terça-feira, 26 de outubro de 2010

Luís Filipe da Cota Moniz

Discurso proferido na festa de despedida do Dr. Luís Filipe da Cota Moniz por Carlos Melo Bento, Angra do Heroísmo, 17 de Abril de 2010.


Começo por agradecer à D. Margarida Andrade a honra do convite para esta bonita e bem organizada festa e o privilégio de poder falar-vos sobre uma pessoa a quem me ligam os indestrutíveis laços da amizade.

Amigos

Já lá vão tantos anos que nem sei quantos são os que passaram sobre o nosso primeiro encontro. Bem mais novos éramos certamente que nem cabelos brancos tínhamos. Tratava-se de erguer o primeiro Conselho Distrital dos Açores da Ordem dos Advogados Portugueses.

Os colegas de Ponta Delgada haviam-me encarregado de os representar na constituição dessa primeira equipa que iria ressuscitar o velho Conselho, extinto nos tempos super económicos do salazarismo. Timidamente, contactei o velho tribuno terceirense com quem há pouco me enrolara em acesas disputas políticas televisivas. Álvaro Monjardino, dez anos mais velho do que eu, mas com uma aparência pelo menos uma década mais jovem; indicou-me dois nomes para esta aventura forense não remunerada mas com altas exigências morais e deontológicas: António Fantasia e Luís Filipe da Cota Moniz.

Aceite o inusitado convite, começou uma colaboração que haveria de desaguar numa amizade sólida, até hoje. Lembro-me com emoção do primeiro cartão que me mandou e que guardo com o desvelo das coisas boas da vida. Lá vamos, dizia ele, servir então estes Açores, “cemitério das nossas ilusões”.

Ao princípio, a frase chocou-me porque os Açores para mim foram desde sempre uma divindade em altar incensado, templo de irmãos de história e geografia, aventura infinita de portugueses antigos para aqui mandados para continuar Portugal, nos confins do mar tenebroso que ajudámos a desvendar.

Abandonados, explorados e ignorados durante mais de cinco séculos, tínhamos seguido de perto as situações na Mãe Pátria a ponto de, por diversas vezes, termos corrigido rumos e ditado soluções ao país inteiro. Sempre esquecidos depois de precisarem de nós, foi preciso arranjarmos uma solução que nos permitisse resolver sozinhos os problemas. E não temos dado má conta do recado. Por isso, ao responder-lhe àquele grito de desânimo apelei aos nossos valores que nos têm mantido amigos desde então.

E foi com esse espírito de servir os açorianos que andámos de ilha em ilha, algumas vezes adiantando do nosso bolso as despesas de deslocação e estadia, reunindo, deliberando, erguendo a advocacia, a mais mal tratada da profissões, mas a mais nobre delas todas, ao patamar a que tem direito entre o concerto das profissões humanas.

Quantos dramas pudemos apreciar e julgar! Quantas soluções arranjámos para situações difíceis e complicadas! Quantas lágrimas enxugámos e quantos gritos de alegria despertámos com bom senso e prudência! É que, aos advogados se pede que emprestem a voz aos que dela não sabem fazer uso. E, muitas vezes, fazem de nós os bodes expiatórios da maldade dos que nem sempre se sabem conduzir dentro das regras do bom comportamento humano e nos usam para a defesa dos seus interesses inconfessáveis.

Não quero com isto dizer que sejamos todos anjos que todas as profissões têm as suas ovelhas negras. Mas há entre a maioria dos advogados, felizmente, gente séria e respeitável, embora nem sempre as pessoas tenham consciência dos trabalhos e das agonias que passamos para lhes defender os direitos e as causas. Quantas noites sem dormir pensando nos problemas dos outros? Quanta canseira e tormentos passamos à espera duma sentença ou dum despacho que teima em não chegar apesar dos esforços? Quantas derrotas inesperadas quando tudo parecia indicar que tínhamos levado a bom porto a causa que com tanta esperança depositaram nas nossas mãos, confiados no nosso saber jurídico e na experiência da barra dos tribunais? Quantas desilusões e decepções nos ofereceram o tempo e as pessoas?

Mas, cansados e esgotados, quanta alegria trouxemos a quem tivemos a sorte de conseguir ganho de causa. E são esses momentos em que conseguimos com o nosso modesto esforço que se faça justiça que nos compensam a espinhosa missão de advogar. E compensam plenamente.

Mas estava eu a falar-vos das nossas reuniões por esse Arquipélago de Deus. Foram tantas as ilhas que calcorreámos em inolvidáveis companhias de colegas que recordo com tanta saudade. O Dr. Manuel Linhares de Andrade, velho tribuno da Horta, príncipe entre os príncipes de educação cuja narrativa empolgante extasiava sem cansaço. Era vê-lo no seu Pico deslumbrante, cicerone documentado de novas e velhas histórias, congregar reuniões magnas com gastronomias de mestres consabidos e tocadores de guitarras encantadores que mitigavam a aridez dos casos que trazíamos entre mãos.

Eduardo de Oliveira, hoje tão doente, sempre preocupado com o dia a dia duma enorme família.

António Fantasia com a sua inteligência viva e permanente preocupação jurídica dos que fazem do direito e apenas dele a sua razão de viver.

Foi a festiva inauguração da nossa sede de Angra com a excitação de quem cumpre uma etapa importante na evolução duma instituição. E paro aqui um pouco para falar se me permitem, nos terceirenses, aqueles que marcaram a fogo a nossa história com tomadas de posição únicas no país cujo destino traçaram a partir deste torrão sagrado. Isso deu aos terceirenses uma tão interessante maneira de ser que não resisto a prestar dela o meu testemunho, tão entranhada ela está no nosso homenageado que me parece servir-lhe como boa luva.

Os terceirenses são o músculo da coragem e audácia da nossa inteligência e cultura colectivas. E têm sempre presente o que nos momentos cruciais fizeram; ora nos tempos sanguinários do Prior do Crato em que a nossa capital histórica foi passada à espada por ter tido a ousadia de permanecer portuguesa quando o resto do País se vendeu ao Castelhano.

Ou nos tempos da revolução liberal em que o País inteiro aclamou o usurpador e Agapito Pamplona, proclamou que, se ele estava ali proclamado, não o estava na ilha Terceira. E o País foi obrigado por essa vontade inquebrantável a banir os que se opunham ao progresso e às luzes do entendimento.

Por isso, Cota Moniz sempre tomou em público ou em privado postura de corajosa frontalidade jamais recuando perante obstáculos que pareciam intransponíveis. Sei que enfrentou aqui a velha questão da rivalidade entre as nossas duas ilhas. Em S. Miguel batia em nós de caras e sem medo. Na Terceira defendia-nos quando tínhamos razão.

E é esta sua postura que me faz permanecer a seu lado quaisquer que sejam as circunstâncias que nos afectem. A unidade dos açorianos é um bem sem preço que todos devemos proteger porque se não estivermos unidos de nada valeremos perante os inimigos poderosos e numerosos que nem precisam estar juntos para serem mais e mais fortes que nós.

Isto não quer dizer que não defendamos os nossos interesses particulares, puxando para a nossa ilha tudo a que ela tiver direito. Mas as nossas divergências devem conhecer tréguas quando o interesse geral estiver em perigo.

Frontalidade, coragem, honradez e lealdade, eis as qualidades do nosso homenageado que o transformaram em objecto de veneração, como homem, como colega e como servidor do estado que o foi sempre com o mais alto espírito de escravo das leis cujo cumprimento porém tem temperado com os meios que a cultura e o bom senso põem ao serviço do homem, pois que as leis se fizeram para os homens e não os homens para as leis, sob pena de se criarem regimes desumanos e implacáveis que não servem de nada nem a ninguém.

Como advogado, temos um jurista competente e um orador inspirado, com a palavra fácil e adequada à descrição rigorosa dos factos e à explanação científica do direito aplicável, tudo servido por um espírito independente insusceptível de subserviências ou lisonjas vãs.

Crítico quanto baste de ideias e de pessoas, sem que isso jamais o tenha levado ao desrespeito por colegas ou magistrados ou funcionários. Mereceu sempre, por isso o respeito geral.

Exigente que sem isso somos empurrados alegremente para um laxismo suicida e tolo. Não é por se facilitar o estudo das questões ou por se aligeirar as soluções encontradas que alcançamos o sucesso. As gerações mais novas têm a natural tendência para achar as exigências de rigor e eficácia como rabugices dos velhos mas acreditem que, se pode haver exageros condenáveis, a total ausência de exigências de qualidade não nos levam a bom caminho, apenas facilitarão a vida aos nossos inimigos que a vida, hoje em dia, mais que nunca, não é vivida no jardim do paraíso, mas é uma luta feroz, numa selva de interesses onde só sobreviverão os mais fortes.

E para que os vencedores não sejam apenas os que sabem fazer uso da força bruta, é preciso reconhecer nos homens, como Luís Filipe da Cota Moniz, que exigem tanto dos outros, como exigem de si próprios, o espaço que merecem as pessoas de bem, portadoras de inteligência viva e de robusta cultura.

Terceirense ilustre, açoriano dos quatro costados, colega leal, amigo precioso, bem-haja pelo seu exemplo, pela sua amizade e por ter enriquecido as nossas vidas com a sua maneira de ser.

Angra do Heroísmo 2010-04-17
Carlos Melo Bento

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