quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Discurso do Embaixador Manuel Pracana Martins


APRESENTAÇÃO DO IV VOLUME DA «HISTÓRIA DOS AÇORES 1935-1974», DA AUTORIA DE CARLOS MELO BENTO, NO «SOLAR DO CONDE», CAPELAS, SÃO MIGUEL, AÇORES, EM 5 DE OUTUBRO DE 2010.

Considero uma honra estar hoje aqui para apresentar o quarto volume da história dos Açores da autoria do Dr. Carlos Melo Bento, a quem me encontro ligado por uma antiga e sólida amizade e por um sentimento de admiração pela sua personalidade multifacetada de jurista, investigador, professor, publicista e cidadão com relevantes serviços prestados à comunidade, que lhe valeram a atribuição pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores da medalha de Mérito Cívico por ocasião das celebrações oficiais do Dia da Região Autónoma dos Açores que tiveram lugar este ano.
Para mim, falar de MB é desfiar um rosário de gratas recordações e episódios marcantes que remontam ao início da década de sessenta do século passado e à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Quando ali comecei o meu curso MB estava já no 3°ano e tornara-se notado por ser um bom aluno e por participar activamente nas actividades da Associação Académica a cuja direcção tinha sido candidato.
Aproximei-me logo daquele colega e conterrâneo que me acolheu de braços abertos.
A circunstância de ambos frequentarmos a sala de convívio e a cantina da Cidade Universitária fez com que nos passássemos a encontrar todos os dias à hora das refeições que tomávamos na mesma mesa juntamente com colegas açorianos, madeirenses e ultramarinos, formando um grupo que ficou conhecido pelo «grupo dos açorianos» e em que MB naturalmente pontificava com a sua forte personalidade, o seu dom da palavra e o seu enorme sentido de humor.
À medida que o nosso convívio se intensificou, fui conhecendo outras facetas da personalidade do meu amigo de que salientarei a independência de espírito, a força e a sinceridade das suas convicções, a sua grande vocação para o Direito, para ele indissociável da Justiça e da solidariedade, e a paixão pelos Açores. Não escondia, aliás o desígnio de, uma vez terminado o curso, voltar para os Açores e contribuir para o seu progresso e valorização.
Vale a pena lembrar um caso interessante em que a vocação jurídica e a paixão pelos Açores se conjugaram:
Quando MB estava ainda no 2° ano resolveu apresentar na cadeira de direito administrativo, regida pelo Prof. Marcelo Caetano, um trabalho sobre a organização político-administrativa dos Açores, estimulado pela leitura da conferência sobre autonomia que o Dr. José Bruno Carreiro fizera em 1950.
Note-se que os trabalhos escritos não eram obrigatórios e que muitos estudantes, por comodismo ou desinteresse, se dispensavam de os apresentar.
Recordo que não foi só em Direito Administrativo que MB se empenhou em apresentar trabalhos.
Fê-lo também em Direito Processual Civil, no quarto ano, e o seu trabalho foi comentado e elogiado pelo professor Castro Mendes durante o seu exame oral naquela cadeira a que eu tive o privilégio de assistir.
Ainda no contexto da ciência jurídica, lembro-me do enorme prazer que MB sentia em citar de cor alguns pensamentos do grande filósofo do Direito Francesco Carnelutti que viera a Lisboa proferir uma conferência na Faculdade de Direito quando MB estava no primeiro ano.
O cinquentenário da Faculdade ocorre quando MB frequenta o último ano de Direito.
No âmbito das comemorações, os finalistas decidiram organizar uma sessão de cumprimentos ao director, Prof. Raul Ventura, e MB é escolhido para falar em nome dos colegas.
As palavras que proferiu sobre o espírito universitário e a missão da Faculdade impressionaram o director que, ao discursar pouco depois na sessão solene comemorativa daquela efeméride, fez questão de citar uma das passagens da alocução de MB.
Graças à sua capacidade de trabalho e ao seu espírito metódico e disciplinado, MB teve tempo e energia para se dedicar em Lisboa, paralelamente à vida académica, a outras actividades que representam também um marco importante da sua biografia.
Refiro-me àquelas que desenvolveu como sócio e membro da direcção da Casa dos Açores.
Conseguiu então convencer outros colegas a fazerem-se sócios (eu fui um deles) e com eles formou um núcleo de estudantes, orientando algumas actividades de carácter cultural de que recordo a sessão dedicada a Antero de Quental em 1963.
Nessa altura, MB teve a ideia de convidar para orador oficial o seu antigo professor e ilustre anterianista, Dr. Ruy Galvão de Carvalho que, embora impossibilitado de se deslocar a Lisboa, aceitou o convite e enviou à Casa dos Açores, para ser lida naquela cerimónia, uma valiosa comunicação intitulada «Perfil psíquico de Antero».
Em 1964, uma série de abalos sísmicos causou várias mortes e estragos materiais na ilha de S. Jorge e Casa dos Açores esteve no centro da campanha nacional de auxílio às vítimas da catástrofe.
MB, na qualidade de vogal da direcção, foi incansável na colaboração que prestou a todas as iniciativas então tomadas para minorar o sofrimento dos nossos conterrâneos jorgenses.
É neste mesmo ano que MB conclui o seu curso.
Obtido o diploma de licenciatura, ingressa na Magistratura do Ministério Público e é colocado como Delegado do Procurador da República na comarca da Ribeira Grande.
Ali o visitei em 1965 e pude aperceber-me do elevado profissionalismo com que exercia aquelas funções e o prestígio e simpatia de que gozava entre as autoridades e a população.
Um dia tive oportunidade de o acompanhar numa visita à cadeia comarca, de que ele era director por inerência de funções, e testemunhar a especial atenção que dedicava aos reclusos, interessando-se pela história de cada um, pelos trabalhos que executavam na cadeia e providenciando para que lhes fossem asseguradas condições dignas de alojamento e alimentação.
Concluído o período de serviço necessário para se apresentar ao concurso para delegado efectivo, MB é aprovado neste concurso, o que lhe permite inscrever-se na Ordem dos Advogados com dispensa de estágio.
Começa então uma brilhante carreira profissional em que depressa se distingue entre os seus pares.
Em reconhecimento do mérito do seu trabalho na advocacia e dos serviços prestados à Ordem dos Advogados, onde exerceu vários e honrosos cargos, esta distinguiu-o este ano com a Medalha de Honra.
Mas a sua actividade não vai circunscrever-se ao escritório de advogado e às salas dos tribunais.
Com efeito, o interesse pelos problemas políticos e administrativos da sua terra que, como atrás referi, já se tinham manifestado nos seus tempos de estudante levam-no a iniciar uma intervenção cívica que se prolonga até aos dias de hoje, na imprensa, na administração pública (como vereador da câmara municipal de Ponta Delgada), no ensino (como professor na Escola Industrial e Comercial) e como militante e dirigente político.
Interessado em conhecer os EE.UU, o modo de funcionamento das suas instituições e a diáspora açoriana na América, MB visita pela primeira vez aquele país e as nossas comunidades na Nova Inglaterra no final da década de sessenta, conhecendo diversas personalidades luso-americanas em destaque naquela região, onde é entrevistado por alguns órgãos de comunicação social.
Mas em 1967 dá-se um acontecimento importante e decisivo que é a causa remota de nos encontrarmos hoje aqui reunidos.
É nesse ano que volta aos Açores, de que há muito tempo se encontrava afastado, o Dr. Manuel Sousa de Oliveira, professor, investigador e arqueólogo, a quem fora concedida pela Fundação Calouste Gulbenkian uma bolsa para proceder à recolha de peças do teatro popular açoriano e para efectuar prospecções arqueológicas em Vila Franca do Campo, vila a que MB se encontra especialmente ligado por vínculos familiares e profissionais.
Como os bons espíritos se encontram, Manuel Sousa de Oliveira, ao formar a equipa com a qual montou e dinamizou a Estação Arqueológica de Vila Franca do Campo, teve a sorte de encontrar em MB um dos seus principais e entusiásticos colaboradores.
E é interessante registar como duas personalidades com posições ideológicas tão diferentes e até antagónicas, e por isso aparentemente inconciliáveis, se deram as mãos e sentiram profundamente ligados por um objectivo comum: servir a cultura e os Açores.
Foi a amizade com Sousa de Oliveira e o convívio com este, preenchido com debates constantes e discussões por vezes acaloradas mas sempre afectuosas e frutuosas, que trouxeram à superfície e estimularam uma outra vocação de MB- a vocação para a história - e o levaram a lançar-se na grande e arriscada aventura de escrever uma História dos Açores, baseando-se em ensinamentos e orientações recebidas daquele seu amigo em quem também reconhecia um verdadeiro mestre e cujo legado se empenhou em preservar através da Fundação Sousa de Oliveira que foi criada graças à acção benemérita e eficaz de MB que, cuidadosa e pacientemente, nela tem vindo a reunir e a classificar o espólio do Mestre, grande parte do qual que se encontrava disperso por Viana do Castelo, Caldas da Rainha e Lisboa.
Ao falar de MB e de Sousa de Oliveira tenho necessária e gostosamente de evocar Natália Correia porque foi através de Sousa de Oliveira que MB conheceu e se relacionou com a grande poetisa nossa conterrânea e porque os laços de admiração e amizade que com ela manteve lhe proporcionaram um convívio extraordinariamente enriquecedor com uma das personalidades mais fascinantes da nossa cultura, admirada aquém e além-fronteiras.
Devo acrescentar que Natália Correia, por sua vez, não escondia a amizade e a consideração que tinha por MB.
Estou a ouvi-la exclamar no fim de uma discussão que teve com ele no célebre botequim e durante a qual as posições se extremaram e não houve entendimento entre ambos: «Mas eu gosto muito do MB!».
E é MB quem toma a iniciativa de apresentar à comissão municipal de toponímia a proposta para que seja dado o nome de Natália Correia a uma das novas avenidas da cidade de Ponta Delgada.
Como remate de trinta anos de investigação, surge agora o quarto volume da sua História dos Açores, que é também o último, uma vez que MB prefere incluir em livro de memórias o relato dos acontecimentos posteriores à Revolução de 25 de Abril de 1974.
Não tenho formação na área das ciências históricas, pelo que o meu depoimento sobre esta obra é o de um simples leitor interessado em conhecer a História dos Açores sem pretensões a uma análise académica para a qual evidentemente não estou habilitado. Este quarto volume, bastante maior do que os antecedentes, cobre um período de 39 anos, muito rico em acontecimentos nos planos regional, nacional e internacional. No plano internacional, o período em análise abrange a guerra civil de Espanha, a segunda guerra mundial, a nova ordem mundial subsequente a este conflito, a guerra-fria, a criação da NATO e o movimento de integração europeia.
No plano nacional, é o período de crescimento, apogeu e declínio do Estado Novo, abrangendo portanto os trinta e seis anos de governo salazarista e os seis anos finais de governo marcelista.
É durante ele que Portugal concede facilidades nos Açores aos ingleses e aos americanos em luta contra as potências do Eixo, entra em 1949 na Aliança Atlântica devido à importância estratégica dos Açores, ingressa em 1955 na ONU e é confrontado com o movimento de emancipação dos territórios coloniais que atinge sucessivamente o Estado da Índia, Angola, Guiné e Moçambique.
MB traça um panorama geral da vida açoriana durante aquele período e aponta alguns dos condicionamentos que lhe são impostos pela política do governo da República e pela evolução da conjuntura internacional.
Julgo que nenhum sector de actividade escapou à sua atenção e deixou de ser mencionado nesta obra: agricultura, pecuária, pescas, indústria, energia, turismo, saúde, assistência social, emigração, ensino, obras públicas, transportes e comunicações, portos e aeroportos, justiça, cultura, desporto, actividade religiosa, segurança pública e defesa militar, administração pública e actividades políticas.
Gostaria de salientar e de transcrever passagens de alguns capítulos que respeitam ao Congresso Açoriano de 1938, às Semanas de Estudos realizadas na década de sessenta e ao início do planeamento regional na mesma década.
Escolhi-os, entre a vasta gama de matérias tratadas pelo nosso autor, por estarmos perante iniciativas e movimentos precursores da actual autonomia na medida em que contribuíram significativamente para ultrapassar as limitações da visão distrital dos problemas dos Açores e para a sua abordagem numa perspectiva regional.
Escreve MB quanto ao Congresso de 1938:
«Os mais lúcidos atribuíam à nossa falta de união as dificuldades que enfrentávamos perante o poderoso poder central.
Por isso germinava há muito a ideia de um congresso que unisse todos os açorianos válidos para discutirem os problemas comuns e proporem, a partir de posições unânimes, as respectivas soluções.
Armando Narciso, pedagogo e médico, é a alma da iniciativa que vai decorrer com êxito na Sociedade de Geografia e no Grémio Açoriano.
Hoje parece absurdo que os Açorianos, para se reunirem, tivessem que viajar até à capital.
As comunicações apresentadas foram reunidas num livro editado em 1940 pela Casa dos Açores, em Lisboa, e reeditado em 1995 pelo Jornal de Cultura, em Ponta Delgada pela mão do Professor Medeiros Ferreira.». Fim de citação.
No segundo texto que seleccionei, respeitante às Semanas de Estudos, MB comenta nos seguintes termos essa iniciativa:
«Em Abril de 1961, vai assistir-se nos Açores a um acontecimento cultural que marcou um ponto de viragem e progresso da até aí desorganizada intelectualidade açoriana.
Ao Instituto Açoriano de Cultura coube a glória de iniciar um movimento que haveria de gerar incomensuráveis benefícios para o povo destas ilhas.
Tratou-se das famosas Semanas de Estudo cujo sucesso foi de tal ordem que se repetiram dez vezes através dos anos e sempre com mais prestígio e êxito; quando a última se realizou em 1966 já tudo era diferente».
E mais adiante acrescenta:
«Começa a germinar a unidade açoriana e atacam-se as taxas alfandegárias no comércio inter-ilhas.
Aproveita-se o espírito da unidade açoriana gerado pela II Semana de Estudos e proclama-se que essa unidade só se conseguirá pela união dos interesses açorianos com o livre-trânsito das mercadorias». Fim de citação.
E é nessa década que se inicia o planeamento regional a que, diz o nosso autor, está indissociavelmente ligado o nome de Deodato Magalhães de Sousa. Escreve a este respeito:
«Deodato de Magalhães vai ser o precursor da unidade açoriana promovendo em 1965 uma reunião das nossas Juntas Gerais (até aí viradas de costas umas para as outras quando não se hostilizavam) para preparar pela primeira vez na nossa história o planeamento regional açoriano, tornando-se o verdadeiro criador da Região Autónoma dos Açores consagrada oficialmente pela Constituição de 1976». Fim de citação. Ao concluir este quarto volume da História dos Açores, que tem uma sentida dedicatória a sua mulher, Maria de Fátima, julgo que MB tem a sensação de ter realizado a grande obra da sua vida.
Diz que a fez com gosto e dela obteve um prazer inexplicável e faz votos para que os seus leitores o tenham também.
Felicito-o e presto-lhe homenagem por tê-la realizado contra ventos e marés e associo-me de alma e coração aos votos que formulou. Muito obrigado pela vossa atenção.
5 de Outubro de 2010.
Manuel Pracana Martins

Sem comentários: