Senhor Representante do Presidente do Governo Regional
Senhor Presidente da Câmara Municipal da Vila
Senhoras Vereadoras
Excelentíssimas Autoridades
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Senhor Presidente da Câmara Municipal da Vila
Senhoras Vereadoras
Excelentíssimas Autoridades
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Foi-me ordenado de bem alto que falasse neste dia sobre Vila Franca do Campo em tema à minha escolha. Proibido de dizer que não e sem margem para manobra, lembrei-me de trocar convosco impressões sobre duas ou três coisas da nossa Vila, ou melhor da Vila de meu Pai, pois não tive a honra de nascer aqui.
Li praticamente tudo o que há para ler sobre a velha capital de S. Miguel e acompanhei Sousa d’Oliveira nas escavações arqueológicas que desceram ao coração da Vila Velha, entrando nas antigas casas e andando nas ruas que existiram antes do cataclismo de 1522 que soterrou a que de nobre precedia a quantas vilas havia na ilha de S. Miguel. Vi as louças da China em que comiam, observei as malgas de louça fina com que se lavavam, olhei ricos azulejos de fabrico mourisco, toquei em partes de armaduras de aço com que combatiam e peguei nas refinadas medalhas religiosas e nas cruzes metálicas com que rezavam à Mãe do Céu ou ao Redentor; tive nas minhas mãos anforetas onde guardavam os seus vinhos e azeites, contei as moedas com que negociavam, extasiei-me perante belas pedras das suas igrejas de telhas pintadas com desenhos requintados e portais luxuosos de palácios onde os grandes habitaram e pude imaginar o esplendor com que viviam os nossos primeiros povoadores.
Quando se juntavam os homens bons de todos os concelhos desta ilha, e isso só acontecia nos momentos mais importantes da nossa história, Vila Franca, por ser a primeira de toda a Ilha e ter entre elas a primazia, o seu procurador tinha assento no primeiro banco e era o primeiro a usar da palavra e, portanto, era tremenda a responsabilidade do porta voz da delegação vila-franquense porque quem vem depois tem sempre a vantagem de já ter o caminho bem desbravado. Foi porventura este privilégio que fez dos cidadãos de Vila Franca o que eles são hoje: orgulhosos do que é seu, conscientes da sua importância e muito reivindicativos em relação aos restantes povos seus vizinhos.
A tragédia que nos esmagou em 1522 destruiu toda a documentação que hoje poderia explicar tanto mistério que cobre o nosso passado. Por exemplo, e este é o primeiro assunto que tratarei, quando e por quem é que Vila Franca foi feita concelho? Ninguém sabe porque o dilúvio se encarregou de destruir o valioso arquivo da nossa primeira capital e ainda não foi encontrado fora dele qualquer documento que no-lo revele. Gonçalo Vaz Botelho fundou neste lugar um povoado e, certamente, aconselhou o Infante D. Henrique a ordenar e a estabelecer aqui uma Igreja a S. Miguel, na ilha do mesmo nome. Sabemos isso porque, assim, tão alto príncipe o diz no seu testamento de 1460, ano em que morreu. Sua alteza não fala em Vila nesta ilha, o que seria natural se ela já existisse. E, curiosamente, foi nesse ano de 1460 que Gonçalo Velho foi investido nas duas capitanias de Santa Maria e S. Miguel.
Essa Igreja, porém, só terá Vigário ou Capelão nomeado em Fevereiro de 1471, (portanto 11 anos depois de sabermos que foi ordenada e estabelecida e ter capitão) e por certo (penso eu) ela já estava construída quando isso aconteceu; foi seu primeiro titular Estêvão Vaz que fora capelão do Infante D. João, pai da infanta D. Beatriz, como sabemos por carta desta a D. Frei Pedro d’ Abreu, Vigário da Ordem de Cristo que exercia então o poder espiritual sobre nós. Mas nesse ano, parece, também ainda não havia Vilas nos Açores.
É que, não há bem a certeza mas o concelho de Vila do Porto, em Santa Maria, pode ter sido criado à volta de 1470, ano em que morreu o Infante D. Fernando, Duque de Viseu e nosso segundo senhor e esse concelho foi o primeiro dos Açores. O Funchal recebeu o primeiro foral entre 1452 e 1454, sendo então elevada a vila e a sede de concelho, apesar do Zarco só ter sido investido na Capitania do Funchal em 1459. Curioso é que foi precisamente neste ano de 1452 que Diogo de Teive descobriu as Flores e o Corvo.
Angra foi feita vila em 1478 e é muito natural que entre Vila de Porto 1470 e Angra 1478, terá sido feita Vila a nossa, pelos Reis de Portugal (como quer António Cordeiro, não o nosso actual presidente mas o antigo cronista terceirense). Ou pelo filho do Infante D. Fernando ou pela Infanta D. Beatriz viúva deste, em nome do filho órfão, D. Diogo, Senhor desta Ilha por a ter herdado do Pai, aquele D. Fernando era irmão de D. Afonso V, e foi perfilhado por D. Henrique, morreu muito novo, precisamente em 1470 como disse. Algum deles elevou este lugar a concelho e, portanto, a Vila porque então como agora não há um sem a outra, pelo menos.
A verdade, porém, é que estes anos de 1475 e 1476 foram muito complicados para Portugal. Em 75, o rei sai para a aventura castelhana e francesa deixando o filho a governar e no ano seguinte, dá-se a batalha do Touro, em que o filho ganhou e o pai perdeu, pelo que o país estava em pé de guerra e, certamente, os reis não tinham tempo para criar vilas ou concelhos.
Um importante documento faz alguma luz sobre este assunto e diz respeito à venda da capitania de S. Miguel por João Soares de Albergaria (o sobrinho e herdeiro de Gonçalo Velho que vivia com o Infante em Sagres) a Rui Gonçalves da Câmara em 1474, por 800.000 reis ou sejam 2.000 cruzados e 4.000 arrobas de açúcar (60.000 quilos) de que a ilha da Madeira onde vivia com o Pai, João Gonçalves Zarco, era já muito rica e ele tinha ali propriedades na Ribeira do Mel. Nesse documento não se fala em Vila mas sim na Ilha de S. Miguel o que, se já houvesse Vila, seria natural falarem pois a capitania abrangia toda a ilha, não era como a Terceira que, apesar de mais pequena, foi dividida em duas. É de notar que foi neste ano de 1974 que D. João II, ainda príncipe herdeiro, ou real como se passou a dizer depois dele, começou a dirigir pessoalmente a política atlântica e naturalmente lhe deu o impulso que a sua lendária energia permite adivinhar.
Porém, o primeiro documento que se conhece em que o nome de Vila é referido é o testamento de Izabel Gonçalves viúva de Afonso Gonçalves que, no seu resumo final, reza o seguinte: Saibam quantos este instrumento de aprovação virem, que no ano de nascimento de nosso Senhor Jesus Cristo de mil quatrocentos e oitenta e três anos (1483), a vinte e oito de Junho da dita era, em vila franca da ilha de S. Miguel, dentro nas casas de morada de Izabel Gonçalves, que jazia doente em sua cama. De doença natural, disse que ela fazia a sua cédula e testamento, dentro escrito, por ela assinada, disse que havia por bom, firme, estável, a deste dia para todo o sempre, e que mandava que se cumpra segundo em ele é conteúdo.
Testemunhas que presentes foram e aqui assinaram Álvaro Santarém, tabelião, e João Roiz recebedor, e João Homem, e João Vaz, e Lucas Garcia, e Pedro Cordeiro, e Luís Pires, pedreiro, e Fernão Álvares, gaiteiro, e outros, e eu Pedro Cordeiro Tabelião que este escrevi.
Pode que este Pedro Cordeiro seja um dos companheiros de Gonçalo Vaz Botelho e que foi Tabelião Público em todas as ilhas dos Açores achadas ou por achar, pois foi dos primeiros a desembarcar na Povoação Velha por volta de 1449, e estes eram então naturalmente gente muito nova, provavelmente na casa dos vintes.
Portanto, neste primeiro documento, feito 23 anos depois da morte do Navegador, pode ver-se que já havia Vila, que ela era franca, mas ainda não se chamava do Campo, e era a única de toda a ilha de S. Miguel.
Estranho é que no Tombo do Rei ou no do Infante ou no do dito Duque de Viseu, que seria morto pelo cunhado D. João II no ano seguinte, nada conste. Certamente, quando a fizeram vila nunca esperavam que ela se tornasse tão importante em tão pouco tempo e que em menos ainda desaparecesse da face da terra. A não ser que, logo depois de 1474, em que a capitania da ilha foi vendida a Rui Gonçalves da Câmara, que foi o nosso primeiro grande povoador que a governou até morrer durante 21 anos, a tivesse proclamado vila (certamente porque já possuía gente de qualidade para tanto) e só depois os donatários ou o rei o confirmassem.
Gonçalo Vaz Botelho fora corrido da Povoação pelas intempéries e pelo pouco que conseguiu arrancar da terra, pois que o trigo que ali semeou deu uma espiga tão grande e tão pouco trigo que ainda hoje o povo diz de coisa mal amanhada, uma grande espiga!
Calcorreou o fundador do povoado que viria a ser Vila Franca do Campo, a costa toda do sul da ilha e não encontrou campo discreto (ou formosa chã, como diz o cronista) a não ser aqui. Melhor que este campo só havia o de Ponta Delgada mas esse tinha falta duma coisa fundamental: água. Ponta Delgada não tem ribeiras e durante muitos anos o seu povo bebeu água dos poços que abriu (um na rua do Poço, outro que está hoje dentro da Igreja Matriz de S. Sebastião e outro que ficava dentro do Castelo de S. Braz).
Vila Franca, por seu lado, tinha além de ribeiras, bons acessos pelo mar quer em praias quer em portos naturais, e é natural que o primeiro porto a ser usado tenha sido junto do Reduto Velho que se situava ao fundo da velha rua da Tripa e que ia dar à Praça da Vila ou seja ao actual largo das Freiras ou de Bento de Góis onde se situava a Igreja Velha de S. Miguel, Matriz de toda a ilha e, certamente a Câmara Municipal. Ainda me lembro de parte do pano da muralha daquele Reduto Velho que ali houve até há bem pouco tempo.
Depressa se guardou a Vila com vários Castelos: o de Santo António no cabo nascente da Vinha da Areia, o Reduto Velho de que falámos, o do Tagarete que era real ou seja, sustentado pelo Rei, e o das Taipas que também era dele; o de S. Pedro, que ainda conheci muito arruinado e que não me parece ter sido tão real como os outros. Portas da muralha de Vila Franca havia a do João do Outeiro na Foz da Ribeira da Vila, ou seja a dos Pelames por ali se curtirem as peles ou do Rabaçal como também a chamam, e a porta do Corpo Santo cujos fortes e monumentais batentes apesar dos meus veementes apelos pela televisão para que fossem preservados, foram destruídos há ainda menos tempo e nem o terramoto tinha conseguido isso.
Gonçalo Vaz Botelho, que ficou conhecido pelo cognome de O Grande (cuja bela estátua de Bronze o Visconde Botelho encomendou ao escultor Canto da Maia e ofereceu à Vila) que era filho do Comendador Mor de Cristo, não era porém nem dono da ilha, nem seu capitão. Mais tarde, foi nomeado Ouvidor do Capitão e governador substituto de S. Miguel. Fora ele a dar as primeiras terras porque a ilha estava deserta quando aqui chegou. Foi ele que escolheu este lugar para onde trouxe naturalmente os mouriscos que o acompanharam na Povoação (cujos cabeças eram Jorge Velho, príncipe de Fez refém trocado pelo Infante D. Fernando (o Santo, não o nosso donatário, seu sobrinho), e mulher África Anes, Pedro de S. Miguel e mulher Aldonça Roiz, João de Rodes e João de Arraiolos ou de Araújo) e os outros companheiros cristãos velhos (dez ou doze homens casados) de que Frutuoso cita os seguintes nomes: Afonso Anes do Penedo, Rodrigo Afonso, Afonso Anes o Colombreiro, Vasco Pereira, João Afonso d’ Abelheira, Pedro Afonso, João Pires, Gonçalo de Teves Paim natural de Paris, almoxarife, e Pedro Cordeiro seu irmão de que já falei. Talvez tenha sido ele a erguer a primeira Matriz, mas logo que a capitania foi vendida ao Rui Gonçalves da Câmara foi este quem passou a mandar, tantos eram os poderes que a Infanta lhe deu que não é imaginável que outra autoridade se pudesse levantar ao seu nível.
De 1449 a 1474, em que Rui da Câmara comprou a capitania a João Soares de Albergaria, era Gonçalo Vaz o governador dos poucos colonos, alguns vindos de Santa Maria como os outros sobrinhos do Comendador de Santa Maria, Pêro e Nuno Velho Cabral, desgostosos com o Infante por lhes não ter deixado herdar as capitanias como o tio desejava, pois vieram com ele para estas ilhas ainda meninos.
Agora veja-se: no testamento de Izabel Gonçalves o notário fala em vila franca da ilha de S. Miguel. Não diz do Campo certamente porque a primeira qualidade que o novo concelho ganhou foi a de ser franca, isto é, só pagava a dízima ao Rei. Mais nada, o que era muito, vistos os imensos impostos que então se cobravam no País: sisas sobre imóveis, móveis e se moventes, portagens, impostos sucessórios, contribuições prediais, reais de água e sei lá que mais.
Depois, houve que lhe dar um nome. Em Santa Maria a Vila chamava-se do Porto (reparem que os nossos concelhos (contrariamente às Ilhas) não têm nomes de santos, com a excepção da Madalena do Pico e as duas Santas Cruzes); as outras, Angra, Praias, Calhetas, Velas, Topo, Cais, Lajes, Ponta, Água de Pau, Capelas. Portanto, era a característica morfológica que inspirava o criador dos concelhos, aliás como quase todos os de Portugal ou do Reino como então se dizia.
A nossa Vila podia ter sido Vila das Praias (Vinha da Areia, Tagarete, Taipas e Corpo Santo), ou Vila do Ilhéu, talvez até, Vila de S. Miguel, se a Igreja de Roma não o impedisse por razões canónicas, não sei. Como a sua característica principal era o largo e rico campo, eventualmente o que de maiores dimensões foi possível arrotear e lavrar, onde a colocaram, e logo “respondeu com muitas e abundantes novidades”, foi assim que ficou o seu nome.
Em que data? Pois não sabemos. Depois de 1474, provavelmente mas não muito porque os Câmaras não eram nem são meninos para governarem coisas pequenas. A verdade é que quase 50 anos depois, a Vila já tinha 4.000 pessoas tantas quantas morreram no seu dilúvio.
Já vimos algumas dessas pessoas que vieram com O Grande. Depois, com Rui da Câmara vieram Gaspar de Bettencourt, sobrinho e herdeiro da mulher do capitão e bisneto do vice-rei das Canárias que por ter casado com uma senhora Guiomar de Sá, são os antepassados dos Bettencourt de Sá de S. Miguel. Também trouxe o novo capitão a Antão Pacheco que era descendente dum irmão do Marquês de Senalvo e que fugiu de Castela por ter aderido à revolta das Comunidades e ser perseguido pelo rei daquele país. Rui Lopes, o Cavaleiro, que talvez tenha dado o nome à Lomba do dito, na Povoação que era neto do Regedor das Justiças d’el rei, que perseguiu seu pai Rui Esteves Barbosa por ter casado com a irmã dele sem sua licença, facto que os fez fugir para a Galiza. Ela regressou grávida do pai do Cavaleiro, mas o Regedor foi implacável: depois do nascimento do bebé, mandou-o para o pai e pôs a Mãe num convento onde ela morreu. Está sepultada em S. Marcos de Coimbra onde é o mausoléu dos Silvas. Os Barbosas da Silva desta ilha descendem deles.
Rui Vaz Gago era de Beja e era conhecido pelo do Trato pois contratara com o rei o trato da Mina onde enriqueceu (ainda hoje se diz, isso é uma Mina!), veio também para S. Miguel com Rui da Câmara. Também chegou a esta ilha no tempo deste capitão, um Fernão Anes Tavares, de Portalegre, perseguido por um delito de honra, pois apesar de fidalgos, tinham raptado uma prima para casar com um dos Tavares, também nobre mas mais pobre que a noiva. A família ultrajada conseguiu sentença de morte contra eles, que ao tempo podia ser executada por qualquer um dos ofendidos. Por isso, esteve pouco tempo em Vila Franca indo povoar a Ribeira Grande (que não tinha porto e portanto mais longe das vistas dos curiosos e perigosos viajantes) com a grande fortuna que conseguiram trazer. Alguns dos seus descendentes porém vieram para ou ficaram em Vila Franca como se pode ver dos deste apelido que ainda cá vivem. Também Martim Anes Furtado de Sousa com sua mulher Solanda Lopes (descendente de flamengos) vieram no tempo do capitão Rui da Câmara e aqui tiveram sete filhos e inúmeros netos.
Também Rui Vaz de Medeiros que era de Ponte de Lima e de Guimarães foi trazido para S. Miguel por Rui da Câmara por ser nobre e muito rico e a quem este deu muitas terras na Lagoa e que se viria a tornar no antepassado mais antigo da mais numerosa família açoriana: os Medeiros. E nesse tempo veio ainda Lopo Anes de Araújo, natural de Viana e tantos outros que aqui proliferaram.
Frei Agostinho de Mont’Alverne confirma isto dizendo ”e vendo que a gente que concorreu logo a povoarem a Ilha, a povoassem por várias partes, mais se inclinaram a morarem neste lugar de Vila Franca, tanto que Rui Gonçalves da Câmara com sua mulher Dona Maria Bettencourt…entrando nela com muitas famílias e gente que trouxe consigo neste lugar fez seu domicílio”.
Falo nestes nomes porque certamente foram eles quem ajudou a elevar a vila, esta formosa chã que talvez para não se confundir com Vila Chã a acabaram por chamar do Campo.
D. Manuel deu Foral novo a muitas Vilas de Portugal mas, infelizmente, Vila Franca não foi contemplada, senão teríamos na Torre do Tombo, em Lisboa o seu duplicado, a não ser que o terramoto de 1755 o tivesse feito desaparecer como o de 1522 fez desaparecer os velhos pergaminhos da
Vila Franca do Campo
Que de nobre precedia,
Na ilha de S. Miguel,
A quantas vilas havia.
E já basta de coisas sérias. Falemos agora do S. João e das velhas superstições que chegaram até hoje mais ou menos intactas. Urbano de Mendonça Dias guardou-as numa das suas preciosas obras, sobre A Vila e é em homenagem ao mais prolífero e valioso escritor açoriano de todos os tempos, que as partilho convosco, ainda que correndo o risco de querer ensinar o Padre Nosso ao Vigário já que, nesse terreno, ninguém leva a palma aos descendentes daqueles que nem o dilúvio de 1522 conseguiu molestar.
Como se sabe, na véspera à noite do dia 24 de Junho é obrigatório sob graves penas, fazerem-se grandes fogueiras com louro do mato e não outra coisa, que tem de arder em fogo vivo durante algumas horas, sendo também obrigatório os rapazes fazerem fila para as saltar em algazarra grande. Ai de quem o não fizer, podendo fazê-lo! Nem digo o que lhe acontecerá…
Ao amanhecer do grande dia, um cornetim pelo menos há-de tocar a alvorada do eirado duma torre bem alta e as bandas hão-de tocar o Hino de S. João que só se há-de ouvir duas vezes por ano, pois S. Pedro também tem esse direito e marcharão com o tradicional ordinário pelas ruas da Vila. De tarde, é obrigatório a concentração na praia do Poço Largo em frente ao ilhéu para ir lá buscar um junco fino. Só quem passar o dia na Lagoa do Congro a dançar ao som da viola é dispensado desta obrigação.
Fava e milho terão de ser torrados em sertã de barro e expostos ao sereno santo da noite de véspera deste santo popular. Mas, muita atenção, tem o assado que ser recolhido antes do sol nascer para não perder a virtude que se transmite a quem o trincar durante o dia.
Nessa noite se há-de recolher a água, antes do sol nascer, e só com ela se pode amassar o fermento novo que durará reformado todo o ano, pois o que assim é feito nunca se perde.
E quem se quiser livrar do mau-olhado terá de encontrar e recolher, também nessa noite santa, um trevo de quatro folhas. Se o conseguir o mundo será seu, senão, não!
E quem quiser saber o futuro terá de cortar com uma tesoura nova e nunca usada, as folhas da flor do cardo, queimando ao de leve a corola tesourada. Nos pedúnculos amarrarão pequenas etiquetas com as perguntas de que querem saber as respostas: se casa ou não casa, se será rico ou pobre, louro ou moreno e quem é ele ou ela. Muito importante: esses cardos com as etiquetas têm de ser expostos ao sereno da noite. No dia seguinte, logo a seguir aos primeiros raios do sol, recolhem-se as flores, procurando aquelas cujas pétalas rebentaram outra vez, pois só essas correspondem a respostas afirmativas. Portanto, todo o cuidado na inteligência das perguntas cuja resposta é como as sondagens políticas: sim ou não! O mesmo se passa se deitarmos sortes à ventura, ou seja, perguntas em papel dobrado num prato com água que deve apanhar o sereno da noite e não deve de maneira nenhuma apanhar o sol da manhã, principalmente os primeiros raios do astro rei. Se o papel se abrir virado para baixo a resposta é um não; se for virado para cima e se ele se abrir, trata-se dum sim. Nunca falha!
Agora, a clara d’ ovo. Agarra-se num copo transparente muito bem lavado e deita-se nele água até metade. Então derrama-se ali, com muito cuidado, uma clara de ovo e tudo se expõe ao sereno da noite de véspera de S. João e, também muito cuidado, antes que o sol nasça recolhe-se o copo para dentro de casa e observa-se aos primeiros raios de sol, as formas que a clara tomou: se for um navio vai haver uma viagem, se for uma igreja (ou conservatória do registo, já agora) vai haver casamento. Cuidado se parecer uma tumba…
A fava crua tem também segura função na noite sagrada da véspera de S. João. Descasca-se uma, parte-se outra e deixa-se a terceira inteira, colocando-se as três debaixo do cabeçal. Logo aos primeiros raios de sol, quem as colocou tira uma, sem olhar. Se tirar a nua, vai ser pobre, se for a intacta será rico se for a partida vai ser remediado toda a vida.
Agora para se evitar divórcios e outras calamidades modernas veja-se o jogo do rosário de namorados. Prestem bem atenção que eu vou dizer isto apenas uma vez: escrevem-se sete nomes de rapazes e sete nomes de raparigas casadoiros. Dobram-se muito bem os papelinhos, cada um com um nome deles. Depois, enfiam-se o nome das raparigas num fio e o dos rapazes noutro. Estes rosários são expostos ao sereno da noite. Logo de manhã, aos primeiros raios de sol, vêm-se quais os que abriram e uma boa fada ou feiticeira fará, juntando os pares num só rosário. Estes são que são os verdadeiros e infalíveis casamentos de S. João; os outros, serão ou não. Não disponho de dados estatísticos que me permitam confirmar ou infirmar a boa solução destes casos. Estou a vender pelo preço que o Dr. Urbano me vendeu e não vejo forma de reclamar neste mundo das soluções encontradas. Talvez no outro...
Finalmente, vou revelar o mais difícil e perigoso jogo de adivinhação infalível da noite de S. João e do seu sereno. Trata-se duma adivinhação perigosíssima que só os iniciados poderão efectuar e mesmo assim com graves riscos. Primeiro temos de arranjar sete pratos que nunca tenham sido usados; depois em cada um deles coloca-se terra, cinza, flores, bonecos, água, chaves e dinheiro, deixando esses objectos ao ar livre para receberem com abundância o sereno da noite. Antes do sol nascer (cuidado com esta precaução!), os pratos são recolhidos e colocados ao acaso sobre uma mesa muito bem lavada e sem qualquer toalha. Os interessados são então bem vendados, trocam-se os pratos de lugar, e dá-se-lhes a oportunidade de escolher um deles. Não lhes posso revelar o que cada um dos pratos significa pois isso faz parte do segredo da profissão de feiticeiro e eu não a vou perder só para vos ser agradável. Mas posso garantir que viagens, propriedades, arrumos, riquezas, solidão, mortes e filhos são as soluções mais alcançadas pelos aprendizes de feiticeiro. E feitas estas obrigações, resta esperar pelo próximo S. João, forma moderna de festejar o solstício de Verão que encantou todas as civilizações do globo e que tanta poesia e mistério encerram.
Para acabar gostaria de agradecer o honroso convite que a Exma. Câmara na pessoa do seu Presidente se dignou fazer-me para falar na Terra de meu querido Pai, neste mês de S. João, tão desejado de todos os rapazes daquele tempo pois, minha Avó só os deixava tomar banho de mar, a partir do seu dia porque, como ainda dizem os velhos do Corvo, o diabo só então é que sai da água.
Mas para acabar mesmo gostaria de fazer uma sugestão: não seria possível colocar na Rotunda da entrada poente da velha capital de S. Miguel, a estátua equestre do nosso grande fundador e povoador Rui Gonçalves da Câmara, que Frutuoso descreve assim “Tinha este Capitão Rui Gonçalves seu assento principal em Vila Franca do Campo, onde residia o mais do tempo, por ser então única vila nesta ilha. Era homem bem apessoado, grande e grosso, discreto e solícito em fazer cultivar e povoar a terra, visitando-a pessoalmente muitas vezes, só, a cavalo, vestido com uma peliça de martas e uma touca na cabeça, como naquele tempo se costumava, e com um cão grande detrás de si, chamado Temido, sem trazer outros pajens consigo”?
Escultor temos o melhor do País, Álvaro França, hoje, como eu, com 68 anos, na pujança do seu saber e capacidade artística, teríamos ali um marco da grandeza da velha capital, título que nem o Papa nos pode tirar e que só nós podemos dignificar com uma obra de arte, pois a categoria dum povo mede-se pela qualidade das obras de arte que possui. Temos algumas mas não temos as suficientes para retratar a primazia da terra e o forte ânimo dos seus valorosos habitantes, todos, sem excepção, desde o primeiro que aqui resolveu tomar assento.
Muito e muito obrigado por terem tido a paciência de me ouvirem.
Vila Franca de S. Miguel, no dia dez de Junho de 2010.
Carlos Melo Bento
Li praticamente tudo o que há para ler sobre a velha capital de S. Miguel e acompanhei Sousa d’Oliveira nas escavações arqueológicas que desceram ao coração da Vila Velha, entrando nas antigas casas e andando nas ruas que existiram antes do cataclismo de 1522 que soterrou a que de nobre precedia a quantas vilas havia na ilha de S. Miguel. Vi as louças da China em que comiam, observei as malgas de louça fina com que se lavavam, olhei ricos azulejos de fabrico mourisco, toquei em partes de armaduras de aço com que combatiam e peguei nas refinadas medalhas religiosas e nas cruzes metálicas com que rezavam à Mãe do Céu ou ao Redentor; tive nas minhas mãos anforetas onde guardavam os seus vinhos e azeites, contei as moedas com que negociavam, extasiei-me perante belas pedras das suas igrejas de telhas pintadas com desenhos requintados e portais luxuosos de palácios onde os grandes habitaram e pude imaginar o esplendor com que viviam os nossos primeiros povoadores.
Quando se juntavam os homens bons de todos os concelhos desta ilha, e isso só acontecia nos momentos mais importantes da nossa história, Vila Franca, por ser a primeira de toda a Ilha e ter entre elas a primazia, o seu procurador tinha assento no primeiro banco e era o primeiro a usar da palavra e, portanto, era tremenda a responsabilidade do porta voz da delegação vila-franquense porque quem vem depois tem sempre a vantagem de já ter o caminho bem desbravado. Foi porventura este privilégio que fez dos cidadãos de Vila Franca o que eles são hoje: orgulhosos do que é seu, conscientes da sua importância e muito reivindicativos em relação aos restantes povos seus vizinhos.
A tragédia que nos esmagou em 1522 destruiu toda a documentação que hoje poderia explicar tanto mistério que cobre o nosso passado. Por exemplo, e este é o primeiro assunto que tratarei, quando e por quem é que Vila Franca foi feita concelho? Ninguém sabe porque o dilúvio se encarregou de destruir o valioso arquivo da nossa primeira capital e ainda não foi encontrado fora dele qualquer documento que no-lo revele. Gonçalo Vaz Botelho fundou neste lugar um povoado e, certamente, aconselhou o Infante D. Henrique a ordenar e a estabelecer aqui uma Igreja a S. Miguel, na ilha do mesmo nome. Sabemos isso porque, assim, tão alto príncipe o diz no seu testamento de 1460, ano em que morreu. Sua alteza não fala em Vila nesta ilha, o que seria natural se ela já existisse. E, curiosamente, foi nesse ano de 1460 que Gonçalo Velho foi investido nas duas capitanias de Santa Maria e S. Miguel.
Essa Igreja, porém, só terá Vigário ou Capelão nomeado em Fevereiro de 1471, (portanto 11 anos depois de sabermos que foi ordenada e estabelecida e ter capitão) e por certo (penso eu) ela já estava construída quando isso aconteceu; foi seu primeiro titular Estêvão Vaz que fora capelão do Infante D. João, pai da infanta D. Beatriz, como sabemos por carta desta a D. Frei Pedro d’ Abreu, Vigário da Ordem de Cristo que exercia então o poder espiritual sobre nós. Mas nesse ano, parece, também ainda não havia Vilas nos Açores.
É que, não há bem a certeza mas o concelho de Vila do Porto, em Santa Maria, pode ter sido criado à volta de 1470, ano em que morreu o Infante D. Fernando, Duque de Viseu e nosso segundo senhor e esse concelho foi o primeiro dos Açores. O Funchal recebeu o primeiro foral entre 1452 e 1454, sendo então elevada a vila e a sede de concelho, apesar do Zarco só ter sido investido na Capitania do Funchal em 1459. Curioso é que foi precisamente neste ano de 1452 que Diogo de Teive descobriu as Flores e o Corvo.
Angra foi feita vila em 1478 e é muito natural que entre Vila de Porto 1470 e Angra 1478, terá sido feita Vila a nossa, pelos Reis de Portugal (como quer António Cordeiro, não o nosso actual presidente mas o antigo cronista terceirense). Ou pelo filho do Infante D. Fernando ou pela Infanta D. Beatriz viúva deste, em nome do filho órfão, D. Diogo, Senhor desta Ilha por a ter herdado do Pai, aquele D. Fernando era irmão de D. Afonso V, e foi perfilhado por D. Henrique, morreu muito novo, precisamente em 1470 como disse. Algum deles elevou este lugar a concelho e, portanto, a Vila porque então como agora não há um sem a outra, pelo menos.
A verdade, porém, é que estes anos de 1475 e 1476 foram muito complicados para Portugal. Em 75, o rei sai para a aventura castelhana e francesa deixando o filho a governar e no ano seguinte, dá-se a batalha do Touro, em que o filho ganhou e o pai perdeu, pelo que o país estava em pé de guerra e, certamente, os reis não tinham tempo para criar vilas ou concelhos.
Um importante documento faz alguma luz sobre este assunto e diz respeito à venda da capitania de S. Miguel por João Soares de Albergaria (o sobrinho e herdeiro de Gonçalo Velho que vivia com o Infante em Sagres) a Rui Gonçalves da Câmara em 1474, por 800.000 reis ou sejam 2.000 cruzados e 4.000 arrobas de açúcar (60.000 quilos) de que a ilha da Madeira onde vivia com o Pai, João Gonçalves Zarco, era já muito rica e ele tinha ali propriedades na Ribeira do Mel. Nesse documento não se fala em Vila mas sim na Ilha de S. Miguel o que, se já houvesse Vila, seria natural falarem pois a capitania abrangia toda a ilha, não era como a Terceira que, apesar de mais pequena, foi dividida em duas. É de notar que foi neste ano de 1974 que D. João II, ainda príncipe herdeiro, ou real como se passou a dizer depois dele, começou a dirigir pessoalmente a política atlântica e naturalmente lhe deu o impulso que a sua lendária energia permite adivinhar.
Porém, o primeiro documento que se conhece em que o nome de Vila é referido é o testamento de Izabel Gonçalves viúva de Afonso Gonçalves que, no seu resumo final, reza o seguinte: Saibam quantos este instrumento de aprovação virem, que no ano de nascimento de nosso Senhor Jesus Cristo de mil quatrocentos e oitenta e três anos (1483), a vinte e oito de Junho da dita era, em vila franca da ilha de S. Miguel, dentro nas casas de morada de Izabel Gonçalves, que jazia doente em sua cama. De doença natural, disse que ela fazia a sua cédula e testamento, dentro escrito, por ela assinada, disse que havia por bom, firme, estável, a deste dia para todo o sempre, e que mandava que se cumpra segundo em ele é conteúdo.
Testemunhas que presentes foram e aqui assinaram Álvaro Santarém, tabelião, e João Roiz recebedor, e João Homem, e João Vaz, e Lucas Garcia, e Pedro Cordeiro, e Luís Pires, pedreiro, e Fernão Álvares, gaiteiro, e outros, e eu Pedro Cordeiro Tabelião que este escrevi.
Pode que este Pedro Cordeiro seja um dos companheiros de Gonçalo Vaz Botelho e que foi Tabelião Público em todas as ilhas dos Açores achadas ou por achar, pois foi dos primeiros a desembarcar na Povoação Velha por volta de 1449, e estes eram então naturalmente gente muito nova, provavelmente na casa dos vintes.
Portanto, neste primeiro documento, feito 23 anos depois da morte do Navegador, pode ver-se que já havia Vila, que ela era franca, mas ainda não se chamava do Campo, e era a única de toda a ilha de S. Miguel.
Estranho é que no Tombo do Rei ou no do Infante ou no do dito Duque de Viseu, que seria morto pelo cunhado D. João II no ano seguinte, nada conste. Certamente, quando a fizeram vila nunca esperavam que ela se tornasse tão importante em tão pouco tempo e que em menos ainda desaparecesse da face da terra. A não ser que, logo depois de 1474, em que a capitania da ilha foi vendida a Rui Gonçalves da Câmara, que foi o nosso primeiro grande povoador que a governou até morrer durante 21 anos, a tivesse proclamado vila (certamente porque já possuía gente de qualidade para tanto) e só depois os donatários ou o rei o confirmassem.
Gonçalo Vaz Botelho fora corrido da Povoação pelas intempéries e pelo pouco que conseguiu arrancar da terra, pois que o trigo que ali semeou deu uma espiga tão grande e tão pouco trigo que ainda hoje o povo diz de coisa mal amanhada, uma grande espiga!
Calcorreou o fundador do povoado que viria a ser Vila Franca do Campo, a costa toda do sul da ilha e não encontrou campo discreto (ou formosa chã, como diz o cronista) a não ser aqui. Melhor que este campo só havia o de Ponta Delgada mas esse tinha falta duma coisa fundamental: água. Ponta Delgada não tem ribeiras e durante muitos anos o seu povo bebeu água dos poços que abriu (um na rua do Poço, outro que está hoje dentro da Igreja Matriz de S. Sebastião e outro que ficava dentro do Castelo de S. Braz).
Vila Franca, por seu lado, tinha além de ribeiras, bons acessos pelo mar quer em praias quer em portos naturais, e é natural que o primeiro porto a ser usado tenha sido junto do Reduto Velho que se situava ao fundo da velha rua da Tripa e que ia dar à Praça da Vila ou seja ao actual largo das Freiras ou de Bento de Góis onde se situava a Igreja Velha de S. Miguel, Matriz de toda a ilha e, certamente a Câmara Municipal. Ainda me lembro de parte do pano da muralha daquele Reduto Velho que ali houve até há bem pouco tempo.
Depressa se guardou a Vila com vários Castelos: o de Santo António no cabo nascente da Vinha da Areia, o Reduto Velho de que falámos, o do Tagarete que era real ou seja, sustentado pelo Rei, e o das Taipas que também era dele; o de S. Pedro, que ainda conheci muito arruinado e que não me parece ter sido tão real como os outros. Portas da muralha de Vila Franca havia a do João do Outeiro na Foz da Ribeira da Vila, ou seja a dos Pelames por ali se curtirem as peles ou do Rabaçal como também a chamam, e a porta do Corpo Santo cujos fortes e monumentais batentes apesar dos meus veementes apelos pela televisão para que fossem preservados, foram destruídos há ainda menos tempo e nem o terramoto tinha conseguido isso.
Gonçalo Vaz Botelho, que ficou conhecido pelo cognome de O Grande (cuja bela estátua de Bronze o Visconde Botelho encomendou ao escultor Canto da Maia e ofereceu à Vila) que era filho do Comendador Mor de Cristo, não era porém nem dono da ilha, nem seu capitão. Mais tarde, foi nomeado Ouvidor do Capitão e governador substituto de S. Miguel. Fora ele a dar as primeiras terras porque a ilha estava deserta quando aqui chegou. Foi ele que escolheu este lugar para onde trouxe naturalmente os mouriscos que o acompanharam na Povoação (cujos cabeças eram Jorge Velho, príncipe de Fez refém trocado pelo Infante D. Fernando (o Santo, não o nosso donatário, seu sobrinho), e mulher África Anes, Pedro de S. Miguel e mulher Aldonça Roiz, João de Rodes e João de Arraiolos ou de Araújo) e os outros companheiros cristãos velhos (dez ou doze homens casados) de que Frutuoso cita os seguintes nomes: Afonso Anes do Penedo, Rodrigo Afonso, Afonso Anes o Colombreiro, Vasco Pereira, João Afonso d’ Abelheira, Pedro Afonso, João Pires, Gonçalo de Teves Paim natural de Paris, almoxarife, e Pedro Cordeiro seu irmão de que já falei. Talvez tenha sido ele a erguer a primeira Matriz, mas logo que a capitania foi vendida ao Rui Gonçalves da Câmara foi este quem passou a mandar, tantos eram os poderes que a Infanta lhe deu que não é imaginável que outra autoridade se pudesse levantar ao seu nível.
De 1449 a 1474, em que Rui da Câmara comprou a capitania a João Soares de Albergaria, era Gonçalo Vaz o governador dos poucos colonos, alguns vindos de Santa Maria como os outros sobrinhos do Comendador de Santa Maria, Pêro e Nuno Velho Cabral, desgostosos com o Infante por lhes não ter deixado herdar as capitanias como o tio desejava, pois vieram com ele para estas ilhas ainda meninos.
Agora veja-se: no testamento de Izabel Gonçalves o notário fala em vila franca da ilha de S. Miguel. Não diz do Campo certamente porque a primeira qualidade que o novo concelho ganhou foi a de ser franca, isto é, só pagava a dízima ao Rei. Mais nada, o que era muito, vistos os imensos impostos que então se cobravam no País: sisas sobre imóveis, móveis e se moventes, portagens, impostos sucessórios, contribuições prediais, reais de água e sei lá que mais.
Depois, houve que lhe dar um nome. Em Santa Maria a Vila chamava-se do Porto (reparem que os nossos concelhos (contrariamente às Ilhas) não têm nomes de santos, com a excepção da Madalena do Pico e as duas Santas Cruzes); as outras, Angra, Praias, Calhetas, Velas, Topo, Cais, Lajes, Ponta, Água de Pau, Capelas. Portanto, era a característica morfológica que inspirava o criador dos concelhos, aliás como quase todos os de Portugal ou do Reino como então se dizia.
A nossa Vila podia ter sido Vila das Praias (Vinha da Areia, Tagarete, Taipas e Corpo Santo), ou Vila do Ilhéu, talvez até, Vila de S. Miguel, se a Igreja de Roma não o impedisse por razões canónicas, não sei. Como a sua característica principal era o largo e rico campo, eventualmente o que de maiores dimensões foi possível arrotear e lavrar, onde a colocaram, e logo “respondeu com muitas e abundantes novidades”, foi assim que ficou o seu nome.
Em que data? Pois não sabemos. Depois de 1474, provavelmente mas não muito porque os Câmaras não eram nem são meninos para governarem coisas pequenas. A verdade é que quase 50 anos depois, a Vila já tinha 4.000 pessoas tantas quantas morreram no seu dilúvio.
Já vimos algumas dessas pessoas que vieram com O Grande. Depois, com Rui da Câmara vieram Gaspar de Bettencourt, sobrinho e herdeiro da mulher do capitão e bisneto do vice-rei das Canárias que por ter casado com uma senhora Guiomar de Sá, são os antepassados dos Bettencourt de Sá de S. Miguel. Também trouxe o novo capitão a Antão Pacheco que era descendente dum irmão do Marquês de Senalvo e que fugiu de Castela por ter aderido à revolta das Comunidades e ser perseguido pelo rei daquele país. Rui Lopes, o Cavaleiro, que talvez tenha dado o nome à Lomba do dito, na Povoação que era neto do Regedor das Justiças d’el rei, que perseguiu seu pai Rui Esteves Barbosa por ter casado com a irmã dele sem sua licença, facto que os fez fugir para a Galiza. Ela regressou grávida do pai do Cavaleiro, mas o Regedor foi implacável: depois do nascimento do bebé, mandou-o para o pai e pôs a Mãe num convento onde ela morreu. Está sepultada em S. Marcos de Coimbra onde é o mausoléu dos Silvas. Os Barbosas da Silva desta ilha descendem deles.
Rui Vaz Gago era de Beja e era conhecido pelo do Trato pois contratara com o rei o trato da Mina onde enriqueceu (ainda hoje se diz, isso é uma Mina!), veio também para S. Miguel com Rui da Câmara. Também chegou a esta ilha no tempo deste capitão, um Fernão Anes Tavares, de Portalegre, perseguido por um delito de honra, pois apesar de fidalgos, tinham raptado uma prima para casar com um dos Tavares, também nobre mas mais pobre que a noiva. A família ultrajada conseguiu sentença de morte contra eles, que ao tempo podia ser executada por qualquer um dos ofendidos. Por isso, esteve pouco tempo em Vila Franca indo povoar a Ribeira Grande (que não tinha porto e portanto mais longe das vistas dos curiosos e perigosos viajantes) com a grande fortuna que conseguiram trazer. Alguns dos seus descendentes porém vieram para ou ficaram em Vila Franca como se pode ver dos deste apelido que ainda cá vivem. Também Martim Anes Furtado de Sousa com sua mulher Solanda Lopes (descendente de flamengos) vieram no tempo do capitão Rui da Câmara e aqui tiveram sete filhos e inúmeros netos.
Também Rui Vaz de Medeiros que era de Ponte de Lima e de Guimarães foi trazido para S. Miguel por Rui da Câmara por ser nobre e muito rico e a quem este deu muitas terras na Lagoa e que se viria a tornar no antepassado mais antigo da mais numerosa família açoriana: os Medeiros. E nesse tempo veio ainda Lopo Anes de Araújo, natural de Viana e tantos outros que aqui proliferaram.
Frei Agostinho de Mont’Alverne confirma isto dizendo ”e vendo que a gente que concorreu logo a povoarem a Ilha, a povoassem por várias partes, mais se inclinaram a morarem neste lugar de Vila Franca, tanto que Rui Gonçalves da Câmara com sua mulher Dona Maria Bettencourt…entrando nela com muitas famílias e gente que trouxe consigo neste lugar fez seu domicílio”.
Falo nestes nomes porque certamente foram eles quem ajudou a elevar a vila, esta formosa chã que talvez para não se confundir com Vila Chã a acabaram por chamar do Campo.
D. Manuel deu Foral novo a muitas Vilas de Portugal mas, infelizmente, Vila Franca não foi contemplada, senão teríamos na Torre do Tombo, em Lisboa o seu duplicado, a não ser que o terramoto de 1755 o tivesse feito desaparecer como o de 1522 fez desaparecer os velhos pergaminhos da
Vila Franca do Campo
Que de nobre precedia,
Na ilha de S. Miguel,
A quantas vilas havia.
E já basta de coisas sérias. Falemos agora do S. João e das velhas superstições que chegaram até hoje mais ou menos intactas. Urbano de Mendonça Dias guardou-as numa das suas preciosas obras, sobre A Vila e é em homenagem ao mais prolífero e valioso escritor açoriano de todos os tempos, que as partilho convosco, ainda que correndo o risco de querer ensinar o Padre Nosso ao Vigário já que, nesse terreno, ninguém leva a palma aos descendentes daqueles que nem o dilúvio de 1522 conseguiu molestar.
Como se sabe, na véspera à noite do dia 24 de Junho é obrigatório sob graves penas, fazerem-se grandes fogueiras com louro do mato e não outra coisa, que tem de arder em fogo vivo durante algumas horas, sendo também obrigatório os rapazes fazerem fila para as saltar em algazarra grande. Ai de quem o não fizer, podendo fazê-lo! Nem digo o que lhe acontecerá…
Ao amanhecer do grande dia, um cornetim pelo menos há-de tocar a alvorada do eirado duma torre bem alta e as bandas hão-de tocar o Hino de S. João que só se há-de ouvir duas vezes por ano, pois S. Pedro também tem esse direito e marcharão com o tradicional ordinário pelas ruas da Vila. De tarde, é obrigatório a concentração na praia do Poço Largo em frente ao ilhéu para ir lá buscar um junco fino. Só quem passar o dia na Lagoa do Congro a dançar ao som da viola é dispensado desta obrigação.
Fava e milho terão de ser torrados em sertã de barro e expostos ao sereno santo da noite de véspera deste santo popular. Mas, muita atenção, tem o assado que ser recolhido antes do sol nascer para não perder a virtude que se transmite a quem o trincar durante o dia.
Nessa noite se há-de recolher a água, antes do sol nascer, e só com ela se pode amassar o fermento novo que durará reformado todo o ano, pois o que assim é feito nunca se perde.
E quem se quiser livrar do mau-olhado terá de encontrar e recolher, também nessa noite santa, um trevo de quatro folhas. Se o conseguir o mundo será seu, senão, não!
E quem quiser saber o futuro terá de cortar com uma tesoura nova e nunca usada, as folhas da flor do cardo, queimando ao de leve a corola tesourada. Nos pedúnculos amarrarão pequenas etiquetas com as perguntas de que querem saber as respostas: se casa ou não casa, se será rico ou pobre, louro ou moreno e quem é ele ou ela. Muito importante: esses cardos com as etiquetas têm de ser expostos ao sereno da noite. No dia seguinte, logo a seguir aos primeiros raios do sol, recolhem-se as flores, procurando aquelas cujas pétalas rebentaram outra vez, pois só essas correspondem a respostas afirmativas. Portanto, todo o cuidado na inteligência das perguntas cuja resposta é como as sondagens políticas: sim ou não! O mesmo se passa se deitarmos sortes à ventura, ou seja, perguntas em papel dobrado num prato com água que deve apanhar o sereno da noite e não deve de maneira nenhuma apanhar o sol da manhã, principalmente os primeiros raios do astro rei. Se o papel se abrir virado para baixo a resposta é um não; se for virado para cima e se ele se abrir, trata-se dum sim. Nunca falha!
Agora, a clara d’ ovo. Agarra-se num copo transparente muito bem lavado e deita-se nele água até metade. Então derrama-se ali, com muito cuidado, uma clara de ovo e tudo se expõe ao sereno da noite de véspera de S. João e, também muito cuidado, antes que o sol nasça recolhe-se o copo para dentro de casa e observa-se aos primeiros raios de sol, as formas que a clara tomou: se for um navio vai haver uma viagem, se for uma igreja (ou conservatória do registo, já agora) vai haver casamento. Cuidado se parecer uma tumba…
A fava crua tem também segura função na noite sagrada da véspera de S. João. Descasca-se uma, parte-se outra e deixa-se a terceira inteira, colocando-se as três debaixo do cabeçal. Logo aos primeiros raios de sol, quem as colocou tira uma, sem olhar. Se tirar a nua, vai ser pobre, se for a intacta será rico se for a partida vai ser remediado toda a vida.
Agora para se evitar divórcios e outras calamidades modernas veja-se o jogo do rosário de namorados. Prestem bem atenção que eu vou dizer isto apenas uma vez: escrevem-se sete nomes de rapazes e sete nomes de raparigas casadoiros. Dobram-se muito bem os papelinhos, cada um com um nome deles. Depois, enfiam-se o nome das raparigas num fio e o dos rapazes noutro. Estes rosários são expostos ao sereno da noite. Logo de manhã, aos primeiros raios de sol, vêm-se quais os que abriram e uma boa fada ou feiticeira fará, juntando os pares num só rosário. Estes são que são os verdadeiros e infalíveis casamentos de S. João; os outros, serão ou não. Não disponho de dados estatísticos que me permitam confirmar ou infirmar a boa solução destes casos. Estou a vender pelo preço que o Dr. Urbano me vendeu e não vejo forma de reclamar neste mundo das soluções encontradas. Talvez no outro...
Finalmente, vou revelar o mais difícil e perigoso jogo de adivinhação infalível da noite de S. João e do seu sereno. Trata-se duma adivinhação perigosíssima que só os iniciados poderão efectuar e mesmo assim com graves riscos. Primeiro temos de arranjar sete pratos que nunca tenham sido usados; depois em cada um deles coloca-se terra, cinza, flores, bonecos, água, chaves e dinheiro, deixando esses objectos ao ar livre para receberem com abundância o sereno da noite. Antes do sol nascer (cuidado com esta precaução!), os pratos são recolhidos e colocados ao acaso sobre uma mesa muito bem lavada e sem qualquer toalha. Os interessados são então bem vendados, trocam-se os pratos de lugar, e dá-se-lhes a oportunidade de escolher um deles. Não lhes posso revelar o que cada um dos pratos significa pois isso faz parte do segredo da profissão de feiticeiro e eu não a vou perder só para vos ser agradável. Mas posso garantir que viagens, propriedades, arrumos, riquezas, solidão, mortes e filhos são as soluções mais alcançadas pelos aprendizes de feiticeiro. E feitas estas obrigações, resta esperar pelo próximo S. João, forma moderna de festejar o solstício de Verão que encantou todas as civilizações do globo e que tanta poesia e mistério encerram.
Para acabar gostaria de agradecer o honroso convite que a Exma. Câmara na pessoa do seu Presidente se dignou fazer-me para falar na Terra de meu querido Pai, neste mês de S. João, tão desejado de todos os rapazes daquele tempo pois, minha Avó só os deixava tomar banho de mar, a partir do seu dia porque, como ainda dizem os velhos do Corvo, o diabo só então é que sai da água.
Mas para acabar mesmo gostaria de fazer uma sugestão: não seria possível colocar na Rotunda da entrada poente da velha capital de S. Miguel, a estátua equestre do nosso grande fundador e povoador Rui Gonçalves da Câmara, que Frutuoso descreve assim “Tinha este Capitão Rui Gonçalves seu assento principal em Vila Franca do Campo, onde residia o mais do tempo, por ser então única vila nesta ilha. Era homem bem apessoado, grande e grosso, discreto e solícito em fazer cultivar e povoar a terra, visitando-a pessoalmente muitas vezes, só, a cavalo, vestido com uma peliça de martas e uma touca na cabeça, como naquele tempo se costumava, e com um cão grande detrás de si, chamado Temido, sem trazer outros pajens consigo”?
Escultor temos o melhor do País, Álvaro França, hoje, como eu, com 68 anos, na pujança do seu saber e capacidade artística, teríamos ali um marco da grandeza da velha capital, título que nem o Papa nos pode tirar e que só nós podemos dignificar com uma obra de arte, pois a categoria dum povo mede-se pela qualidade das obras de arte que possui. Temos algumas mas não temos as suficientes para retratar a primazia da terra e o forte ânimo dos seus valorosos habitantes, todos, sem excepção, desde o primeiro que aqui resolveu tomar assento.
Muito e muito obrigado por terem tido a paciência de me ouvirem.
Vila Franca de S. Miguel, no dia dez de Junho de 2010.
Carlos Melo Bento
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