sexta-feira, 12 de novembro de 2010

No Lançamento do Livro de Victor Lima Meireles

Reverendíssimo Vigário Episcopal
Senhora Presidente da Junta de Freguesia de Água Retorta
Senhor Administrador da Fundação Sousa d’Oliveira, Dr. António Pracana Martins
Senhor Secretário-geral da Fundação Sousa d’Oliveira, Dr. José d’Almeida Mello
Minhas senhoras e meus senhores
Amigo Victor Meireles
O livro que aí está, laborioso e precioso trabalho que reúne os Extractos dos Livros dos Óbitos da Freguesia de Nossa Senhora da Penha de França de Água Retorta, de 1835 a 1905, encerra o ciclo que o poeta e escritor micaelense Victor Meireles se propôs realizar, após a publicação dos Extractos dos Casamentos (1835-1905) e dos Baptismos (1768-1905), já praticamente esgotados.
Os nossos livros paroquiais, a seguir a uma campanha publica que Sousa d’Oliveira encetou na primeira metade do século XX, “Salvemos os nossos Arquivos”, foram arrecadados na Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Ponta Delgada e, a partir deles, Victor Meireles extraiu práticos e cómodos extractos, agora postos à disposição dos interessados.
Aproveitou o autor para, em adenda, publicar os extractos dos Baptismos do ano de 1874 que não foram inseridos no lugar próprio.
Na sessão pública, de lançamento da nova obra, nesta acolhedora Casa do Povo de Água Retorta quero expressar ao Professor Doutor Octávio Henrique Ribeiro de Medeiros, Vigário Episcopal da Ilha de S. Miguel e Pároco de Nossa Senhora da Penha de França, o profundo agradecimento da Fundação Sousa d’Oliveira, pelo estímulo e apoio que Vossa Excelência Reverendíssima deu à obra de que aqui venho falar, pois é sabido que sem esse empenho não seria possível tão útil publicação. Se cada povo se mede pelas obras culturais que produz, Água Retorta está de parabéns pelo exemplo que dá aos outros povos desta Terra.
Vejamos vários aspectos da vida dos nossos avós que transpiram destes extractos que Meireles pacientemente extraiu dos registos paroquiais, facilitando-nos uma tarefa que sem ele seria quase impossível. Comecemos pelos apelidos de família que o passado nos envia, vestígios arqueológicos duma história que só por si prova a nossa existência.
Achadinha
Abelha
Aguiar
Albergaria
Algarvia
Algarvio
Almeida
Amaral
Amaro
Amorim
Arcénio
Arruda
Baganha
Bande/Bondé
Barbeiro
Bento
Bernardo
Bettencourt
Bocheixa
Boliana
Bom
Bondé/Bande
Borges
Botelho
Branco
Cabaça
Cabral
Caetano
Caldeira
Calmeiro
Câmara
Carepa
Carreiro
Carrelas
Carvalho
Chicharro (com Pimentel)
Charamba
Chicharro (com Pimentel)
Corrêa
Costa
Cruz
Dâmaso
Diogo
Esteireiro
Estrela
Farias
Ferias
Ferreira
França
Franco
Frias
Furtado
Furtado
Gamboa
Garalha
Garrafa
Géna
Gonçalo
Gonçalves
Gueiro
Henrique
Jácome
Leandro
Leite
Lopes
Luiz
Macedo
Machado
Mancebo
Marcellino
Marques
Matias
Maurício
Medeiros
Melo
Mendonça
Michael
Milho (um deles Grão de)
Moleiro
Moniz
Mouro
Neves
Nogueira
Pacheco
Pachequinho
Pampoulas com Resendes
Papoula com Resendes
Patacho
Pequenino
Pequeno
Pergil/Pergile
Pimentel
Piorra
Plácido
Ponte
Quarta (com Pacheco)
Ralhão
Ramos
Rapa
Rapinha
Raposo com Branco
Rebelo
Redondo com Pacheco
Rego
Resendes
Rezendes
Ribeiro
Sanglart
Sangrador
Santos
Sardinha
Senra
Silva
Simas
Singular
Soares
Soldado
Sousa
Tabicas
Tacão
Tavares
Teixeira
Tomaz com Cabral
Torres
Valério
Vicente
Vieira
Todo um trabalho de pesquisa espera pelos curiosos nesta coisa do passado de cada família, explicação do que nós somos e, quem sabe, rumo indicado do que seremos.
Mas que fazia esta gente. Vejamos pois as suas
PROFISSÕES
Alfaiate (do Nordeste)
Barbeiro
Cabouqueiro
Cabreiro
Caixeiro
Capitão
Campóneo
Carpinteiro
Castrador
Emigrantes na América do Norte
Esteireiro
Frei (José Boa Viagem)
Frade Leigo
Igresso
Igresso Franciscano
Lavrador
Moleiro
Negociante
Padre
Padre Cura
Pastor
Pedreiro, oficial
Proprietário
Sapateiro
Taberneiro
Telheiro
Trabalhador
Sacristão
Sangrador
Sem profissão
Tecedeira
Vendeiro
Vendilhão
Mas, para além das profissões que já permitem um mundo de conclusões, é também importante verificar o lugar onde as coisas ocorreram, para se ter uma ideia mais precisa da Água Retorta de hoje, pois que esta risonha freguesia não nasceu do nada nem foi a presente geração que a construiu ou a denominou. Chama-se toponímia a ciência que estuda o nome dos lugares, de topos que quer dizer isto mesmo. Os sacerdotes eram muito cuidadosos ao descrever os lugares onde ministravam os sacramentos, com excepção daqueles que não levavam a sério os deveres canónicos, por isso o Ouvidor de Vila Franca lhes puxou as orelhas vezes sem conta. Não que eles parecessem ligar muito a isso, pois continuaram lazeiras até se reformarem, mas que a coisa ficou escrita, não haja dúvidas. Vejamos então a
TOPONÍMIA
Calvo de Santo António, lugar do Nordestinho
Caminho Direito da Lomba da Terra Chã
Caminho do Pico
Canada do Estanqueiro
Canada do Caminho Direito da Lomba da Terra Chã
Canada do Nordeste da Lomba da Cruz
Canada do Poço
Cemitério Público
Espigão, lugar do
Grota da Lomba das Fagundas
Labaçal
Lomba da Cruz (da vila do Nordeste?)
Lomba das Fagundas
Lomba da Terra Chã
Lombo da Terra Chã
Lugar do Mamado da Rocha do Pico
Poços da Terra Chã
Poções da Terra Chã
Ribeira da Lomba das Fagundas
Rocha do Sanguinal onde apareceu morto Manuel Raposo de 21 anos
Rua das Covas
Rua Direita
Rua do Estanqueiro
Rua das Fagundas
Rua da Igreja
Rua do Lombo da Terra Chã
Rua do Marco
Rua do Nordeste
Rua Nova
Rua do Outeiro
Rua do Poço
Rua dos Poções
Terra Chã
Curiosa é também a referência feita à roupagem com que eram vestidos os que partiam. Não tenho a certeza de que isso tinha alguma coisa a ver com o estatuto social daqueles mas a verdade é que dá de pensar a cor e a qualidade do tecido. Ora vejamos
HÁBITOS
Branco
Chita
Linho
Preto
Roxo (para a filha do Capitão)
A par das mortalhas com que as pessoas orientadas pela igreja ou limitadas pelas posses usavam, é curioso referir os trabalhos que os sacerdotes tinham em cumprir o seu dever de registar os últimos momentos dos que partiam deste mundo. Algumas vezes desaparecia o bilhete em que era escrito o acontecimento, outras, era a doença súbita ou o desastre ou acidente que não permitia ministrar mais que a Santa Unção. Outras, a confissão ou penitência era arrancada interpretativamente, quando o estado de saúde do crente só permitia a sinalética corporal.
Por outro lado são referidas várias doenças que vão referidas como as diagnosticaram os bons párocos, um tanto afastados dos rigores científicos da medicina académica.
DOENÇAS
Afonia
Apoplexia
Doença
Escarlatina
Em copos
Evadida pelas ondas do mar onde esteve 2 dias
Febre
Morte repentina/esmagamento/afogamento/queda na rocha
Parlesia (sic)
Parvoíce
Vómitos
Muito interessante é ver que Água Retorta era um microcosmos do país, onde vivia a sua nobreza, que existia e era tratada diferentemente do resto da população, pois apesar do liberalismo ter extinto as diferenças perante a lei, nem os costumes nem a Igreja deixaram de lhes dar um estatuto diferente. Pelo dinheiro, perlo poder ou pela influência, não sabemos. Mas que era diferente não tenhamos dúvidas. Vejamos então
A NOBREZA
D. Antónia Maurícia, mulher de José Francisco Soares d’Albergaria
D. Antónia Maurícia Gago da Câmara casada com Francisco Medeiros Albergaria, e filha de Henrique da Câmara e de D. Maria Isabel da Câmara, da Ribeira Grande
Francisco Soares Gamboa, viúvo de D. Júlia de Medeiros Gamboa, filho de José Francisco Medeiros Gamboa e de D. Antónia Maurício do Rego Câmara
Francisco Teixeira Nogueira casado com D. Maria Josefina do Singular que o sacerdote refere como “não pôde dar matéria de confissão”.
Jaime Soares Gamboa, proprietário, casado com D. Maria Luciana Medeiros Gamboa, natural da Povoação
D. Maria do Carmo Gamboa Albergaria
José Furtado de Almeida casado com D. Isabel Soares Gamboa, proprietário, filho de pai incógnito e de Angelina d’Almeida
D. Maria Henriqueta, 22 anos, mulher de Amâncio Inácio Machado, cujo enterro foi acompanhado de muitos padres e com certidões tiradas em 1870, 83 e 97.
D. Rosa, filha do Capitão José Medeiros e de D. Flora do Carmo, da Lomba das Fagundas
D. Rosa Augusta de Medeiros casada com Luís Raposo de Medeiros, proprietário, e antes com Procópio Machado, proprietário, ela filha de Duarte Soares Gamboa d’Albergaria, e de D. Maria Querubina de Medeiros, só teve filhos do 1.º matrimónio.
Esta classe social merece todo um estudo com interesse, penso eu, para o conhecimento da história das mentalidades, pois os defeitos dessa época ainda hoje perduram, por vezes até, fora do extracto social a que historicamente pertencem as pessoas que deles padecem.
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LONGEVIDADE
De 1835 a 1905 a esperança de vida em Água Retorta foi de 60 anos, facto que não deixa de impressionar, pois é dos mais altos dos Açores e talvez do mundo. Apesar disso, não resisto a sublinhar alguns casos de longevidade notória, referindo aos apelidos das famílias que o conseguiram, sempre que isso foi possível saber.
85 anos Teixeira Nogueira
85 anos Furtado Tabicas
86 anos, homem, (H) Aguiar
88 anos (H) Resendes
88 anos (H) Lopes da Silva
88 anos, mulher, (M) Resende
89 anos (M) Medeiros, doou todos bens e morreu sem filhos
89 anos Raposo, durante o enterro choveu muita água
89 anos Nogueira
89 anos mulher
90 anos homem
90 anos mulher
90 anos Thomas Cabral
90 anos Fagunda, nada tinha
91- anos em 1838
91 anos Raposo Carreiro
91 anos Torres
93 (H) Sousa
93 anos, mulher Correia Medeiros
94 anos, (M) Raposo, faleceu de vómitos
97 anos, v.ª de J Teixeira Nogueira, sapateiro
97 anos, Manuel Furtado Sardinha deixa a terça dos seus bens por sua alma
100 anos Maria de Jesus, de repente!
100 anos João Cabral
Entre 1835 e 1905 faleceram 528 pessoas de 16 anos até aos 100, e 870 crianças desde um dia de vida até aos 15 anos. Entre estas, as expostas e as de pai ou pais desconhecidos formam uma história secreta que vive entre nós e que os estudiosos talvez devessem desvendar antes que o ADN as revele…
Os expostos recebiam do Estado, depois da reforma de Mouzinho, um subsídio que o povo transformou em abono de família em que as autarquias gastavam mais do que em obras públicas. A República acabou com eles mas em Água Retorta, desde 1883 desapareceram.
Na cidade de Ponta Delgada, a casa dos expostos era na rua dos Manaias. Em Água Retorta ponham-nos à porta deste ou daquele, ignorando-se ainda o porquê da escolha. A verdade é que, em Ponta Delgada tinham número e descrição pormenorizada dos pertences.
É curioso que em 1836 morreu apenas uma pessoa em Água Retorta, o mesmo acontecendo em 1863. Naquele ano, houve a Revolução de Setembro em Portugal com a esquerda a subir ao poder, a Rainha casou segunda vez, a Carta foi suspensa, houve uma tentativa de golpe de estado, criaram-se os liceus, e Alexandre Herculano publica a Voz do Profeta. Entre nós foi criada uma escola médica, e promoveram-se as bibliotecas públicas. O que se terá passado de tão interessante em Água Retorta que ninguém sabe? É questão que deixo à curiosidade dos nossos investigadores…
Em 1863, talvez a coisa tenha mais lógica. Camilo publica o Amor de Perdição, os morgadios são extintos de vez, ardem o Banco de Portugal e a Câmara de Lisboa. Aparentemente, ninguém quis perder o relato de tais espectáculos.
Entre nós porém a coisa é mais séria, pois recomeçam os trabalhos da doca de Ponta Delgada, com emprego para milhares, o povo revolta-se contra os novos impostos que vinham a seguir a uma das maiores crises económicas de que havia memória…
E é tudo o que consegui extrair dos extractos de Victor Meireles a quem agradeço mais este serviço prestado à sua terra.
Carlos Melo Bento
Agosto de 2010

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