Nuno costumava esconder-se numa esquina de dedo estendido, gritava-lhe:“bang, bang!”. Um louco. Bons tempos!
Quantos colegas meus desse tempo (Jorge Sampaio e Macaista Malheiros) não estarão no poder? E que nunca foram presos na outra situação, apesar de tudo.
Lembro-me de Medeiros Ferreira hoje deputado e que foi meu colega no Liceu e condiscípulo (em letras) na Universidade que porém esteve preso. Mas ele era solteiro. Sou muito amigo do pai, sargento guarda-fiscal reformado, nadador, membro do grupo que vai a piscina de Verão e de Inverno. Trabalha na Estação de Serviço da Mobil atrás do Teatro (Nicolau de Sousa Lima), um homem sério sempre detestou Salazar e com uma cultura invulgar para a sua situação. O filho disse-me um dia que apesar do fosso ideológico que nos separa, me estimava; sempre lhe paguei na mesma moeda. Tinha rasgos de génio. Lembro-me dum discurso feito por ele no Estádio Universitário de Lisboa, na qualidade de Secretário-geral das R.I.A., em que pôs em cheque a filosofia do Ministro de Estado Correia de Oliveira, achando-a “estranha" num acto de coragem que havia de valer-lhe a prisão de que falei.
O regime de Salazar tinha arestas e agudas, mães das injustiças sociais que germinam sob qualquer ditadura. A daquele não faz excepção a isso. E a sua miopia quanto ao futuro é que foi a culpada da actual crise profunda que o país atravessa. Se em vez de ter atrasado a marcha da história, a tivesse deixado seguir o seu curso natural, o dique não tinha rebentado com a força que se está vendo, para mal dos que serão levados pela correnteza de ódios e quimeras incontidos.
A mulher do Aguinaldo está à espera de bebé como disse. Ele quer ajudá-la, estar ao pé dela quando nascer a criança. Falou-lhe ao telefone. Choraram. A mãe está em risco de ser internada por causa da situação dele. Um inferno em vida. Que penar tão absurdo e inútil. Vê-lo, gigante, e quedo como um soldado indisciplinado que pertenceu ao mesmo exército que o prendeu agora, faz dilacerar o coração .. Aos 23 anos, cheios de ideais (os seus olhos muito escuros não fixam o perto), vêem longe o dia da sua realização.
Entrou Victor Cruz na cela com uma lufada de ar fresco. Palpita-lhe que saímos todos (ou alguns) amanhã! É sempre a mesma coisa mas soa como música celestial.
Sousa de Oliveira o homem que sendo cientista, idealista da extrema esquerda que antes me parecia um romântico, agora surge-me como uma figura quase «sinistra».
Magro, alto, homem de gadanho, homem dos Arrifes nascido na América, nutria por este país um incompreensível ódio sobre humano. O seu marxismo era feroz e incontrolável. Entrava em transe quando discorria sobre a revolução. Tempo houve em que o adorei como cientista (quase insuportável) rigoroso e profundo. A arqueologia surgia nele natural, científica, linda. Hoje que a revolução dele está a acontecer e que os meus ideais são triturados por ela, espezinhados sem contemplações, sinto por ele a indiferença dos mártires perante os leões que os devoram. Canto. O martírio é sementeira de heroicidade. Hoje somos os mártires. Amanhã virão os heróis...
A loucura dele tinha algo de paralelo com a de Borges Coutinho. Com uma diferença: Sousa é um puro. Ou melhor: era. Hoje não sei!
Contava-me ele que tinha oferecido à sua Mãe o livro intitulado «Mãe» de um famoso teórico do marxismo que julgo ser Gorki. Aquela que o sabia em Coimbra, volvido ateu, e revolucionário, desabafou com ele dizendo-lhe que gostaria tanto de lhe queimar os livros, fonte do ateísmo que a matava aos poucos: Sousa ordenou-lhe que lhe devolvesse o livro pois “ela não era digna de o ler”. A boa senhora fê-lo entre choros e lágrimas que não tiveram o condão de quebrar a rigidez de pedra do coração do então jovem revolucionário. Sousa porém adorava os pais. E hoje, as suas sepulturas são religiosamente mantidas com o seu magro vencimento de professor de ensino secundário. A casa deles está intacta com tudo o que existia no tempo em que vivos eram.
Nunca compreendi o Sousa dos Arrifes (como ele gostava de ser tratado por meus filhos que o adoravam). Ainda hoje para mim é um enigma indecifrável.
18 horas: notícias. Aguarda-se o comunicado do Conselho da Revolução que está a ser elaborado por uma comissão especial. Assaltaram um banco em Aveiro. 700 contos ao que parece. Depois notícias sem interesse de maior.
A esposa do Dr. Abel falou com a Maria de Fátima. Estão todos bem. Os miúdos já sabem. Patrícia (julgo eu) deve ter lido nos jornais. A minha angústia aumentou. Só Deus é que sabe. Só Deus e eu. Não choro por vergonha. A minha tristeza não tem limites. Peço a Deus que faça passar pelo mesmo todos os culpados por isto. Que sofram como eu sofro! O meu Deus! Ó meu Deus!
Acabaram as notícias. Ouve-se lá em baixo o barulho dos arrumos para a refeição. E os minutos passam lentos e eternos. E as horas, e os dias!
O apetite falta-me. Jantarei porque me faz falta. Sinto-me aqui por não trabalhar, pouco merecedor da comida. Até hoje, desde que me formei nunca tomei uma refeição que não fosse compensada com trabalho.
Na cela ao lado, José Franco fala de vacas. Escreveram por isso no quadro da escola a que me já referi, o seguinte:
O Zé Franco pr’a cá estar
Tem que falar de lavoura.
Quando tiver que se calar
Não cala, estoura!
Não sei se a métrica está certa. Mas o conteúdo está.
Bruno Carreiro fez-nos falta aqui com os desabafos! E histórias. E bom humor. Chego a pensar que foi pena ele ter sido libertado. O bicho que saiu esta semana foi o “cavalo”, o 43. Com efeito.
Como estará o meu escritório? Como estarão os meus clientes principalmente os de processos-crime? Que fé podem ter eles num advogado que foi parar à cadeia? E eu que tinha sido chamado à Cadeia de Ponta Delgada por um pobre recluso que precisava de assistência.
Calculo a perplexidade e risota que aquele espírito terá sentido com a notícia da minha prisão.
O dr. Abel faz recordações. Hoje acho-o muito triste, oxalá que ele não tenha recebido más notícias...
Armando Goyanes parece uma fera enjaulada. Suas mãos enfiadas nos bolsos horizontais com os polegares de fora. Anda de um lado para o outro com o seu fácies flamengo, cabeça abatida e balanceando. Pensa. Sua mãe parece que está doente. Chamaram 16 para o jantar. Victor aproveita pois a sala fica muito porca depois da refeição.
Jantámos: peixe e sopa de feijão habitual. Depois do jantar o regime foi libérrimo. Pátio à descrição. Celas abertas, até ás tantas.
O aspirante fala numa possível libertação amanhã. Notícias de S. Miguel dizem que o comodoro referiu a libertação de todos amanhã. Acho muito queijo por um escudo. Aguardemos. Pois mesmo assim não há nada a fazer.
O corredor interior está cheio de visitas. Guiod de Castro e esposa. Todos os outros têm as esposas e um deles, os filhos do tamanho dos meus. Parte-se-me o coração ao vê-los.
Um grupo sentou-se frente a frente no sofá e no coxim do pátio. Falou-se de tanta coisa. Victor Cruz estava com frio. Gualberto sentou-se junto dele. Segundo aquele, sentiu-se como se estivesse a ser “chocado”. Convém esclarecer que Gualberto tem criação industrial de pintos...
Depois viajámos pelos Estados Unidos, Canadá, Suíça até que, quando falámos de Genéve, o Pavão entrou a matar com Bissau e a Guiné adjacente e esmagou a conversa com aviões durante quase meia hora.
Vim deitar-me, ou melhor, encostar-me, e cá estou a escrever no que espero seja um dos últimos horríveis pesadelos neste inferno.
Segundo José Franco, eu, ele e mais dois ficamos cá. Não percebo o critério dele. Diz que o Borges Coutinho não pode comigo. Não percebo. Aliás não percebo nada disto, desde o princípio. Maldita a hora em que os continentais se lembraram de mim. Se cá estivessem pensariam da mesma maneira que eu. São andorinhas que vêm na Primavera para sujar os beirais. Nos Açores não há andorinhas de verdade. Há destas!
Na cela 19 ouvem-se as gargalhadas sonoras de João Gago e Tavares Brum a espaços de 5 a 5 minutos, adivinhando-se que alguém (Oliveira, o inocente, talvez) conte anedotas frescas.
O avião militar seguiu para Lisboa hoje sem nós!
A conversa do José Franco faz-me pensar (e depressa) em que espécie de barco o destino me terá colocado. Herói à força é coisa que nunca quis ser. Nem herói nem mártir. Mas o que está escrito na sina há-de ser cumprido mesmo que se não queira. Terei preenchido algum vazio nesta terra? Não parece que eu tenha qualquer espécie de importância que permita tal conclusão.
Sexta-feira, 20
Perto das sete, alguém abriu devagar a tranca da porta. A noite foi passada razoavelmente. Dormi bem. Apaguei as lâmpadas como ontem (desatarraxando-as). A euforia é geral. Todos estão convencidos de que se vão embora hoje. Oxalá que a desilusão não seja, por isso, maior ainda.
Estão as celas todas abertas.
Mas as notícias são contraditórias. Hoje diz o Silvério Bispo que a viagem do avião de Lisboa foi adiado. Será para nos pôr em S. Miguel ou Lisboa?
A dúvida mantém-se de qualquer modo. O arsenal de granadas ofensivas e lacrimogéneas, etc. que estava na cozinha terá partido hoje. É bom sinal… No pátio, alguns conversam. O cheiro do lixo torna-se insuportável pois apodreceu já completamente sem que ninguém pareça preocupado com isso. Conta o Gualberto que o Gruppen Fuhrer o fechou na cela, de castigo, por ele ter feito uma reclamação e que pintou as grades duma cela para ver se o nosso companheiro tocava na janela. E como isso aconteceu, castigou-o, mandando-o para uma cela isolada.
Notícia do Emissor Regional dos Açores (E.R.A.), um comunicado do general em que se anuncia a satisfação das reivindicações da lavoura, agricultura e pescas. A Manifestação foi ilegal; os que eles julgaram ser os seus organizadores, estão presos ou de residência fixa... mas fazem-lhes a vontade. Pudera...
Ontem à noite ouvimos a BBC e a Deutschewelle, que consideraram a situação, em Lisboa, anárquica e em perigoso equilíbrio.
O Dr. Abel propôs que todos nos tratássemos por “compadres”. Estão todos, compadre, para aqui, e compadre para ali. O Victor diz que: - “Só existem duas pessoas inteligentes, nesta terra, uma é “mê” compadre e a outra é quem “mê” compadre disser”.
Voltam as dores de cabeça. A desorientação em minha cabeça é total. Esta gente mesmo não vê o mal que nos está fazendo e o fosso que está cavando?
O homem nunca aprende, a sua falta de conhecimento é a causa da maior parte dos males. Por isso, o povo há-de ser bombardeado com livros e ensino até à saturação. Sem conhecimentos grandes, generalizados, não temos hipóteses de progredir. Guerra absoluta, total e absolutamente prioritária ao analfabetismo. Que ninguém ignore uma vírgula da História desta terra e deste povo, das suas potencialidades económicas e sociais. Só quando tivermos a consciência do que somos e como somos, o que temos feito, o que podemos fazer e o que temos de fazer a curto e médio prazo é que poderemos construir algo de grande pela Causa Açoriana.
A política do compadrio tem que ser substituída pela política do interesse geral.
A política do improviso tem que ser substituída ela política do planificado. A política da mentira e do embuste tem que ser substituída pela política da verdade total. Que todos tomem consciência de todos os dados que concretamente formam a estrutura e movimentam a conjuntura da nossa sociedade!
Temos que entregar metade (ou mais) do nosso orçamento à educação, isenta, imparcial, humanista e técnica do nosso Povo. Há que bombardeá-lo com cultura, sistematicamente. Até à saturação!
E isto pode e deve ser feito concomitantemente com o aproveitamento de todas as potencialidades económicas da terra, para que jamais em tempo algum seja quem for tenha que emigrar por necessidade. A emigração há-de tornar-se um acto de vontade e nunca um acto de desesperada necessidade.
Este terá de ser o nosso processo revolucionário. Fora deste esquema, as revoluções não passam de formas utópicas mais ou menos disfarçadas do domínio do homem pelo homem. Porque este domínio existe quer se trate de mando económico quer se trate de mando político.
Eu tanto sou dominado quando tenho que pedir para comer como quando me prendem por terem medo da liberdade que cinicamente me concederam.
Temos que deixar de ser marionetas de interesses alheios.
Deixem-nos viver. Sermos nós próprios e não imagens pálidas e macaqueadas de seres distantes e estranhos.
O Victor Cruz queixa-se que a cela cheira imenso a bafio. Neste aspecto a minha teimosa constipação tem-me ajudado imenso.
Longos trabalhos nos esperam. Dissenções e contendas nos hão-de separar. Mas estou convencido que aquilo que nos separar agora alguma vez nos há-de juntar mais tarde. Irmãos seremos sempre em Ponta Delgada, em Fall River, em S. Leandro ou Toronto.
Ontem à noite disse algumas palavras amargas ao aspirante d'Artagnan que é do Pico. Espero que ele tenha sentido, na sua carne, a dor que todos estes padecimentos nos causam. Para que não esqueça ele a afronta. Muitos na cela não gostaram do que eu disse. Talvez o considerem inoportuno. Mas, até hoje, nunca me movi por critérios de oportunidade ou oportunismo. Acho que o agir do homem deve assentar nas traves mestras da filosofia da vida em que nos integramos. Isso é a estrutura. Ressalvada e respeitada esta, torna-se difícil preocupar-nos com a cor das telhas...
Para que se não esqueça e se não perdoe. Porque eu acredito que a verdade é semente poderosíssima que por mais maltratada, esquecida, triturada, esmagada, escamoteada ou calada há-de sempre germinar com a força incontida do furacão que tudo derruba e não há forças humanas que a dominem.
Paz e amor são dois conceitos e duas sensações que não se concebem num ser único. Para existirem têm que existir aqueles com que possamos viver em paz e aqueles que possamos amar. E tudo vai centrar-se neste campo: tentar evitar que Marte e as Fúrias saiam dos seus templos e derramem o fel das suas existências entre nós.
Que Deus nos dê forças para dominarmos a raiva dos corações sangrados.
Vou lá a baixo. Quero respirar a liberdade, mais de perto.
Pouco tempo afinal, pois d'Artagnan saiu tendo entrado um aspirante de serviço que, segundo as informações que nos trazem de baixo, é boa pessoa, tão boa que nunca o deixaram entrar cá de serviço. Como consequência desta mudança tivemos que “recolher” às celas. O almoço já está encomendado. Ainda não é desta.
A comissão está a deliberar. Oxalá que eles se capacitem de que nem sempre quem tem a força das armas tem a força da razão. Caso contrário quando uma baioneta raciocina, só pode ser convencida por outra. E nesse campo estamos perdidos pois a única força que conhecemos é a da razão.
Voltou o aspirante novo. O tal. O bom. Chamou o José Nuno e o Oliveira. Visitas. Recomeça a rotina. Sinto de novo o tempo correr lento e penosamente. Todos lêem. João Gago ouviu o comunicado do general que foi de novo transmitido. Ficou furioso pois que a sua sugestão foi atendida mas ele está preso!... Os seus lábios já de si estreitos mas desenhados com nitidez e capricho, desapareceram, transformando-lhe a fisionomia normalmente serena num esgar de dor e nervos. Seus olhos, por detrás duns óculos de aros castanhos que sempre traz, brilharam com uma tonalidade estranha.
Vi-o junto à mulher, lá em baixo. Pobre senhora, muito há-de sofrer com tudo isto. Eles têm muitos filhos e, segundo consta, amam-se muito. A mãe do João, a Baronesa da Fonte Bela, vem sempre no seu porte finamente aristocrático, um ar de “finesse” e a frieza de olhar que caracteriza a velha nobreza micaelense. A sua toillete impecável, remata-se nuns brincos muito sóbrios e belos, única jóia que traz, janelas abertas para a que foi uma das maiores fortunas desta terra. Segundo se diz, ela afirmou que o seu lugar era ao lado do filho. Estas atitudes de grande dama são no fundo exemplos a recordar por todas as mulheres açorianas.
11 horas. Duas visitas à cela, inesperadas e agradáveis. Duas pessoas de S. Miguel que já estão há dias à procura de oportunidade para nos visitar. Hoje o aspirante Manteiga (que é de S. Miguel) deixou obviamente a visita. Gilberto Reis e o sr. Lima. Pobres amigos. Suas caras não escondem o desgosto de nos verem nesta desgraçada situação.
Fui lá abaixo. Falei com escrivão Manteiga. Nada consta.
Fala-se já em amanhã! É o ciclo infernal. Estou positivamente arrasado. Não sei quanto tempo mais resistirei. Acabou a hora de visita. Resta esperar pelo almoço
Espera longa e estéril. O Silvério Bispo foi de novo chamado a declarações, na sequência dum misterioso telefonema que o aspirante recebeu e que o Goyanes anunciou nervoso.
Lá fora, João Gago e Tavares de Brum limpam os corredores. São embrulhos e embrulhos de lixo. Conforme o João diz, porque vamos ficar aqui muitos dias: João Gago tem sido o mais pessimista de todos. Julga-se o grande culpado de tudo, o seu desânimo não é porem contagioso, porque ele se fecha num mutismo impressionante mas como veste sempre roupa impecavelmente limpa e passada, disfarça o que a fisionomia deixa transparecer.
13 horas e 15 minutos, o almoço ainda não veio. Será isto sinal de que algo de diferente se passa?
Francisco, o ajudante de pedreiro, ajudou o João a lavar a casa de banho que estava um verdadeiro nojo. Isto é, pois, um modelo de prisão política!...
Fala-se em porcos. Luís Franco tem uma raça nova e já me autorizou a mandar lá as porcas que eu tenho de sociedade com o João, marido da nossa ajudante Isabel.
Ouço carros lá em baixo; deve ser o almoço. E era. Carne. Depois uma pequena discussão com o José Franco sobre a nossa situação em que eu defendi um ponto de vista político jurídico e ele um ponto de vista leigo mas prenhe de razão. Segundo ele estamos presos por vingança.
Passou-se uma boa tarde. Telefonei e falei com todos à excepção de meu Pai e de meu filho Francisco. Até a avó Leonilde que atendeu, falou comigo fazendo, é claro, um pedaço de pranto que deve ter deixado todos nervosos. Minha querida Mãe falou comigo pela primeira vez desde que me encontro nesta situação pavorosa. Estava evidentemente nervosíssima, disfarçando como é seu costume, falou-me para me animar. Minha querida Mãe, como eu lamento que tenhas passado por esta dor. Não tiveste muita sorte com este teu filho. Paciência. Deus que é bom há-de compensar-te sem limites.
Fui telefonar ao tribunal e como a porta interna estava fechada tivemos que ir pela Rua. Tive uma pequena sensação de liberdade enquanto saí daqui e me dirigi ao Tribunal. Neste, falei com o chefe da secretaria que me cumprimentou muito cordialmente, o que me fez muito bem. Também lá encontrei um colega (muito mais velho) cujo nome ainda não retive apesar de lhe ter sido apresentado uma vez em S. Miguel. Ao regressar encontrei Francisco Noronha com os seus óculos verdes com aros doirados (Ray Ban) trouxe-o a reboque para dentro da cadeia, e no pátio foi recebido pelos pares que lá se encontravam.
Victor Cruz confidenciou-me que havia um fenómeno que muito o intrigava. É que ele não tinha percebido quem é que a mãe do Tony Câmara vinha visitar cá dentro uma vez que o filho nunca saía da cela para a receber. Mas que afinal tinha descoberto. Vinha cá visitar a senhora Baronesa da Fonte Bella.
A ironia é fina, sabendo-se que o Tony está cá dentro (e recusa-se a receber visitas seja de quem for). Fui logo levar a piada a D. Graça Câmara e à Baronesa que muito se riram.
A mãe do Tony até veio ao pátio para “dar uma canelada”, no Victor que entretanto, com a corda toda, nos fez rir a bandeiras despregadas. Estou agora na cela onde me vieram anunciar o jantar: bacalhau! Vou-me vestir (a rigor) e descerei para escândalo geral. Espero que isto esteja a acabar breve, pois é impossível eternizar-se uma situação tão desagradável e desconfortante como esta.
Jantámos. Graças à boa vontade do aspirante Manteiga que todos respeitamos por ser humano e educado. É um rapaz muito novo. Quem não soubesse dar-lhe-ia apenas 18 anos. Alto, muito magro, olhar bondoso e andar desengonçado. Vemos nele apenas um conterrâneo e um amigo. Das poucas sensações não desagradáveis que daqui trago é a deste homem. Que Deus o faça um bom açoriano.
Sentamo-nos no pátio em vários sofás de madeira trazidos quase todos pelo diligente Gualberto. Fizemos um círculo e conversámos imenso. Brum obrigou-nos a tomar brandy. Victor Cruz obrigou-me a fazer imitações de Salazar. Oliveira contou anedotas, rimos imenso. E eu fugi para a cela porque é triste vermos tanta alegria e não podermos partilhar dela.
José Franco, coração grande, notou a minha fuga e veio saber se se passava alguma coisa. Ele compreendeu a tristeza que me invadiu súbita e quase inexplicavelmente.
Esta merda não termina! Perdoa-me meu Deus mas eu não posso mais. Isto é superior às forças humanas. Os jornais enchem-se de notícias de que o Governo se debruça sobre nós. O único lenitivo a este isolamento é que o sacrifício de uns tantos teve como resultado o bem de nós todos, no arquipélago.
Sábado 21.
Fui acordado às 6 horas pelo aspirante Manteiga para dar-me a notícia de que iam quatro para S. Miguel: José Franco, Dr. Abel, Goyanes e Luís Índio (pai). Foi um alvoroço incrível: O Dr. Abel declarou logo que só iria se fossem todos. Goyanes disse que trocava o seu lugar por outro.
Todavia eu fiz força para irem todos. Penso que serão mais úteis lá fora do que aqui dentro. Lá foram, ficando de nos comunicar pelo telefone e interposta pessoa se foram na SATA ou avião Militar. Se foram na SATA temos hipóteses de ir na outra SATA. Se foram no militar a coisa é mais grave e então temos de nos convencer que isto é para mais tempo ainda.
Novo aspirante agora com recomendações do aspirante Manteiga. Parece muito boa pessoa. Pelo menos não interfere.
O filho do Luís Índio (o mais novo) regressou do hospital. Vem mais magro. Do muito que contou fixei que faziam telefonemas para o quarto para os provocar, pois ninguém respondia quando se levantava o auscultador. Eles suspeitaram dos indivíduos do MES (enfermeiros, etc.).
Consta, por outro lado que aqui em Angra, ontem ou anteontem, foi espancado um indivíduo do MES.
Visitas: a mulher do Álvaro Monjardino com quem gostei imenso de conversar. Disse-me que o marido também estaria numa lista de indivíduos a serem presos, cá. Porque todos os indivíduos de alguma influência pessoal, tinham que ser presos para acabar com essa influência. É este o tipo de raciocínio diabólico que agora se faz nesta terra. Ao que nós chegámos!
O Senhor Paim que conheço muito bem, também cá esteve. A filha veio da América e traz notícias de que por lá andam todos a mexer-se. Jornais e tudo.
Álvaro Monjardino veio até ao pátio. Identificou-me o colega que vi ontem, o Dr. Osório de Carvalho. O Álvaro telefonou para o meu Pai a saber se precisava de alguma coisa. Notas de nossa conversa:
“Uma Nação em “hold up”. Quando falam comigo levanto os braços e digo: - arrume o seu medo que não estou armado…”
O sol brilha outra vez.
“Oligofrénicos dominam este país!”
Longo comunicado do Conselho da Revolução. Informam de Ponta Delgada que estão presos 3 marinheiros porque os “rádios” que vinham de Lisboa eram primeiro entregues ao Borges Coutinho e só depois é que iam ao Governador Militar. Lindo!
Toca a fogo. Ontem também houve. Chegou a hora do almoço. José Franco telefonou. Chegou bem e vai falar com o general. Depois telefona. Oxalá que sejam frutíferas estas diligências. A minha angústia e a dor de não ver os meus queridos filhos é tão grande que só Deus é que sabe. Sinto ganas de chorar. Aguento-me.
Hoje coube-me a vez de fazer de palhaço para alegrar os meus companheiros de infortúnio. Diziam-nos que iam só quatro porque o avião não levava mais ninguém.
Afinal era tudo mentira. O avião foi só com eles. Estava muita gente no aeroporto, sempre à nossa espera.
Não compreendo nada disso! Não tem lógica! Não é justo!
A primeira heroína: Mimi Rego Costa Carreiro, esposa do Dr. Abel Carreiro, recusou-se a acompanhar o marido para estar connosco e assistir a saída do último dos rapazes! O Dr. Abel concordou; como eu o conhecia mal! Homem com 60 anos. depois de duas semanas na cadeia, desprezou o carinho preciso e merecido da fiel esposa, concordando e animando-a a tratar de nós. Tudo o que eu puder dizer deste casal é pouco. Mimi Carreiro tem o porte esbelto e altivo dos Regos Costas, mantendo os traços de indiscutível beleza física misturados com sintomas duma alma bondosa e superior.
Dentes brancos e perfeitos sempre a descoberto por um insinuante sorriso que cativa. É elegante no vestir e o seu cabelo em agradável e simples corte torna o conjunto aristocraticamente elegante. Num transe difícil como este a sua bravura foi invejável e o seu comportamento heróico e exemplar. Não poderão esquecê-la jamais estes 31 desterrados e presos vítimas do maior crime político-social cometido nos Açores, desde que Portugal nos arrancou do limbo do desconhecimento e nos semeou do sangue lusitano que, precioso, corre em nossa veias.
Custou-me mais - diz ela - o primeiro dia. Enfrentar a prisão, as grades, o degredo. Depois o meu coração habituou-se a estar preso por amor e pelas grades.
Não arredarei pé daqui senão quando sair o último!
O quadrado de céu azul que se vislumbra do pátio foi, há pouco riscado pelo traço
vaporoso dum jacto prateado que cortou a atmosfera rebrilhando. Será um Phantom de voo rasante? Leva-me nessas asas poderosas para longe desta prisão maldita e deixa-me (agonizante que seja), na terra da promissão, onde a liberdade não seja apenas um pretexto para prender os homens!
Aqui na Terceira, começaram grandes manobras de stops à noite! Com oito viaturas fazendo em toda a ilha a revista aos carros que a partir de certa hora circulem. Diz-se que o presidente da Câmara (julgo que será o presidente da comissão administrativa) desabafou junto dos tropas dizendo que se houvessem prendido os 20 da lista nada disso tinha acontecido (pintarem as paredes etc.). A mesma irresponsabilidade louca.
A mesma tolice de Ponta Delgada. Por cada carro revistado um adepto da oposição ao regime. O homem nunca aprende.
Diz-se que o tenente da guarda-fiscal de Ponta Delgada lança uma série de boatos destinados a provocar a confusão entre nós. Pobre homem, que será que ele espera arrancar de quem nada deve à justiça ou à Revolução.
No corredor do rés-do-chão e no pátio, muitas senhoras e cavalheiros visitantes. Esta gente vai perdendo o medo provocado pela ideia estúpida que lançaram antes da nossa chegada e que nos desenhava como facínoras altamente perigosos. E assim vão chegando em autêntica romaria, cujos nomes, por isso mesmo eu já não consigo registar: Sodré, Bettencourt e tantos mais.
Dois dos nossos companheiros, que eu saiba, proibiram as respectivas consortes de cá virem. Um foi o Goyanes; o outro, o Paulo Pacheco de Angra. O primeiro mandou-a regressar a S. Miguel. O último acabou por ceder e hoje teve que apresentar-me a esposa no que tive, evidentemente, imenso prazer. É uma boa senhora, martirizada por esta história e pela nossa degradante situação.
Estive um pedaço sentado com o casal Pavão. A esposa contou-me imensas coisas de S. Miguel, sendo a maior parte delas para me animar. A dar crédito ao que me disse, o Borges Coutinho está à beira de ser preso e encontra-se trancado em casa com os meninos da esquerda extrema, armado das mais bélicas armas de defesa e ataque.
Pobre diabo e pobre louco que transformou S. Miguel num inferno, que o há-de queimar nas labaredas do ódio que ele ateou.
Já sei porque fui preso: porque tenho razão. Preso por ter razão, eis um titulo de –
estalo para um livro de estouro. O Domingos mais novo aparou o bigode que trazia até aqui, como dois dentes de foca terminando desconcertantemente em forma de pata de elefante. Parecia um ser do outro mundo. É um rapaz muito ponderado, pareceu-me provido duma inteligência aguda e bom observador. Até aqui o seu lugar predilecto tem sido a cama! Lê muito, embora essa leitura esteja um pouco desactualizada para a sua idade, pois não deve ter mais que 26 anos. Costuma amarrar o cabelo com um atilho junto do alto da testa como já disse.
Ligo o rádio mas fecho-o imediatamente! Os programas seguem os imperativos do processo histórico, arrasantemente politiqueiros, medíocres e repetitivos. Insuportáveis.
/Mais um dia que passa lento e inútil, fechado nesta pocilga imunda com os mesmos lençóis de há 15 dias.
Roubaram-me da vida os dias, e da alma a alegria.
Criam em meu corpo cansado a revolta do injuriado.
Minha mente já não pensa;
É apenas narrativa e ódio contido.
Poderá o mundo mudar-se, mudando-me nesta levada incrível de arbitrariedade e prepotência?
Não mudo, que não quero virar rinoceronte.
Eu sou eu; como nasci; crescido no desabrochar natural da semente dos que me geraram.
Meus dias passei-os na luta do crescimento, norteado apenas pelo amor humano e seus fins ignotos e distantes, como a liberdade agora.
Pobre de mim se ao crescer assim, traí a natureza!
Pobre de mim que no infinito do ser, ignorei o perigo da dúvida e da incerteza, colei-me à razão e dediquei-lhe o labor diário, como paixão.
Por medo, por loucura ou cobardia.
Mas um dia virá, soberbo e solene em que se porá a lua do desespero e surgirá o sol da esperança.
E então levantarei a cabeça, erguerei o espírito com orgulho e direi bradando aos céus: Valeu!
Valeu a pena!
Li este meu poema na cela 19. Parece terem gostado. Eu gostei pois senti tudo o que disse e li-o com fervorosa sinceridade.
Resolvi beatificar Oliveira (o inocente) que passarei a chamar de beato Oliveira da sagrada família... Ele anda sempre a fazer pregações do tipo religioso, sermões, benzeduras, etc. A esposa foi embora hoje para bem dos dois pois tinha tido um filho na véspera da prisão do marido e estava doentíssima segundo tudo levava a crer. Ele entristeceu imenso nos últimos dias.
Fizemos um jantar de peixe e um serão no pátio, verdadeiramente exemplares. O
sereno da noite com a Lua encoberta estava paradisíaco. Bebi uma cerveja que, com umas gambas, acompanhavam mais um Verão à moda da Terceira com os nossos colegas de martírio à frente da “fiesta”.
Corre o boato de que vão embora dez, amanhã. Já não acredito em nada. Mas sempre é bom uma esperança ainda que frustrada. Ao menos vive-se menos-mal enquanto aquela não morre.
A Flama, O Século Ilustrado, a Vida Mundial trazem longos escritos sobre os Açores, com belíssimas fotografias e péssimas reportagens, semeadas de mentira e loucuras graves. É claro que o abismo que se abriu ou se acentuou entre as duas comunidades (a continental e a insular) é responsável pelas falsas declarações de entidades que deveriam ter mais cuidado no que dizem, pois falam para a história e é feio ficar na história como mentiroso, apesar das estrelas!
O aspirante desta noite é novo. Estava para ser o Gruppen fuhrer S.S. Gama, mas
o capitão Almeida, que é de cá, achou melhor substituí-lo por outro (do Porto) que é muito bom rapaz. Educado e simpático, achei-o parecido com alguém. Julguei que era o Mahatma Ghandi mas o Victor descobriu afinal que ele era a cara chapada do Rei Hussein da Jordânia. E de facto...
De modo que Hussein veio fechar as celas contrariamente ao que ontem o aspirante Manteiga havia praticado. É isto a tropa, falta de método e incompetência mesmo em assuntos de lana caprina como é esta história da prisão.
Mas ainda bem que é assim pois que se fôssemos a usar de rigores ou a suportá-los aqui, esta estadia passaria de purgatório a inferno...
Hoje, como disse, saiu um comunicado do Conselho da Revolução que esteve reunido muitos dias em vários lugares na sua elaboração ou apreciação. É um documento muito importante relativamente ao programa do M.F.A. Considero-o um desenvolvimento cauteloso deste último com fortes concessões à esquerda mas com muito nível, apesar do descalabro económico não permitir tirar dele boas perspectivas para futuro. Soa-me a canto do cisne.
Normalmente um regime implantado revolucionariamente é sempre consequência do anterior derrubado. É bem de ver que o regime do Prof. Marcelo Caetano por inibições próprias, não conseguiu acabar com a escandalosa oligarquia que dominava este pais! Uma corja de privilegiados da fortuna era senhora de tudo. Estava acima da lei, esta era dominada por eles a cujos interesses servia. E não posso deixar de confessar que o que mais me impressionou como estudante de direito, foi precisamente aperceber-me do modo e para quê eram feitas e aplicadas as leis no país. Se havia um sector tecnicamente competentíssimo ao seu serviço do país, também havia um gang de interesses que contrapunha a técnica e a vontade tirânica das suas conveniências.
Mas, como observa Monjardino, não é preciso escaqueirar um país todo para se corrigir isso. E com efeito! Por meios normais também se chega lá, com menos sacrifícios.
Domingo 22.
Acordei com o primeiro raio de sol. Tenho a nítida sensação de que não sairei daqui tão cedo. Não nos levarão senão quando quiserem e se quiserem. As esperanças vãs esvaíram-se como fumo.
Li as entrevistas de Mota Amaral e Pedro da Silveira ao Século Ilustrado. Como é engraçado notar que estes ilustres personagens do tablado político e jornalístico estão a repetir aquilo que nós temos estado a pregar há quase dois anos e que nos trouxe à cadeia.
Quiseram um pretexto para nos prenderem agora libertam-nos se quiserem e quando quiserem.
Sinto lá fora alguém trabalhar em obras de limpeza. Terá sido o carcereiro que teve um rebate de consciência e resolveu trazer uma contribuição às condições sanitárias do presídio?
Ontem falei com ele, aproveitando o facto de ter sido chamado para nos trocar a roupa de cama. Um lençol e bem bom! Substitui-se o debaixo que estava mais enxovalhado. Disse-lhe da injustiça da nossa situação e do pavoroso processo usado para nos prender. Julgo tê-lo visto quebrar um pouco o seu facies barbado e frio como o aço cortante.
Contou-me que os presos que daqui saíram para o 17 estavam em condições terríveis, sem acomodações e comendo nos primeiros dias sem talheres nem nada!
Fiz-lhe ver que não tínhamos culpa de nada disso e embora o cepticismo dele fosse patente, acredito que a boa palavra sempre germina e talvez um dia nos faça justiça! Ele e os outros!...
Lá fora, o dia nasce radioso. Canta o galo e os pardais chilreiam no pátio. As garças com o seu pio agoirento pairam sobre a prisão. Garças em terra tempestade no mar...pelo menos no mar das nossas vidas.
Levanto-me e posto-me perante a janela gradeada da cela. Como é triste ver o mundo de entre os ferros duma prisão.
Mais um dia correrá lento e triste na minha vida. Deus já não me acode. Não mereço. Senhor Santo Cristo dos Milagres valei-me. Acode a súplica do maior pecador dos Teus servos. Leva-me para junto dos meus que tanto amo. Eu prometo levar na tua procissão o peso do meu Alfredinho em velas. Pesa-me Senhor por vos ter ofendido. Ajuda-me nesta aflição.
Somos agora 5 na cela. O Luís Índio (filho) veio da 19 para cá afim de dar lugar ao irmão e o Victor Cruz tirou a outra cama cá de dentro, ficando assim a cela mais descongestionada e menos bafienta.
Sinto vozes lá fora. Ferrolhos que se correm. Vozes. Passos. Silêncio.
Ontem resolvemos limpar o lixo que estava no pátio. Os mentores da operação de “limpeza” foram o Sr. José Silvério Bispo, o João Gago da Câmara e o Gualberto Borges Cabral. Meteram tudo em sacos e latas e nós depois fomos dar uma ajuda transportando tudo para a rua donde a camioneta da Câmara os recolheria às 19.30.
Levei sacos e latas. Ao menos no fim de cada bocado eu fui à rua respirar liberdade. Mas não deixei de considerar a minha figura levando lixo de casa. Ao que cheguei, Meu Deus. O que não terei de fazer para esquecer isto!? Como diria a poetisa Natália Correia depois de depor como testemunha num tribunal plenário da Boa Hora, em Lisboa…
Depois do pequeno-almoço fui lavar a minha roupa cujo stock limpo terminou ontem à noite. Estive na pia do pátio: foram lenços, peúgas e camisas. Já lá está tudo a secar em dois fios.
Depois estive com o sr. José Bispo a esguichar água e lavando o pátio que estava uma pocilga de pó e ainda com muita mosca. Fiquei com os sapatos sujos.
Antes, na cela, houve alguém que me tirou 2 ou 3 fotografias.
O José Joaquim Vaz Monteiro de Vasconcelos Franco telefonou à mulher do João Gago. Diz que esteve reunido com o general e a comissão de inquérito e que devemos seguir, parte hoje e outra parte depois. É claro que já não acredito em nada e ninguém, muito menos neles. O espírito colonial-fascista mantém-se vivo naquela gente com toda a sua baixeza moral e truques anti humanos. Tudo na mira de dominar. E mandar.
Cerca das 11 horas, Paulo Pacheco fica livre embora com residência fixa nesta ilha, facto de que tomou conhecimento por escrito.
Os restantes da Terceira ficaram nervosos e abatidos. Estive a animá-los que é a única coisa que se pode agora fazer.
Fui chamado lá abaixo. Meu cunhado José Maria e a Susana: casaram ontem pelo civil. Vão à América em viagem de núpcias paga pela SATA. Por ele soube notícias de casa. Minha mulher está, é claro, muito abalada com tudo isto, além de ter ficado chocadíssima com a cena da minha prisão-rapto. Deus há-de dar-lhe as forças de que precisa.
A esposa do Goyanes foi visitá-la. Deus a abençoe. Também esteve lá em casa o Padre Dr. Veber que era meu amigo antes do 25 de Abril e continua, ao que penso.
Oxalá que a sua estrutura não seja abalada por esta minha situação. Nunca me hei-de esquecer das cenas de terror que ele me contava por ter sido chamado a PIDE para depor. Então se ele fosse preso como eu fui, tinha morrido pela certa. Minha mulher ficou com a ideia de ter sido sujeita a interrogatório. Diz-se que ele visitou as famílias todas.
Meus Pais zangadíssimos. Meu sogro furioso. Enfim o que posso eu fazer? Os papéis para emigrar estão prontos, menos os do Alfredo, meu filho mais novo, que nasceu em Lisboa. Tenho que estar preparado para a eventualidade de ter de emigrar pois não me sinto em segurança cá, nem com garantia de poder educar os meus filhos com um mínimo de liberdade.
Penso por vezes na minha situação. Por que escrevi eu os artigos que foram o primeiro ponto da ridícula acusação que me fazem? Para já nunca defendi a independência dos Açores precisamente porque a independência não se defende. Ou existe ou não. E, no nosso caso, a meu ver, estávamos ainda longe disso. Quando escrevi o que escrevi fi-lo confiado no programa do Movimento das /Forças Armadas que garantia liberdade de expressão “sob qualquer forma”. É como se me tivessem aberto uma porta, convidado a entrar e, depois, me dessem com uma tranca na cabeça! Não esperava isso deles. Um dia hei-de escrever ao Major Melo Antunes e explicar-lhe tudo. Conheci-o antes do 25 de Abril em Ponta Delgada e tive oportunidade de trocar impressões com ele. Julguei-o um verdadeiro democrata, de equilíbrio. Espero portanto que ao menos ele compreenda isto. Eu, por mais esforço que faça, não consigo…
Estamos todos na cela agora à espera do almoço. Conversamos para animar.
Depois do almoço procurei organizar um campeonato de sueca em que a minha participação foi, como habitualmente, desastrosa. Perdi na companhia do Luís Índio Jr .
Hoje temos um novo aspirante. Do continente. E, como resultado, regime especial. Visitas para a rua a partir das 19.30. É de Portimão. Barbas e socialista por convicção social. Tem a pronúncia arrastada do Algarve e barbas à Samora Machel.
Para mim passará a ser chamado Che Guevara.
Fala-se de novo em amanhã. É o amanhã eterno cujos efeitos nervosos são obviamente nulos. A Psico para pretos não produz em nós os mesmos efeitos que nos pré-históricos aborígenes do continente negro. Fala-se em listas. O irmão o José Nuno veio trazer os jornais. Uma entrevista com Álvaro Cunhal que me pareceu um tanto diferente, em conceitos, do último comunicado do M.F.A.
Em franco convívio connosco um furriel de olhos muito claros e muito jovem. É um tanto circunspecto, de qualquer dos modos, mais ouvidos do que boca. Valdemar de Lima Oliveira troca impressões com ele como se fossem amigos de longa data.
Deixou de chover, vou ver se consigo recolher a minha roupa se estiver seca. Chove de novo. É dia ainda... Recolho à cela. Faço a cama e deito-me. No Rádio: marchas de John Filipe Sousa. Um pouco de música que me faça abstrair deste a inferno pode ser uma forma burguesa de alienação mas faz bem.
Telefone do Sr. Silvério Bispo 05 52900. É preciso tentar comunicar com ele para o descansar. Anda enervado. A personalidade irrequieta e sui generis de Luís Soares Guiod de Castro não ajuda nada, com os boatos alarmantes que lhe transmite.
Dizem-nos que vamos partir às 7.30 da manhã. Saem 7: Victor do Carmo Cruz, Aguinaldo, José Nuno, Tavares Brum, Álvaro Pereira Branco Moreira, João Gago e eu. Só acredito quando chegar a S. Miguel. Continuo sem perceber o critério destas escolhas.
DOCUMENTOS
1.-
Excelentíssima Comissão de Inquérito aos Acontecimentos de seis de Junho de mil novecentos e setenta e cinco
Os abaixo assinados já identificados nos autos de inquérito, vêm participar a V.ªs Ex.ªs que na noite de 24 do corrente, pelas, 2 horas, o Aspirante GAMA, em serviço no B.I.l. 17, veio à cadeia de Angra do Heroísmo, fazendo acordar todos os detidos e tratando-os em termos menos correctos, por terem tomado cerveja na cadeia na véspera.
No dia 24 o almoço só foi servido pelas 14 horas e o jantar pelas 16 horas.
A comida do jantar estava já deteriorada e havia sido rejeitada no B.I.I 17 por imprópria para consumo.
Alguns detidos, sofreram intoxicações, e o detido António Nuno Alves da Câmara, teve de recolher ao Hospital para tratamento.
Os abaixo assinados pedem a V.ªs Ex.ªs a adopção de providências imediatas, designadamente, a suspensão do referido aspirante no serviço da cadeia e a instauração do competente processo para averiguação de responsabilidades.
Esperam deferimento.
Ponta Delgada, 25 de Junho de 1975.
TESTEMUNJ1AS QUE. FIZERAM CHEGAR ESTES FACTOS AO CONHECIMENTO DOS SIGNATÁRIOS:
1." - Nuno Vasco Cabral da Câmara, pai de um dos detidos.
2.° - D.ª Fátima Oliveira, esposa de um dos detidos, ambos presentemente em Angra do Heroísmo.
2.-
Excelentíssimo Senhor Presidente da Comissão de Averiguação de Violências sobre Presos sujeitos às Autoridades Militares
LISBOA
Carlos Eduardo da Silva Melo Bento, casado, advogado, residente na Rua da Cruz, n." 49, Ponta Delgada, São Miguel - Açores, leva ao conhecimento de V.ª Ex.ª que
1.º
No dia 9 de Junho de 1975 pelas 2 horas e 30 minutos da Madrugada, noite escura, 4 militares fardados e com as armas engatilhadas e prontas a disparar, entraram em sua casa, sem que para tal os tivesse autorizado (art.º 301 do Código do Processo Penal, aplicável por força do disposto no art.º 414 e seguintes do Código de Justiça Militar).
2.º
Seguidamente, deram-lhe ordem, em nome de Altino Pinto de Magalhães, general, para os acompanhar ao Comando Militar dos Açores.
3.º
Porque estava em pijamas, dirigiu-se ao quarto de cama para se vestir e, qual não foi o seu espanto, os ditos, militares apontando-lhe as armas seguiram-no.
4.º
Sua mulher, deitada na cama, chorava. Seus 4 filhos de 9, 8 , 7 e 4 anos de idade também ali dormiam.
5. º
Foi seguidamente levado para um carro de combate e, na Rua, marinheiros armados também o aguardaram e ameaçaram com armas de fogo.
6.º
Foi então levado para bordo dum barco português e conduzido à cadeia de Angra juntamente com 34 companheiros de desdita.
7.º
Entretanto, o telefone da sua casa foi cortado conforme o informou o eng.º director dos C.T.T. também por ordem do mesmo oficial general e através dum oficial da Marinha portuguesa.
8.º
Logo a segui, ao seu rapto, feito fora da hora legal e sem cumprimento das formalidades legais, em casa do Dr. António Borges Coutinho que fica em frente da sua, uma turba de rufiões cujo nome só esse senhor, agora residente em Lisboa, poderá fornecer a essa Comissão, ameaçou sua pobre mulher com pistolas e espingardas de caça, atormentando-a, pois ela estava incomunicável.
9.º
Por outro lado, em Angra do Heroísmo, na cadeia de Angra fomos todos mantidos incomunicáveis; o comandante do B.I.I; 17 não foi à Cadeia uma única vez inteirar-se da nossa situação. Aqui foi-nos expressamente negada sempre a assistência religiosa (Sua Excelência Reverendíssima o Senhor Bispo Coadjutor do Bispo dos Açores confirmou mais tarde que as autoridades militares não autorizaram a visita dum sacerdote por ele enviado).
/10.º
Foi-nos negada a assistência judiciária, tendo sido interrogado sem que me tosse permitido a assistência de advogado (pois que apesar de o ser não estava em condições de me assistir).
11.º
Fui sujeito a tratamentos cruéis, desumanos e degradantes da pessoa humana; com efeito, fui obrigado a dormir com a mesma roupa de cama do preso sujeito ao foro civil, que me antecedeu na cela, durante os 15 dias em que fui mantido sem culpa formada e arbitrariamente sob prisão. E isto, apesar dessa roupa estar completamente suja e nauseabunda.
12.-º
A luz da cela foi mantida acesa durante quase todas as noites em que lá dormi não havendo interruptor dentro da cela.
13.º
As refeições eram servidas sem as mínimas condições de higiene com os pratos mal lavados, as pessoas que nos serviam à mesa com as mãos incrivelmente sujas e a sala de jantar não era varrida, juntando imensas moscas que tudo conspurcavam.
14.º
As refeições eram servidas muitas vezes às 15 horas (o almoço) e às 18,30, (o jantar), pelo que, que famintos para o almoço pouco podíamos comer ao jantar por não termos fome.
15.º
Foram-nos sistematicamente negadas as duas horas de sol que os regulamentos prisionais permitem e as condições de cadeia justificavam plenamente, por incúria e desleixo ou malvadez dos oficiais ou aspirantes de serviço.
16.º
Entres estes sobressaiu pela sua medíocre malvadez o aspirante Gama que requintava em proibir as conversas à mesa, mesmo depois de termos sido inquiridos e já nada justificar o isolamento inicial.
17.º
E perguntou a certa altura se os cães já tinham comido. Os cães éramos nós.
18.º
Por seu turno, o Comodoro Manuel Ricou disse-me que autorizava telefonemas para casa a fim de informar a família do nosso estado.
19.º
Esses telefonemas foram sistematicamente negados durante a prisão só tendo podido fazer dois. Um da casa do carcereiro que fica no próprio edifício da Cadeia e outro no Tribunal. Todos os telefonemas que sua Mulher fez para si não chegaram ao seu conhecimento.
20.º
Por outro lado, o papel selado que me fora enviado do escritório para assinar a fim de requerer justificações de faltas em julgamentos e outros actos processuais, ficou por incúria, desleixo ou má fé, já assinado, na cadeia durante oito dias, pois que o referido Comodoro me chamou à sua presença num domingo para mo entregar em branco e só na 2.ª feira seguinte ele foi enviado para S. Miguel, isto apesar da insistência com que pedi o seu despacho.
21.º
Finalmente, ao ser ouvido pela comissão de inquérito fui inquirido por 6 ou 7 oficiais portugueses continentais que em nome do referido general Pinto de Magalhães me acusaram de:
a) Participar numa manifestação não autorizada no dia 7 de Junho pelas 11 horas, frente ao Q. G. de Ponta Delgada.
b) De ter escrito na imprensa artigos a favor de Independência dos Açores
22.º
Nenhuma dessas acusações (a ser verdadeira) poderia justificar o foro militar ou justificar uma prisão fora do flagrante delito ou sem mandato judicial. A prisão foi assim, além de ilegal, arbitrária.
23.º
O requerente que era professor da Escola Técnica de Ponta Delgada perdeu o vencimento dos dias em que o tiveram preso.
Resumo e conclusões:
1.- O participante foi vítima duma prisão ilegal e arbitrária;
2. - O participante no acto da prisão foi sujeito a violências ilegais tais como violação do domicílio e ameaça com arma de fogo.
3.- No acto da prisão, mesmo a admitir (o que se não faz) o foro militar, foi frontalmente violado o Código de Justiça Militar nos seus artigos 413 e seguintes.
4.- A prisão prolongou-se para além dos prazos máximos admissíveis em direito para os casos da detenção sem culpa formada e fora do flagrante delito.
5.- Durante a prisão, o requerente foi vítima de tratamento desumano e degradante da pessoa humana (falta de assistência religiosa e um mínimo de condições de higiene e foi insultado).
6.- O requerente não teve direito a assistência judiciária.
7.- O requerente foi sujeito à tortura da luz e do desencontro das horas de refeição e falta de horas de sol.
8. Os interesses profissionais do requerente foram indesculpavelmente descurados pelos seus carcereiros.
9. Sua Mulher foi ameaçada com armas de fogo a seguir à prisão do requerente, por civis, a coberto das autoridades militares.
10. O telefone da casa do requerente foi desligado ilegalmente durante 2 horas.
11. Acresce a tudo isto que, quer as prisões quer a forma ilegal como foram efectuadas, eram inúteis do ponto de vista da segurança e cautela, uma vez que numa ilha pequena como esta nem sequer há possibilidade de fuga.
12. Por esse motivo, o prestígio militar ficou gravemente abalado visto que as prisões foram consideradas por toda a população como uma prova de medo e de cobardia indesculpáveis a quem enverga uma farda.
Com base no exposto, requer-se a inquirição das seguintes testemunhas e, uma vez provado o atrás afirmado, o castigo dos responsáveis e executantes com o devido procedimento criminal em foro civil ou militar conforme o caso.
Testemunhas
Manuel Correia Bettencourt, solteiro, empregado industrial, residente na Rua João do Rego de cima, Ponta Delgada (à matéria dos artigos 1, 5 e 8);
Bruno Tavares Carreiro, casado, funcionário bancário, residente na Rua Dr. Bruno Carreiro, Ponta Delgada, a ser inquirido à matéria dos artigos 6,9, 11, 12 a 20.
Victor Cruz, casado, funcionário do Consulado Americano, residente na Rua Coronel Chaves de Ponta Delgada (deve ser inquirido à matéria dos artigos anteriores).
D. Aurélio Granada Escudeiro, Bispo Coadjutor do Bispo dos Açores a ouvir à matéria do art.° 9º.
Eng.º Marques Paz, Director dos C.T.T. de Ponta Delgada em cujo edifício reside (artigo 7º desta petição).
Requer-se a junção a estes autos do documento (para prova da matéria referida no artigo 2) que me foi exibido, ordenando-me a comparência no Comando Militar e que está em posse do Governo Militar e deve estar assinado pelo general Pinto de Magalhães (artigo 131 do Código do Processo Civil aplicável por força do artigo 440 do Código de Justiça Militar).
Requer-se a junção a estes autos dos pontos de acusação que lhe foram formulados e que constam do processo de inquérito aos acontecimentos de seis de Junho de 1975, o qual no Comando Territorial Independente dos Açores, Quartel General, 2ª Repartição, tomou o n.º 2.21. O requerido fundamenta-se nas mesmas disposições legais que o anterior. Não se junta certidão por o requerente ter sido informado verbalmente que o processo não se encontra nos Açores.
Ponta Delgada, 5 de Fevereiro de 1976
3.-
S.R.
ESTADO-MAIOR DO EXÉ R C I T O
GABINETE DO CEME
EXMº. SENHOR
DR. CARLOS MELO BENTO
RUA DA CRUZ Nº. 49
PONTA DELGADA
AÇORES
Cumpre-me comunicar que, por despacho do Exmo. General CEME de 12 do corrente e ao abrigo do disposto nos arts. 221 al. c), 360 nº 2 e 361nº 1 al. i) do C. J. Militar, foi mandado arquivar o processo instaurado por queixa de V. Exª. contra o General ALTINO DE MAGALHÃES.
Com os melhores cumprimentos.
O CHEFE DO GABINETE DO CEME
RICARDO GALIANO TAVARES
BRIG.
4.-
SENHOR CHEFE DE ESTADO MAIOR
DO EXÉRCITO
EXCELÊNCIA
Tendo o signatário sido notificado por carta do Chefe de Gabinete de V.ª Ex.ª , Coronel Galiano Tavares, de que tinha sido arquivado o processo instaurado por sua queixa contra o general Altino de Magalhães, vem expor e solicitar o que segue:
1.º - O artigo 361 do Código de Justiça Militar manda que o despacho que foi notificado ao signatário seja fundamentado;
2.º - O conhecimento dessa fundamentação torna-se, porém, essencial para que o requerente aprecie as razões porque a violação do Código de Justiça Militar de que foi vítima, fique impune e, decidir ou não, consequentemente, recorrer para as instâncias superiores.
3º. – Pelo exposto, requer que lhe seja notificado o teor do despacho em apreço, nos termos do preâmbulo do artigo 361 do Código de Justiça Militar.
Espera deferimento em Justiça
Ponta Delgada, 3 de Janeiro de 1978
Carlos Eduardo da Silva Melo Bento
5.-
S.R.
MINISTÉRIO DO EXÉRCITO
ESTADO-MAIOR DO EXÉ R C I T O
. REPARTIÇÃO
Telegramas Telefone 86 71 11
GABINETE DE CEME
EXMº. SENHOR
DR. CARLOS MELO BENTO
RUA DA CRUZ Nº. 49
PONTA DELGADA
AÇORES
Sua referência Sua comunicação de Nossa referência Rua Museu de Artilharia 2 Portugal
1979 727 Pº. 03.09.110
ASSUNTO.
*;*;*;*;*;*;*;*;*;;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;*;
Cumpre-me informar que, nada havendo a acrescentar à minha comunicação de 14DEZ78, Sua Exª. o General CEME determinou o arquivamento do requerimento de V. Exª. datado de 03JAN79.
Com os melhores cumprimentos.
O CHEFE DO GABINETE DO CEME
RICARDO GALIANO TAVARES
BRIG.
14/MF
25.01
6.-
COMANDO TERRITORIAL INDEPENDENTE D05 AÇORES
QUARTEL GENERAL
2ª. REP
Exmº. Senhor Dr. Carlos E. da Silva
Melo Bento
Ass. LEVANTAMENTO DE RESTRIÇÕES DE SAÍDA
Encarrega-me Sua Excelência o General Comandante-chefe dos Açores, de informar V. Exª. que desde esta data lhe foram levantadas as restrições de saída, imposta (sic) após a sua detenção operada em consequência dos acontecimentos de 06JNU75.
Com os melhores cumprimentos,
O CHEFE DE ESTADO MAIOR/QG/CCA
AUGUSTO JORGE DA SILVEIRA REIS
TEN.COR.INFª./c/CCEM
7.-
COMANDO TERRITORIAL INDEPENDENTE D05 AÇORES
QUARTEL GENERAL
2ª. REPARTIÇÃO
NOTA Nº. 27 Pº. 2.?1 P. DELGADA 12-1-76
AO SENHOR Dr. Carlos E. da Silva Melo Bento
ASSUNTO: DESPACHO DO INQUÉRITO AOS ACONTECIMENTOS DE 06JUN75.
Encarrega-me Sua Exª. o Brigadeiro Comandante Militar dos Açores, de informar V. Exª. que o processo de inquérito aos acontecimentos de 6 de Junho de 1975 em Ponta Delgada, mereceu de Sua Exª. o Primeiro Ministro o seguinte despacho:
“Arquive-se por insuficiência de Provas”.
Com os melhores cumprimentos,
O CEM/QG/CTIA
AUGUSTO JORGE DA SILVEIRA REIS
TEN.COR.INFª./c/CCEM
[1] Dr. José Maria Caetano de Matos, médico e pianista de mérito. Ponta Delgada dedicou-lhe uma Rua com o seu nome e como “médico dos pobres”.
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