sábado, 9 de fevereiro de 2008

Da Justiça

FUNCIONAMENTO DO SISTEMA DA JUSTICA

ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA

Convocado para falar sobre este tema, lembrei-me duma velha estória que refere a ida dum médico cirurgião cárdio ao seu mecânico de automóvel e, enquanto este reparava diante do cliente uma deficiência no motor, disse-lhe em tom de brincadeira: - Nós os mecânicos quando reparamos os motores dos carros, somos como os médicos a reparar o coração das pessoas. Responde-lhe o médico: - Experimente a fazer essa reparação com o motor a trabalhar!
Mal comparados, o que se assiste depois da democratização da Justiça e do saudável mas assustador aumento de processos judiciais, são consertos de motor em funcionamento sem que por vezes se possam considerar brilhantes os resultados obtidos.
Do que venho observando, nestes últimos 38 anos, tirei conclusões e cimentei outras. Gostava de sintetizá-las em três pontos: mentalidade, ritmo e direito processual.

MENTALIDADE

Nós juristas temos, por formação académica, uma mentalidade sui generis que emprestamos a toda a nossa actividade. O rigor absoluto do conceito abstracto, o endeusamento do processo e o apagamento de todo o universo que não está dentro dele, um apego doentio à forma, designadamente à forma escrita, torna todos os juristas num mundo à parte. João Miguel Barros escreveu há bem pouco tempo: "As reformas fazem-se com pessoas e não apenas com boas ideias, sem o envolvimento e a motivação de todos, resolvendo antecipadamente os estigmas da acomodação cultural e mental resultantes de práticas e rotinas diversas, as resistências serão certas e poderão ser a origem do fracasso dos programas mais virtuosos". Nem mais!
Ora, como são os juristas a fazer as leis, todas elas estão imbuídas desse nosso espírito, gerando uma situação complexa, criadora duma infinidade de becos sem saída que nos conduziram à actual situação.
Perante este quadro, há quem pense que a reforma da justiça tem de ser feita por não juristas, gente que estude a natureza e dela colha directamente as soluções práticas que os juristas não têm conseguido descobrir. Acho que foi Clemenceau quem escreveu que a guerra era coisa demasiado importante para ser deixada apenas ao cuidado dos militares.
Mas foi José Faria e Costa quem defendeu que a justiça é tão importante que não "deve ser coisa só para juristas". Entendendo-se por justiça a suprema das virtudes de Aristóteles que não está ao serviço de nada nem de ninguém mas também não está contra ninguém.
Por mim, acho que a intervenção de juristas só deve fazer-se para prevenir e para dirimir conflitos.
Refiro-me à necessidade da advocacia preventiva, em que os leigos serão preparados pedagogicamente para procurar o jurisconsulto antes de praticar os actos potencialmente geradores de conflitos. E isto, quer na advocacia tradicional quer na que resulta do apoio judiciário, instituição que só por ter saído da esfera exclusiva dos juristas melhorou consideravelmente.
Só quando há conflito declarado é que o nosso espírito jurídico se torna imprescindível e salutar. Mas que conflito existe numa adopção em que todos estão de acordo? E que conhecimentos temos nós para regular comme il faut o poder paternal e a pensão de alimentos?
Num processo de falência há um mundo de questões que não estão conflituadas. Porque é que há-de ser o tribunal a geri-las? Porque é que não são as câmaras de comércio a decretar e regular as falências e recuperações de empresas com recurso para os tribunais apenas quando houver desacordo entre as partes sobre (e exclusivamente) sobre questões jurídicas e só quando as partes recorrerem delas para os tribunais?
Os tribunais não têm a mínima sensibilidade para lidar com os timings económicos. Para nós o único timing a cumprir são os prazos processuais, depois disso o mundo pode acabar que já não é da nossa conta. Daí que na fase executiva dos processos deverá também e cada vez menos, caber-lhes intervenção, a não ser por via de recurso que esse sim deve ser sempre admitido. Tal solução, aliás, corresponderia ao direito antigo em relação aos juízes pedâneos e ao recurso das sus decisões para os corregedores. Para que se há-de ocupar os tribunais? Quando as pessoas estão de acordo não bastaria uma qualquer espécie de tribunal arbitrário que, devidamente organizado mas fora dos tribunais judiciais comuns, deve redimir prévia e obrigatoriamente certo tipo de conflitos (divisão de coisa comum, prestação de contas, inventários etc.)
Por alguma razão já os romanos já diziam que summam jus summam injuria. É que o nosso raciocínio levado até ao extremo provoca o contrário do que nós pretendemos. E isto leva-nos também à outra questão:

O RITMO

Sempre me impressionou o excesso de trabalho dos magistrados e dos funcionários judiciais, com especial relevância para o destes pois que os magistrados têm poder que àqueles escasseia sendo em grande parte senhores do seu tempo. Comparar uma repartição pública qualquer com os tribunais é confrontar o descanso e a exaustão. Numas faz-se o indispensável, nas outras o muito que se faz nunca é o suficiente, apesar das secretarias judiciais estarem hoje transformadas pela força das circunstâncias em gigantescas estações de correios.
O ritmo doentiamente apressado com que se ministra Justiça hoje em dia é frenético e não permite alcançá-la na sua plenitude. O mesmo ocorre quando esse ritmo é demasiado lento, quando se leva anos para resolver uma questão e se cai por isso numa verdadeira denegação de justiça.
O nosso ritmo de trabalho tem de ser um ritmo humano mas não necessariamente olímpico. E neste capítulo rege a norma que proíbe ao advogado de aceitar mais causas do que aquelas que ele pode defender. E os magistrados? E os funcionários? O Doutor Matos Canas que nos anos setenta do século XX presidiu ao Tribunal de Ponta Delgada, dizia muitas vezes que a nossa profissão é um meio de vida e não de morte, por isso se recusava a trabalhar na hora do almoço ou depois das 18 horas, altura em que abandonava o seu gabinete ou a sala de audiência e ia fazer de mecânico, no parque traseiro do Palácio da Justiça, no mais antigo FIAT 600 que ainda existia no hemisfério norte.
Um Juiz não deveria ter mais que 365 processos por ano, tudo o que for para além disso é excessivo e é por esse número ideal que temos que nos bater permanentemente sob pena de a Justiça nunca ser a ideal, transformando-se num arremedo quase ridículo que só nós levamos a sério. Para que os tribunais retomem o seu lugar de escolas de conduta onde os cidadãos se formam e se revêem e deixe de ser a chacota preferida dos espíritos críticos que não falam alto, mais por medo das consequências do que por pensarem que não têm razões de sobra para escarnecer de nós.
Assisti durante quase 40 anos de serviço no tribunal de Ponta Delgada a períodos de cansaço insuportável que chegou a atirar juízes para o hospital e escrivães para a cama, sendo certo que estes últimos, por fim já metiam atestado médico antes de ficarem doentes quando viam que o magistrado recém chegado queria fazer num mês o que não fora feito no período em que a comarca estivera sem juiz (e isso chegou a ocorrer em Ponta Delgada durante mais dum ano seguido). A Justiça não é coisa de deuses mas de homens, escreve Faria e Costa.
Há muito que advogo a criação de tribunais móveis completos, formados por Juiz, Magistrado do Ministério Público e secretaria adequada, bem pago e privilegiado, para acudir a comarcas excessivamente atrasadas pelas mais diversas razões: falta de magistrados, doença física ou outra de qualquer das peças do tribunal etc. etc.
Esse tribunal vem, instala-se em edifício arrendado para esse fim na comarca em atraso; para esse efeito, distribui-se-lhe um número adequado de processos que são desaforados ao tribunal atrasado. Logo que este tribunal ad hoc despache o número de processos considerados suficientes para que a comarca em causa se possa considerar em dia, retira-se dali para outro lugar onde for preciso.
Mas, atenção, sempre com o mesmo ritmo de trabalho e sem pressas que mutilam, que não deixam tempo nem para pensar e muito menos para estudar. Com o volume de legislação que tem sido produzida nas últimas décadas, a falta de estudo ameaça os juristas de atingirem a idade da sabedoria com graves lacunas de conhecimento, colmatada apenas por juristas ainda em idade de amadurecimento que podem saber mais sobre o direito positivo em vigor num dado momento mas podem menos, em capacidade de alcançar os ideais pelos quais se bate a ciência que cultivamos.
Se ainda tiverem um pouco de paciência falar-vos-ia finalmente no

DIREITO PROCESSUAL

Para mim, que me perdoe o Doutor Castro Mendes de quem fui aluno no primeiro ano em que regeu a cadeira, não se trata dum verdadeiro ramo de direito. Por vezes é até um falso ramo de direito e algumas um autêntico anti-direito. As reformas a que os pensadores o têm submetido ultimamente vêm, penso eu, comprovar essa minha convicção.
Num tempo de "pensamento débil" necessariamente fluido, o direito processual ou se adapta a essa fluidez ou ameaça tornar-se todos os dias em coisa anacrónica.
Julgo que a lei processual deve deixar de ser um dogma insuperável para passar a ser uma norma orientadora do julgador, e este a verdadeira fonte de direito que, corno já acontece em instâncias internacionais, deve ter autênticos poderes legislativos, mormente no respeitante ao regulamento de procedimento e prova (Almiro Rodrigues) porque, como “juiz natural", tem que obedecer a princípios gerais de equidade que tem como parte integrante da sua essência o axioma do "due process of law", seja o contraditório prévio, seja o de recurso, busca da verdade material, imparcialidade, sagrado direito de defesa, etc. (Faria e Costa). E isso há-de levar também e ainda por outros motivos, segundo creio, à abolição do processo executivo quando é de facto uma simples fase do declarativo cuja decisão não é cumprida como já acontece com os mandados de despejo, e a impenhorabilidade da casa de morada de família, núcleo cada vez mais sacralizado dos direitos humanos.
E também conduzirá, segundo cogito, a que se acabe com esta mania de se legislar em abstracto, partindo apenas da excepção para a regra geral. Mas isso terá de ficar para outra ocasião por ser outra história que não cabe aqui hoje
Um dia encarregaram-me, do estrangeiro, de fazer uma citação, recomendando-me que deveria tentar obter a assinatura do citando mas que, se ele se recusasse ou hesitasse em fazê-lo, deveria pura e simplesmente atirar-lhe a petição aos pés e lavrar auto da ocorrência. E isso fez-me compreender que algo estava errado com o chamado direito processual. Pelo menos entre nós. Doutra volta, enviei a uma cliente inglesa a cópia do saneador a fim de ela informar uma das suas testemunhas, também inglesa, do teor das perguntas que iriam estar em causa; mas porque ambas estavam em Portugal há muitos anos e falavam correntemente português, dispensaram a tradução que lhes propôs mandar fazer. Ou por isso ou por economia ou por prosápia. Mas o certo e que, passado pouco tempo, recebi uma carta da minha Lady pedindo-me que mandasse traduzir a peça pois não conseguiram fazê-la por estar escrita em português muito arcaico. A princípio estranhei mas porque ao tempo estava a ler as Ordenações Afonsinas, ao chegar à parte do processo, percebi que as súbditas de sua Majestade Britânica não deixavam de ter a sua razão, pois a actual nomenclatura pouco se afasta da redacção medieval da nossa mais velha compilação de leis.
As leis processuais tornaram-se autenticamente em dogmas litúrgicos de que temos feito depender as nossas pobres almas de homens de leis.
A primeira reforma que o processo necessita é a de ser unificado, acabando-se de vez com tribunais e leis especiais para o trabalho, administração, fisco etc. que só servem para confundir os operadores judiciários com benefício apenas para os especialistas em tais “tecnicalidades”.
A segunda, é retirar ao Juiz a presidência do processo sem lhe tirar a superintendência, excepto na audiência para discussão e julgamento. O Juiz fez-se para julgar e não para processar. As partes e o escrivão do processo é que tem de fazê-lo. O Juiz tem de deixar de ser um fiscal de advogados e de funcionários, um fiscal de impostos e de custas, um regulador dos actos das partes e das testemunhas (porque é que há-de ser ele a tomar o seu juramento, por exemplo) e um escriba infindável, para ser aquilo que a sociedade espera dele: um julgador. Um jurisprudente. Sábio no direito e prudente no decidir.
As suas decisões têm que passar a ser verbais, registadas pelo tribunal e eventualmente confirmadas pelo autor delas, com a sua assinatura aposta na parte decisória que é a única que deve ser transcrita pela secretaria, ad perpetuam rei memoria, pois valha a verdade que na maior parte das vezes é a única que é lida pelos interessados que só quando há recurso têm necessidade de a estudar toda.
E quando houver recurso, então que o recorrente mande transcrever toda a decisão verbal e que ao Juiz recorrido seja dada oportunidade de defender o seu trabalho, contra a fundamentação alegada pelo recorrente. Enquanto nós formos, como até aqui, ortodoxos cumpridores duma liturgia medieval hoje totalmente incompreensível pela sociedade que temos de servir, não poderemos dar conta do recado, qual seja o de defender a Justiça de maneira tão forte e veemente como as "muralhas da cidade", de acordo com o ensinamento de Heraclito.
Veja-se, por exemplo a competência da Secretaria do Tribunal Penal Internacional, que me parece resumir o que a razão prática encontrou como forma de atingir nesse sector, o ideal de Justiça, ao qual dizemos subordinar toda a nossa actividade: pois aquela secretaria administra recursos humanos, financeiros e materiais e os serviços judiciais do tribunal, traduções etc., organiza as audiências segundo indicação do juiz, gere e transmite documentos, resolve o apoio judiciário, trata da protecção e assistência às vitimas e testemunhas, etc. e de toda a comunicação saída do tribunal e recebida nele. (Almiro Rodrigues). Acabo corno comecei, com uma pequena estória verídica, pois passou-se comigo: urna mulher foi a uma tentativa de conciliação em processo de divórcio desacompanhada de advogado. Eu, que representava o autor, deixei-me ficar calado depois de informar o Juiz de que o meu cliente não queria conciliar-se. Aquele explicou então os direitos da Ré: agora o Senhor. Funcionário vai citá-la, dar-lhe-á um prazo de 20 dias para a senhora contestar; se quiser fazê-lo terá que constituir mandatário judicial; depois, darei o despacho saneador de que ao seu advogado será dada oportunidade de reclamar; uma vez aquele fixado, será notificada para apresentar a prova, após o que marcarei audiência de discussão e julgamento. A pobre mulher aflitíssima com o que estava a ouvir sem perceber patavina, apenas conseguiu dizer: - E o Senhor Juiz acha isso justo?
Ponta Delgada 28 de Novembro 2002
Carlos Melo Bento

Sem comentários: