Discurso proferido na Povoação, aquando da concessão da cidadania honorária a Octávio Medeiros e Carlos César
Senhor Presidente
Senhor Representante da República
Senhor Presidente da Câmara da Povoação
Minhas senhoras e meus senhores
A concessão da cidadania honorária é uma homenagem dum concelho grato por alguém lhe ter proporcionado bem estar ou ter dado um exemplo que se quer sublinhar, como espelho para os seus próprios cidadãos ou para que os dos outros concelhos lhe sigam o exemplo, buscando uma consagração e reconhecimento gerais.
Pode ser o pagamento dum favor político, o que é o menos, ou pessoal, será isso pior, pois cairemos no aviltamento das instituições, e no mau uso de poderes que são concedidos para serem exercidos de forma isenta e altruísta e não para satisfazer apetites sectoriais ou interesses egoístas.
Proponho-vos um exercício de análise, face às duas personalidades que hoje aqui vão ser homenageadas.
Fácil é o caso do Professor Doutor Octávio Henrique Ribeiro de Medeiros, pedagogo e sacerdote católico, hierarca da sua Igreja. Onde a questão se torna mais complexa é quando se homenageia o homem mais poderoso desta Terra porque, duma simples homenagem se pode cair numa imagem, ainda que aparente, de lisonja e subserviência.
E, se assim fosse, a homenagem perderia a sua valia, tornando-se em vitupério que de todo ninguém quereria.
É melhor e, como digo, mais fácil então começarmos por Octávio Medeiros. Duma Família respeitável e respeitada, nasceu o nosso homem numa das Lombas, a do Botão. Estudou nos Seminários dos Açores, ordenou-se em Angola, formou-se em Lisboa na Universidade Católica, e, doutorou-se em Roma na prestigiada Pontifícia Universidade Gregoriana; lecionou até a lei deixar, na Universidade dos Açores. Paroquiou na sua Lomba, nesta Vila e em Água Retorta e aqui promoveu a publicação dos extractos dos Livros Paroquiais, que Vítor Meireles pacientemente copilou e que destaco da imensa produção literária e científica tão imensa e tão importante que parece incrível ter sido conseguida por um homem só. Foi Ouvidor Eclesiástico, foi Vigário Episcopal na maior ilha açoriana e Diretor do Instituto de Cultura Católica.
Certamente que o concelho da Povoação não seria o mesmo se ele não tivesse existido.
A palavra e o exemplo conjugam-se nele de forma harmoniosa. Prega o Evangelho e cumpre a lei do amor cristão em toda a dimensão. É um homem bom, exemplo de conduta ética que a Edilidade do nosso berço insular faz bem em apontar aos mais novos. Passada esta geração, os que então pensarem nas coisas sérias da vida hão-de querer saber porque razão ou razões a Câmara de Carlos Ávila quis dar-lhe tão alto galardão e, ou essas razões são válidas e perenes, ou deitar-lhe-ão os cães do esquecimento, que é a pena maior que uma geração futura pode aplicar à do passado.
O Padre Octávio não foi egoísta com o seu saber e transmitiu-o aos outros como sério e hábil pedagogo, inoculando no espírito dos seus alunos e discípulos, o produto do seu imenso labor intelectual e científico. Pregou e praticou a caridade calcorreando montes e vales distribuindo zelosamente os sacramentos por pobres e ricos sem distinção de idades ou de feitios. Na pia baptismal, no altar dos esponsais ou no leito de morte dos seus paroquianos esteve e está sempre que esse dever sublime do sacerdócio o chama. Sem cansaço, sem hesitação e sem vacilar. Que vocação é essa, Santo Deus, que inspiras nos Teus sacerdotes que até parece natural que se sacrifiquem aos teus mandamentos como se fosse normal alguém entregar toda a sua vida ao próximo e nada esperar em troca, a não ser a suprema alegria de agradar-Te. Tirem-lhe as vestes sacerdotais e vejam nele apenas o homem e digam-me se esta Câmara não se honra mais em tê-lo como cidadão honorário do que ele em receber tal galardão?
Peço-te licença, Padre Octávio, para que me deixes aproveitar esta cerimónia solene, para aqui lembrar esse meu e teu amigo, que Deus já lá tem, Joaquim de Aguiar Cabral. Que orgulho incontido não teria ele de ver o primo tão amigo receber, da sua própria Câmara, um tão alto galardão. Para ele, a Família era o mais que tudo, e foi esse ideal, por certo, o que tanto nos uniu, na curta passagem por este mundo. Desculpa molhar com esta lágrima de saudade um dia destinado a alegrias mas antes está a obrigação que a devoção.
2.- Vejamos agora Carlos Manuel do Vale César que do alto dos meus setenta anos recordo, quando ele e seu irmão assistiam, ainda crianças, à Missa do meio-dia, da Matriz de Ponta Delgada, junto ao altar então dedicado à Senhora da Conceição, acompanhados de seus saudosos pais, todos nós rigorosamente aperaltados com os então obrigatórios fatos de ver a Deus.
Segui como então era possível e habitual numa terra onde todos se conheciam, o seu crescimento, o seu ingresso no secundário do velho Liceu, a ida para a Faculdade, sempre me convencendo que seria na barra dos tribunais que nos haveríamos de defrontar. Veio então a deriva política, a “má” influência de Jaime Gama, Medeiros Ferreira e de Mário Soares, a queda do regime que eu ingenuamente acreditava poder evoluir através da primavera marcelista para uma democracia moderada e redentora. Veio a revolução, o Seis de Junho, a autonomia constitucional, os ministros da República, a proibição dos partidos regionais, o regime híbrido de Mota Amaral que apesar da conquista por ele encetada da unidade política do Arquipélago e da gigantesca obra cultural e material que deixou, no seu longo mandato político, ficou ainda longe das grandes metas que temos de alcançar para sermos merecedores da felicidade de vivermos sobre nós próprios.
Não era fácil desafiar Mota Amaral, esse potentado político, apesar do desgaste impiedoso de tantos anos de governação e menos fácil ainda suceder-lhe na mais alta magistratura política dos Açores.
Perante a expetativa geral, Carlos César iniciou o seu primeiro mandato com uma inovação: quase todos os governantes que escolheu dispunham de graus académicos superiores aos seus. Este facto hoje aparentemente despiciendo, não o era então, pois os governos anteriores tinham sido recrutados entre titulares que, ou os não possuíam, ou os tinham abaixo do grau universitário, circunstância que garantia ao presidente de então uma supremacia psicológica, facilitadora da ação política hierarquizada tal como nesse tempo se concebia.
Nesse aspeto, o nosso homenageado começou uma nova era, acabando com amadorismos facilitadores e iniciando um trabalho em que a ciência e a técnica sobrelevariam pela primeira vez aos critérios políticos que, não obstante, não tinham sido obstáculo às irrecusáveis conquistas amaralistas: a unidade açórica e o progresso material acelerado.
Mas César tinha outras tarefas, também difíceis, a enfrentar. É que, durante quase 20 anos, os socialistas viveram num limbo político que atravessou governos centrais de diversas cores, inclusive as deles, sem que isso os beneficiasse localmente, antes foram mantidos numa longa oposição que fazia perigar duas coisas, a democracia e o próprio socialismo.
Duma agressividade inconsequente que em vez de se concentrar na construção dum estado social açoriano necessário ou possível, focava-se na luta contra todos os que se situavam à direita do seu espetro político, com especial destaque para os que defendiam um autonomia progressiva ilimitada ou até mesmo a independência do nosso Povo.
Com essa política, o Partido Socialista afastou da sua possível base de apoio, não só os seus próprios mas desiludidos adversários mas também os socialistas moderados quer do socialismo utópico e romântico de Antero quer o de carácter científico, bem como aqueles que dinamicamente pretendiam uma evolução emancipalista baseada na vontade popular, democraticamente manifestada.
Aqueles que, como eu, pretendíamos uma emancipação significativa do Arquipélago das peias centralistas, locais ou forasteiras, víamos até então nos socialistas um inimigo a abater e nisso fomos acompanhados por aqueles que ansiavam por um estado social mais justo e que, ao mesmo tempo, comungavam dos ideais socialistas mas não se reviam no PS anterior.
Foi, por isso, com grande expetativa e apreensão que assistimos à subida ao poder do novo líder.
Víamos então duas coisas boas: por um lado, o fim dum tipo de governação que se degradava arrastando consigo todas as conquistas conseguidas; por outro lado, o sempre aguardado e desejado funcionamento da alternância democrática que iria permitir aos nossos inimigos arrearem a bandeira de que os radicais açorianos não eram democratas nem acreditavam na própria democracia como regime político.
Foi então consensualizado um total respeito pelos resultados eleitorais e pelas autoridades saídas do sufrágio que foram sempre e desde logo tratados com o respeito devido à soberania, em todos os lugares quer em público quer em privado em que apareciam.
O resultado foi melhor que o desejado. Manteve-se e fortaleceu-se a unidade açoriana, ultrapassou-se as rivalidades mais perniciosas com a feliz designação dum ilustre terceirense para a vice-presidência, a quem foram entregues, com sucesso incontestável, as nossas finanças, até então em difícil situação, conseguindo-se, mercê dum esforço titânico, a relativa segurança duma lei-quadro de finanças regionais autónomas.
E tudo fruto duma ação política carregada de habilidade diplomática em que César soube contar com o espírito superior de António Guterres, esse estadista que o país teve o raro privilégio de escolher para a frente da governação durante algum tempo e de cuja bondade este concelho teve provas em momentos de muita angústia e quase desespero.
Garantida a unidade, constituída uma equipe de trabalho político com pergaminhos culturais até então impensáveis, eis que Carlos César conseguiu trabalhar em paz, rodeado pelo respeito geral, promovendo por vias lentas mas seguras e permanentemente ativas, em todos os setores da atividade humana. um progresso que transformou profundamente o nosso viver.
Não desprezou os projetos da anterior Administração cujo significado era incontestável, como o magnífico Hospital micaelense e a autoestrada Ponta Delgada Lagoa cuja execução promoveu e meteu ombros a uma tarefa que seria impossível descrever aqui, a não ser por amostragem, de que destaco a grandiosidade da estrada do Nordeste que transformou definitivamente a ilha, a imponência das Portas do Mar que virou a nossa maior cidade para o mar e para o novo turismo, os portos de pesca da Ribeira Quente e de Vila Franca do Campo, satisfazendo ambições de séculos até então consideradas impossíveis de alcançar. E só estou a referir-me a S. Miguel.
Foi gigantesca a obra no setor da cultura e da educação. Nunca se tinha visto até ele um tão imenso, planificado e sistemático incremento da nossa educação e da preservação e desenvolvimento dos nossos valores e recursos culturais.
Jamais as classes mais desfavorecidas tiveram um viver tão protegido, tão apoiado, tantas oportunidades de se livrarem da implacável lei da pobreza.
Os hotéis surgiram por todo o lado como cogumelos, abrindo pela primeira vez a possibilidade da nossa diáspora visitar a terra berço dos seus maiores sem os constrangimentos que as gerações anteriores enfrentavam e que os afastavam de vez, perante vergonhas, indignidades e humilhações insuportáveis.
Recebeu reis, poetas, estadistas, soube dignificar a nossa imagem perante o mundo.
Deu um apoio decisivo à agricultura, e mandou promover por toda a parte os seus produtos; salvou lagoas e florestas, pacificou a lavoura cuja capitalização e modernização conseguiu de forma irreversível e notável.
Com o seu discurso contido, bem estruturado, culto, rigoroso, bem informado e hábil gerou largos e duradouros consensos, mobilizando-nos para as grandes tarefas do nosso próprio desenvolvimento.
Fortaleceu em todas as nossas comunidades, no estrangeiro, as suas
mais importantes representações sociais e culturais, dando-lhes meios e a dignidade por que sempre ansiaram e que sempre mereceram. Fez-lhes visitas de estado promovendo duma forma dignificante e até então nunca vista, a nossa imagem como Povo civilizado, por vezes tão aviltantemente segregado e desprezado por falta de apoio daqueles que oficialmente tinham mais que obrigação de o fazer.
Defendeu com vigor o nosso precioso ambiente, estruturou e fortificou todos os organismos de defesa civil, em dimensões nunca vistas.
Alguém mais autorizado que eu disse o que lhe deve em particular o concelho da Povoação, a primeira parcela do nosso território sagrado onde pisaram os nossos primeiros pais.
Mas posso e devo dizer, já que me dão essa privilegiada oportunidade, que todos os açorianos lhe ficam devendo a total entrega ao bem-estar do Povo que o elegeu e, sem descanso, durante estes dezasseis anos, trabalhou afincadamente para que do seu consulado ficasse a marca do progresso material e o indelével desenvolvimento intelectual das nossas gentes.
Claro que ainda é cedo para se saber se essa imensa obra terá ou não o resultado almejado e isso só as gerações futuras, se não estiverem distraídas como até aqui, sobre o seu passado recente, é que hão-de julgar isso.
Para já, não teme a sua obra confronto algum com o que o resto do País fez e conseguiu, mercê de esforços financeiros mais ou menos clandestinos e excessivos que a nós todos estão prejudicando.
Sai Carlos César com a satisfação do dever cumprido e eu, que nada lhe devo pessoalmente, para além do respeito com que sempre me tratou e que tentei retribuir, orgulho-me de ter sido testemunha privilegiada desta época de ouro da nossa História.
Bem-haja a Povoação por reconhecê-lo como estadista e parabéns ao Presidente de todos nós por haver quem o reconheça ainda em sua vida.
Carlos Melo Bento
Povoação 7.7 2012
segunda-feira, 9 de julho de 2012
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